Nota editorial: este texto estabelece um diálogo íntimo com uma voz anterior, que em alguns momentos do quinto capítulo chamei de “sorriso interior”. Naqueles textos repousam as sementes, as bandas dos três guṇas; aqui, apresento uma floração circunstancial dessa jornada que devemos empreender, caminhando lado a lado com a herança de nossa própria tradição.
Antes de seguir, é importante esclarecer o uso metafórico da palavra “quântico” neste texto. Emprego-a para indicar a discretização da experiência em patamares ou degraus reconhecíveis, especialmente no que concerne à predominância dos guṇas (sāttvika, rājasa e tāmasa). Essa linguagem não pretende descrever fenômenos da física quântica, mas usar a metáfora para iluminar as nuances da dinâmica espiritual que exploramos aqui.
“samatvaṃ yoga ucyate.”
Yoga é imparciabilidade amorosa.
(BhG 2.48)
“yogaḥ karmasu kauśalam.” (BhG 2.50)
Yoga é maestria sobre as ações.
"śraddhā kṣaye viniyogo ’pi muhyati;
ṛṣi nyāsaḥ tu prajñām ālokayati."
Quando śraddhā declina, até o viniyoga se confunde;
ṛṣi-nyāsa, porém, ilumina a inteligência do coração.
Este é um momento de exercício de filosofia em ato. Segundo o Śraddhā Yoga, quando śraddhā se esvai; recorre-se ao viniyoga — a aplicação justa do que já sabemos, que faz a disciplina voltar a pulsar. Mas há também a queda mais funda: quando a mesma rarefação de śraddhā torna-se torpor e até o próprio viniyoga parece perder força, como se a forma tivesse secado por dentro. Esse é o ponto em que Arjuna se encontra Bhagavad Gītā, antes que alcance a sua revelação. Do mesmo modo, aqui, Ṛṣi-nyāsa não é um capítulo adjacente do Śraddhā Yoga; é mapa e bússola dessa via sintrópica de conexão com a esfera dos Ṛṣis e da realidade sagrada. “Ṛṣi” designa o vidente; quem vê como o Real se mostra. “Nyāsa” denota o ato de entrega lúcida, de confiança. O sábio vive em Ṛṣi-nyāsa — tem o coração desperto e em sintonia com os planos da compreensão celestial dos Ṛṣis. Sua luz não é visível aos olhos mundanos, mas é intensa como sol no zenite da alma, tal como nos indica o paradigmático verso da metáfora da noite e do dia do sábio . “Aquilo que é noite para todos os seres é dia para o iniciado; aquilo em que todos despertam é noite para o sábio.” (BG 2.69)
Quando a motivação oscila, o gesto não é “fazer mais”, mas ver melhor. Ver com o coração — e confiar-se ao que o coração vê. Diz-se que Ṛṣi é o vidente e nyāsa é assentamento, entrega, confiança. Podemos, portanto, ler nyāsa como a contemplação que nos devolve ao eixo: o assentamento lúcido do ser no ser, conforme o exemplo dos nossos mestres. Quando há queda que nos faz perder de vista o modo de retomarmos o caminho (viniyoga), buscamos reviver os momentos em que estivemos na presença dos mestres, ou sentimos a sua presença sutil. Permitimos, desse modo, que ṛta volte a nos emocionar e a dar o compasso. Quando isso acontece com intensidade, o mundo inteiro se torna mestre: vemos em todos os seres os mestres que, no passado, nos ampararam, ensinando-nos o caminho para superar todas as dificuldades.
A dificuldade técnica, o erro que se repete, a imagem que não centraliza, a letra que perde o diacrítico — tudo passa a instruir, porque tudo passa a ser ouvido. Entrar em Ṛṣi-nyāsa é aceitar que o mestre não está apenas “lá fora”, mas principalmente na forma singular que o real assume diante de nós. Quando os sentidos se transmutam como ensina a Bhagavad Gītā (2.58) todas as nossas experiências passam a se dar mediadas pelo coração espiritual, que faz de todos os nossos relacionamentos exteriores relações de coração a coração; nenhuma ação é executada de forma violenta ou irrefletida, pois entramos em yoga, o exercício vivo da maestria em todas as nossas atividades cotidianas.
O ajuste e o aprendizado vem como quem afina um instrumento, com a paciência de quem reconhece um legado. Esse legado que a tradição nomeou de ṛṇa-traya, as “três dívidas”. Há uma dívida silenciosa com as deidades — não como panteão folclórico, mas como formas vivas da identidade espiritual que nos habita e nos excede. Há outra dívida com sábios, gurus e santos — aqueles que, ao longo dos séculos, nos deixaram gramáticas da lucidez e exemplos de práxis sintrópica. E há a dívida com os ancestrais, graças aos quais estamos aqui, como herdeiros com corpo e história, aptos a ouvir e responder. Quando cada gesto torna-se gratidão pelas graças que herdamos, começamos a quitar essas três dívidas do plano da nossa humanidade. Então, a pressa cede lugar ao cuidado; e o cuidado restabelece a alegria — aquela alegria de ser antes de fazer e dizer, que é a própria seiva de Ṛṣi -nyāsa. É nesta dívida reconhecida que a oferenda (yajña), a doação (dāna) e o ardor (tapas) encontram a sua justa medida.
Para interpretar a oscilação íntima dessa alegria, chamo de “discreto” — “quântico” apenas em sentido figurado — o modo como a śraddhā vṛtti se manifesta. Não se trata de física, mas de degraus visíveis de predominância dos guṇas no nosso modo de ver, sentir e agir. Há momentos de clareza sāttvika, quando o coração ilumina sem dureza; há horas rājasa, em que a energia corre, mas irrita; e há densidades tāmasa, quando o peso puxa para baixo e tudo parece escurecer. Essa alternância não é defeito: é material de trabalho. Mais que isso, é tessitura — uma urdidura de estados em que aprender a reconhecer o ponto certo de entrada é a arte inteira.
Para nomear, com a linguagem da Bhagavad Gītā, a geometria desse caminho, pode-se dizer que ele se abre com o olhar da buddhi; é o que se convencionou chamar buddhi yoga: não raciocínio abstrato, mas visão que discerne. É esse olhar que recoloca o mundo em foco e devolve medida às coisas. Medida que se chama svadharma — não o dever genérico, mas a vocação concreta que nos cabe hoje, com este corpo, este ofício, este tempo. Quando buddhi vê e svadharma mede, o coração encontra assento em sthita prajñatā: não uma rigidez que exclui, mas uma estabilidade que inclui e acolhe; é um repouso vigilante, em que o pensar e o sentir trabalham juntos.
Dessa estabilidade nasce o karma-yoga, que a tradição descreve como ação sem garras. Não há desdém pelo resultado; há liberdade em relação a ele. A ação é precisa não porque seja controladora, mas porque nasce da motivação do coração que não trabalha para se justificar, mas para comungar/ofertar. Quando a ação reencontra sua natureza sintrópica, a própria arquitetura ritual volta a fazer sentido — e aqui aparece o eixo de yajña-dāna-tapas, que o capítulo dezessete da Bhagavad Gītā apresenta com nitidez: a oferenda de si mesmo, em atitude de doação que nos faz arder, com esse ardor que refina. É nesse ponto que o termo viniyoga recupera sua profundidade: não como mero ajuste, mas como a capacidade de harmonizar meios e fins em consonância com a grande lei do equilíbrio sintrópico – Ṛta.
A disciplina austera — tapas — deixa de ser severidade injustificada; torna-se gentileza e cuidado com a própria energia, direção sintrópica para os sentidos, indriyas. O domínio não é repressão, é claridade. E, à medida que os nós das relações sociais se desfazem, não por indiferença, mas por desapego amoroso, vamos nos aproximando de entendimento de bhāva: não emoção bruta, mas a tonalidade afetiva que firma a ação conforme ensina a Bhagavad Gita. Quando bhāva está alinhado, a mente não precisa de truques para se aquietar: ela conhece o manaḥ-prasāda, a serenidade clara que não é torpor, é presença. E, por fim, aquilo que nos desfigurava — a ânsia pelos frutos — solta aos poucos as unhas: karma-phala-saṃnyāsa, tyāga, a renúncia ao apego, não ao trabalho; à pretensão, não à responsabilidade.
Vista assim — por dentro —, a disciplina deixa de ser um catálogo de exercícios ou uma mera cartilha terapêutica; ela se mostra como filosofia viva da práxis sintrópica. Ṛṣi-nyāsa não significa “praticar isto ou aquilo por tantos minutos”; Ṛṣi-nyāsa descreve a capacidade humana de ver com os olhos do Ṛṣi que, em última análise habita em nosso coração. Implica em um certo modo de incorporar e aceitar a herança que recebemos como dádiva e pela qual devemos nos sentir gratos e obrigados. Quando śraddhā empalidece e não conseguimos encontrar o fio de Ariadne que nos devolve ao viniyoga, devemos nos lembrar da nossa herança sagrada, da nossa própria condição de seres sagrados, descendentes dos Ṛṣis, com os quais nos encontramos irmanados pelo coração. Retomamos o caminho para o foco absoluto do coração quando reconhecemos a energia do chamado sutil, simbolizado nas três dívidas, que nos convida a retomar o caminho para que possamos reencontrar a luz que reside em nosso coração (hṛdaya) e que nos revela o que sempre fomos em essência.
ver, inclinar-se, alinhar, ofertar.
(darśana — praṇāma — saṃkalpa — yajña)
Compreender o “discreto” — “quântico” em sentido figurado, ajuda-nos. A vida espiritual conhece patamares reconhecíveis, degraus. O degrau não é uma falha do degrau anterior; é a necessidade do agora. Chamando-os de sāttvika, rājasa e tāmasa, não preparamos um diagnóstico; reabrimos a escuta. E, ao reabrir a escuta, reencontramos o fio que nos conduz de volta à nossa própria morada interior.
Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2025