2020-11-22

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (V) A meditação e a busca da verdade

O sábio vê em 3D o que o mundo percebe
de forma plana e polarizada.

Este texto é o quinto da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020).

Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta. (Jung)

Podemos explicar a arte e a ciência da meditação reveladas na Bhagavad Gītā tomando como ponto de partida a reflexão sobre o significado do praṇava[1] AUM no texto. O praṇava simboliza o modo conforme o universo (saṃsāra) se origina e permanece em Brahman. Esta verdade intuitiva (pratyakṣa) surge na mente (citta) quando controlamos e harmonizamos (nirodha) a sua atividade (vṛtti) por meio da prática de meditação. O iogue, de mente disciplinada, age no mundo harmonizando as posições contrárias (tese ou sañkalpa e antítese ou vikalpa) e estabelecendo novas sínteses (anukalpa). Ele compreende o simbolismo dialético do praṇava, onde se oculta a ciência do mundo e do Ser. Em sua busca da verdade ele se aproxima da resposta de três questões fundamentais da teoria do conhecimento: (1) o que é o Ser?; (2) como se pode alcançar o conhecimento verdadeiro sobre o Ser?; e (3) como ter certeza sobre a verdade de qualquer afirmação relativa ao Ser? Na Bhagavad Gītā, esse processo está associado à meditação. Meditar, nesse contexto, significa contemplar como o mundo se origina do Ser, como o contém e como está contido nele. Este é o simbolismo associado praṇava AUM.

A Bhagavad Gītā mostra como a ciência e a espiritualidade estão representadas na sílaba sagrada (praṇava) AUM. A Bhagavad Gītā afirma que o Ser e o não-Ser estão em estado latente em Brahman (BhG 15.16-7). Por isto se diz que ela lida com a ciência do devir. Ela explica o Ser (sat), o não-Ser (asat) e o vir-a-Ser (sva-bhāva) por meio da análise e síntese dos constituintes de AUM (geralmente escrito OṂ), a sílaba sagrada e o mantra de Brahman. De acordo com o Atharva Veda, o “A” denota o Espírito; o “U”, a matéria; e o M, a relação de afirmação e negação simultânea que existe entre esses dois termos. Está implícito no AUM a ideia de que śraddhā é o terceiro constituinte (M), que compõe toda pessoa (Jīva), a partir da relação do Espírito (A) com a matéria (U). A trindade (AUM) é realizada como o Um (OṂ). O símbolo AUM conota os estados de multiplicidade e de unidade de Brahman.

A meditação, portanto, pode ser classificada conforme esses três modos possíveis: Saguṇa Dhyāna (meditação objetiva; associada à letra "U", que representa o não-Ser); Nirguṇa Dhyāna (meditação subjetiva, associada à letra "A", que representa o Ser); e Brahma Dhyāna (meditação transcendental), associada à letra “M”, que representa a relação dialética de negação e afirmação simultânea da identidade do Ser e do não-Ser. A Saguṇa Dhyāna leva à contemplação do aspecto essencial da natureza múltipla e da concretude de todos os seres; a Nirguṇa Dhyāna, à contemplação do aspecto essencial da natureza unitária e abstrata do Ser; e a Brahma Dhyāna, à contemplação da relação transcendente, de negação e afirmação simultânea da identidade entre as naturezas unitária e múltipla do Ser e do não-Ser.

Krishna transmite a Arjuna o ancestral Śuddha Yoga, originalmente revelado a Vivasvat (BhG 4.1). Afirma que a mente é a mestra dos cinco sentidos e o seu equilíbrio e controle se expressam pelos nossos padrões de respiração (prāṇa-apāna-gatī), na medida em que estes representam as nossas relações e interações com o universo exterior (BhG 4.29). A disciplina mental não se separa da atividade (kriya) do iogue. Pelo contrário, define-se pela relação estabelecida com o prāṇa (movimento de interiorização, inspiração) e o apāna (movimento de exteriorização, expiração) para unificar o universo interior (Dharma-kṣetra) com o universo “exterior” (Kuru-kṣetra). O domínio e o controle sobre o processo de formação da vontade, que caracterizam a teoria e a prática da disciplina da mente, implicam na vinculação do universo interior à dialética do concreto, onde o profano que organiza o social (varṇāśrama dharma[2]) se deixa revelar como manifestação da essência do sagrado (śuddha dharma). A disciplina da mente implica tanto no poder para perseverar na prática da ação necessária, mesmo que desagradável, como em evitar a ação desnecessária, ainda que agradável. Representa, deste modo, o poder de discernir e seguir os chamados da consciência, que nos convocam para a batalha interior, e de rejeitar os apelos oriundos do nosso egoísmo, que nos convidam a aliviar a tensão e a satisfazer a nossa natureza inferior com prazeres temporais e falsas noções de dever e compromissos sociais. 

Vários episódios do Mahābhārata mostram como é difícil apreender o que se entende como “disciplina” quando se lida com o conceito de sagrado (dharma) em sua pureza. O próprio Krishna deixa claro este aspecto quando retoma o diálogo com Arjuna na Anu-Gītā[3]. Neste episódio Krishna corrobora o ponto de vista de que a Bhagavad Gītā retrata uma experiência única e impossível de ser totalmente reproduzida na realidade. E este fato, por si só, indica que a Bhagavad Gītā não trata de uma “disciplina” no sentido convencional do termo. Se a narrativa maior do Mahābhārata apreende o campo do concreto, simbolizado no campo de batalha (Kuru-kṣetra) dos descendentes de Kuru, a Bhagavad Gītā, logo em seu verso de abertura, representa esse campo como o próprio cenário do sagrado (Dharma-kṣetra), ou seja, como o espaço da consciência universal, presente no coração de cada indivíduo, onde a ação é refletida, tornando-se substância para a filosofia moral.

Krishna discorre na Bhagavad Gītā sobre os dois aspectos da atividade da mente humana, entendidos até então como mutuamente exclusivos: pravṛtti (movimento de exteriorização, ou de ação concreta na realidade objetiva) e nivṛtti (subjetivo; movimento de interiorização – ou de “não-ação” –, decorrente do entendimento e controle de todo o processo de formação da vontade). A ideia de síntese entre pravṛtti e nivṛtti na Bhagavad Gītā[4] vincula-a ao contexto geral do Mahābhārata. Arjuna, o príncipe guerreiro em seu processo externo (pravṛtti) e Arjuna, o discípulo em busca de auto realização (nivṛtti), deveriam alcançar a unificação por meio da disciplina do Śuddha Yoga. Pravṛtti e nivṛtti compõem as duas asas necessárias ao voo rumo à ciência sagrada, os dois eixos da fenomenologia da consciência e, consequentemente, da arte e da ciência da meditação. A “disciplina da mente”, segundo a Bhagavad Gītā, representa a via de síntese entre o movimento de pravṛtti, representado pelo drama de Kurukṣetra, e de nivṛtti, representado pelo drama de consciência de Arjuna. 

Os exemplos de valores às avessas do Mahābhārata, onde muitos papéis se invertem (Arjuna se traveste de mulher; os Pāṇḍavas vão para a floresta, mas depois retornam para a vida da cidade, etc.), deslocam a vida do seu curso habitual, alterando as normas e o que é geralmente aceito. A Bhagavad Gītā, não se deve esquecer, é reconhecida como uma alegoria poética da luta interior que se passa no ser humano. Ela é, antes, um convite para que se explore o texto em termos de tópicos tais como “o ser e o outro”, “o discurso moral”, “as múltiplas vozes”, e assim por diante. Símbolos e alegorias constituem uma parte essencial da Bhagavad Gītā, tornando difícil a sua apreensão para os estudiosos pouco afeitos à sua pedagogia dialética. Existe uma explicação para esta dificuldade: os teólogos e filósofos ocidentais ainda identificam as interpretações alegóricas como resultantes de um método hermenêutico equivocado[5]. Esta discussão foi reaberta por W. C. Smith em seu livro Towards a world theology: faith and the comparative history of religion (London: Macmillan, 1981).). Ele já mostrara em trabalhos anteriores que a religiosidade hindu não podia ser compreendida sem se considerar as relações do domínio do simbólico. Ao perceber que o termo sânscrito śraddhā expressa a força do espírito e que representa, portanto, o universal por detrás dos distintos fenômenos religiosos, Smith sugere a adoção do termo “espiritualidade” como substituto do termo “religião”, para assim derrubar as barreiras entre as distintas doutrinas religiosas. Chega a propor, inclusive, bem no espírito da Bhagavad Gītā, que se abandone o uso de termos como “religião”, “hinduísmo”, “cristianismo” etc.

A Bhagavad Gītā sintetiza a disciplina da mente na inversão do funcionamento do ser de guṇa-para para ātma-para, como discutimos nas seções anteriores (veja aqui). Um pássaro não voa com apenas uma de suas asas e, segundo a Bhagavad Gītā, uma asa é este movimento de expirar, de exteriorizar (pravṛtti); e a outra, o movimento de inspirar, de interiorizar (nivṛtti). Transcender a nossa maneira dual de ver as coisas significa desvelar os segredos da fenomenologia da consciência para respirar plenamente, fazendo da vida toda uma respiração sagrada (prāṇāyāma), uma meditação sobre a unidade das realidades objetiva e subjetiva – as duas asas necessárias à harmonização do ser.

A Bhagavad Gītā associa o valor moral da ação, não com a ação em si mesma, mas com a sua motivação, segundo a consciência. Esta dimensão revolucionária da consciência possibilita, em dados momentos, a ruptura com os valores da tradição, conforme propõe Krishna a Arjuna. A disciplina da mente é caracterizada a partir da esfera da razão e da sensibilidade de Arjuna, que, como sujeito individual, na singularidade da sua experiência, relaciona-se com o sentimento de sagrado (dharma). E é este sentimento que orienta o desenvolvimento da disciplina da mente e vincula as realidades subjetiva e objetiva, de modo que a atividade humana se dê com vistas à solução de suas questões fundamentais. É o funcionamento ātma-para que nos permite desenvolver a sintonia para perceber a vida e o universo como uma espécie de poema cósmico, onde o solo, os rios, a água, o ar que respiramos e a própria vida aparecem como partes de um todo sagrado e em perfeito equilíbrio. Segundo esse entendimento, o universo necessita ser visto como uma obra de arte. Não basta compreendê-lo pela razão. Torna-se necessário emocionar-se com ele, ou indignar-se, até, ante os casos de violência física ou estrutural. Nem a razão tecnicista da ciência do século passado, nem os antigos dogmas de fé possibilitaram esta solução, que passa por reaprender a olhar para este universo e para a vida como expressões de algo sagrado, holístico e ecológico.

Conta uma lenda da tradição indígena que, interrogado sobre o que ensinava ao seu povo, um pajé americano teria respondido: primeiro, a escutar o coração; segundo, que tudo está ligado com tudo; terceiro, que tudo está em transformação; e quarto, que a Terra não é nossa, nós é que somos da Terra.  Aí está a essência e a atualidade do convite feito por Krishna na Bhagavad Gītā para Arjuna. O princípio subjacente ao ensinamento do líder indígena é que estamos todos conectados, somos partes de um mesmo organismo. Quando experimentamos deste princípio desenvolvemos o poder de atuar no mundo com amor, poder que a Bhagavad Gītā chama de śraddhā – a forma essencial mais elevada e nobre de bhakti. Tudo depende desta disposição para agir no exterior guiado pela luz interior, ou seja, desta disposição para nos tornarmos as mudanças que queremos ver no mundo.

Em suma, śraddhā resulta do esforço para superar o instinto animal de se regular apenas pelo grupo (funcionamento guṇa-para) e avançar no processo de individuação (funcionamento ātma-para). Implica em subordinar o individual (ahaṃkāra) ao coletivo (Ātman), sem prejudicar o pleno desenvolvimento da pessoa humana (jīva) dentro do tecido socioambiental. O homem se renova por meio da sua capacidade de fazer da sua conduta, de cada minúscula ação, um ritual de consagração para o despertar da consciência do Ātman e é a isto, em última análise, o que se designa por śraddhā, a energia do amor em ação.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
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Rio de Janeiro, 22.11.20.

[1] O termo “praṇava” designa o som AUM. Etimologicamente, significa “aquilo que renova”. O som onomatopaico OṂ representa o ruído de fundo da radiação cósmica, o som primordial da Natureza. Representa o alento vital do universo em expansão. Diz-se que AUM expressa essa verdade ao atribuir significado às suas letras em consonância com o ancestral método conhecido como akṣaramudrā.

[2] Dharma é um conceito difícil de delimitar. No Ādiparvan, por exemplo, na passagem MBh 13.195.27-31, o pai de Draupadī condena o seu casamento e o considera contrário ao dharma, já Krishna argumenta em seu favor.

[3]  A Bhagavad Gītā apresenta uma forma de espiritualidade assistemática, provada impossível de ser sistematizada na Anu-Gītā, que compreende os capítulos 16 a 51 do Aśvamedha-parvan (Livro 14 do Mahābhārata). Na Anu- Gītā, Krishna repreende Arjuna pela sua condição residual de um aśraddadhāna (desprovido de śraddhā), uma vez que Arjuna não consegue mais se lembrar da maioria dos ensinamentos da Bhagavad Gītā. Ver a Edição Crítica do Mahābhārata, bem como a tradução inglesa da Vulgata de Pratap Chandra Roy, The Mahābhārata of Krishna-Dwaipayana Vyāsa (Calcutta: Oriental Publishing, 1883-96), Vol. 12, 25-101. A primeira tradução inglesa da Anu-Gītā aparece na serie de Max Müller, The Sacred Books of the East (1882).

[4] A referência a este entendimento, a partir dos termos pravtti e nivtti, é feita, mais explicitamente, nos versos BhG 4.21-2, 16.7-8 e 18.29-32.

[5] Este entendimento deriva dos escritos de Emanuel Swedenborg, especialmente, em The True Christian Religion (1771).

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