2021-10-15

Onde quer que você esteja, seja a alma do lugar . . .

Quando chegamos ao Rio, em janeiro de 1991, Cássia e eu ainda não sabíamos exatamente porque estávamos vindo para cá e não para São Paulo, de onde partíramos para nos juntar ao projeto pioneiro desenvolvido por Francisco Barreto, em Sergipe, fundado em uma práxis que, hoje, chamamos de sintrópica. Não sabíamos, até então, que iríamos colaborar para plantar os Upadeśas, ou sementes da cultura sintrópica no Rio de Janeiro. As linhas que se seguem discorrem sobre alguns aspectos da disciplina que nos orientou neste longo processo e que é nosso tema principal desde o artigo inaugural do livro-blog, "A Meditação segundo a Bhagavad Gītā", que celebrava o Dia do Mestre. Em seu sentido mais profundo o termo "mestre" denota o  "Ācārya", o mentor ou guru espiritual, cuja missão de vida pode ser resumida na máxima: "Eu não vim para te ensinar, eu vim amar. O amor te ensinará". 

Upadeśa: o ensinamento iniciático sobre a práxis fundada no amor e na meditação

"Onde quer que você esteja, seja a alma do lugar" – esta frase, atribuída ao poeta Jallaludin Rumi (1207 - 1273) e utilizada no poema "O Silêncio", de autoria de Chico Xavier, representa um importante upadeśa, ou ensinamento iniciático. Os upadeśas são originados a partir dos upāyas, ou conceitos transcendentais. Upa-aya, upa-deśa e upa-niṣad são termos relacionados, que guardam certo grau de parentesco. Upāya representa a centelha de luz que se desprende do coração. Upadeśa expressa o processo, de coração a coração, de revelação e assimilação de upāyas (conceitos transcendentais), dando origem a uma Upaniṣad – termo que significa algo como "sentado aos pés do Mestre", em referência aos textos filosóficos produzidos a partir dos encontros do Mestre com os seus discípulos. A Gītā-upadeśa, ou ensinamento iniciático sobre a Bhagavad Gītā, nos permite compreender o texto como um tratado sobre a práxis sintrópica e a arte e a ciência da meditação, ou seja, como uma Dhyāna Upaniṣad. Este entendimento prático do diálogo da Bhagavad Gītā coloca ao nosso alcance os processos de harmonização e cura, individual e coletiva, pelo coração. 

A disciplina pessoal de que trata a Gītopadeśa, de início, é como um caminho novo, ainda em formação, que necessita ser trilhado muitas vezes, para deixar um sulco no meio da mata dos pensamentos da nossa mente. Até que o novo caminho se forme e o antigo vá sendo tomado pela mata do esquecimento, é a lembrança do novo que nos impedirá de voltar a trilhar pela via confortável dos velhos vícios. Quando um padrão é formado e se impõe como um vício, o indivíduo dificilmente consegue reter por muito tempo na memória o que vem do coração e, por si só, libertar-se. Ele necessitará de um ambiente adequado e do convívio com seres que permitam que a sua vontade vá, aos poucos, se restabelecendo e se impondo sobre os impulsos irracionais, originados pelos hábitos formados. Estes, pela repetição, tornam-se difíceis de serem superados, pois adquirem o volume e a força avassaladora das correntes dos rios, que não se deixam represar.

Desta forma, quando do mundo chegarem estímulos negativos, que nos afastam do eixo sintrópico do coração, temos que nos lembrar da nossa disciplina e nos manter firmes em nossa práxis. Não podemos deixar de tratar as pessoas como se já fossem tudo o que podem vir a ser; ajudando-as a se tornarem aquilo que são capazes de ser (Goethe). É assim que se dá, em nós e no outro, a cura pelo coração.  “Entrego, confio, aceito e agradeço...”  Ao abrirmos esta nova picada, contribuímos para que as velhas trilhas, aos poucos, vão se apagando. A cura da alma se inicia com esses pequenos propósitos, ou saṃkalpas, de ir se abandonando os velhos caminhos e seguir a luz da via altruísta do amor e da sabedoria do coração. Antes de cada novo amanhecer, portanto, devemos reafirmar o nosso compromisso definitivo (Ananta he!) de respeitar a precedência dos anseios superiores (Śreyas) do sagrado coração sobre aqueles de natureza passional e inferior (Preyas) da mente emocional. Esta firme resolução da faculdade da vontade de não nos afastarmos da meta suprema nos torna aprendizes e instrumentos da Vontade Suprema, expressa na correspondência e harmonia que deve haver entre as faculdades da alma e aquelas exigidas para o desenvolvimento de uma comunidade justa e feliz.

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