2021-12-31

A Jornada do saṃsāra ao nirvāṇa em quarenta movimentos

​A Bhagavad Gītā no Mahābhārata:​
Sanjaya narra para o rei cego Dhritarashtra a revelação do Śuddha Yoga



As quarenta proposições a seguir ilustram como o Śuddha Yoga, revelado na Bhagavad Gītā sob a luz de śraddhā, nos conduz, por meio da arte e da ciência da meditação, do saṃsāra ao nirvāṇa. 

01. Cada novo dia é uma oportunidade de iniciação na heroica jornada do saṃsāra ao nirvāṇa. Para que esta iniciação ocorra e/ou se atualize, temos que tomar a resolução firme de não cair ante o desânimo e todas as demais dificuldades que forem se apresentando como provas, ou obstáculos, ao desabrochar de nossa śraddhā. Colocado em termos da filosofia grega, este desabrochar guarda semelhanças com o processo descrito na Alegoria da Caverna de Platão.

2021-12-27

A Homossexualidade no Contexto da Tradição Védica

Pārśvanātha Mandir (Janeiro de 2010)
Templo jainista do século décimo em Khajuraro

Se a partir de Freud a homossexualidade passou a ser classificada no ocidente como uma doença mental (somente em 1993 a OMS a retirou da lista de doenças mentais), na Índia a literatura sânscrita sempre preferiu considerar a existência de um “terceiro gênero” (tṛtīya prakṛti).  Desde os textos védicos, discutem-se as várias possibilidades de gênero, a homossexualidade (samaliṅgakāma), a bissexualidade (ubhayaliṅga), os hermafroditas (napuṁsakas) e os desvios de sexualidade causados pela impotência (klība). A cultura indiana constitui-se como um somatório de práticas religiosas, seitas e doutrinas contraditórias, que afirmam, ou rejeitam, a autoridade da literatura védica, conhecida como Sanātana Dharma (A Lei Eterna). O budismo, por exemplo, embora na Índia tenha sido assimilado pelo hinduísmo, rejeita a autoridade dos Vedas, tanto no Dhammapada (expressão do idioma páli que traduz o sânscrito "Dharma-pada", a via do Dharma), como em todo o restante do seu Cânone.  Então, a pergunta que se pode fazer e que pretendemos responder neste artigo é: qual é a posição da literatura sagrada da Índia e dos seus seguidores com relação ao tema da homossexualidade?

2021-12-07

Inteligência Artificial, Espiritualidade e a Alegoria da Caverna

Alegoria da Caverna de Platão
Esta semana, enquanto assistia a alguns vídeos sobre inteligência artificial (IA) e espiritualidade, deparei-me com um alerta para os perigos da IA, das redes sociais, dos celulares etc. O vídeo ilustrava, a partir da Alegoria da Caverna de Platão (veja aqui), como a internet podia nos afastar da "realidade" e de nós mesmos. A Alegoria da Caverna, descrita mais abaixo, discute os fundamentos da realidade de forma bastante similar à Bhagavad Gītā. Tanto o texto de Platão como o do lendário sábio Vyāsa postulam a existência de uma realidade eterna, que transcende a existência mundana, experimentada pelos sentidos. A libertação da caverna simboliza a libertação da mente do seu funcionamento orientado pelas aparências (BhG 2.67). Na Alegoria da Caverna, o homem vê a luz do sol fora da caverna e retorna para salvar os seus companheiros, mas estes não o podem compreender. Pelo contrário, o ridicularizam e o condenam à morte. O texto de Platão pode ser considerado uma resposta à condenação de Sócrates. Sócrates era aquele homem liberto, que recolhera os seus sentidos dos objetos dos sentidos, tal qual a tartaruga recolhe os seus membros para debaixo do casco (BhG 2.58), e que aprendera a se deixar iluminar pela luz do sol do seu coração. 

2021-11-10

O desenvolvimento da hagiografia de Francisco Barreto

Este artigo discute a hagiografia (Sūrya-charita) de Francisco Barreto (25.11.1950 – 13.11.2020) e presta-lhe uma homenagem póstuma nesta semana em que se celebra o primeiro ano da sua passagem. Francisco faleceu na sexta-feira, dia 13 de novembro de 2020, pouco antes da meia noite. O seu sepultamento deu-se na Fazenda Mãe Natureza, conforme o seu desejo. O desenvolvimento da hagiografia de Francisco, sob a forma de uma espécie de “memorial do futuro”, baseia-se em passagens criteriosamente selecionadas de alguns de seus vídeos, deixados por ele sob a minha guarda e responsabilidade. Este memorial (veja aqui) vem sendo desenvolvido em conformidade com as orientações do próprio Francisco, bem como do nosso compromisso com os ideais da Universidade do Coração, definidos em nossa casa, no ato da sua criação, nos dias de 03 a 05 de fevereiro de 2012.

2021-11-06

Meditação e Espiritualidade: Referências para Estudo e Pesquisa

Apresentamos a seguir uma pequena seleção dos recursos audiovisuais, das referências bibliográficas e dos sites recomendados para consulta. Todo este material foi organizado tendo-se em conta a seguinte espinha dorsal, que estrutura esta disciplina segundo três metáforas e três mantras principais: (1) a metáfora dos dois pássaros; (2) a metáfora do cisne; (3) a metáfora da quadriga; (4) o mantra AUM (OM); (5) o mantra Haṃsa; e (6) o mantra OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA.


I. SELEÇÃO DE VÍDEOS PARA ESTUDOS INTRODUTÓRIOS
E/OU APROFUNDAMENTO

1. O que é meditação segundo a Bhagavad Gītā?

Os três vídeos abaixo ilustram como realizar a meditação do coração, de que trata a Bhagavad Gītā. A marca característica (lakṣaṇa) dos praticantes das formas superiores de meditação (veja aqui) é a capacidade que desenvolvem de agir de forma amorosa e altruísta, em conformidade com a consciência da verdade e da justiça, expressões da lei sintrópica universal (Ṛta). A meditação nos emancipa da sujeição à nossa materialidade instintiva e promove o desenvolvimento do altruísmo, característico da consciência espiritual.

2021-10-28

Dinacaryā: cresça por meio daquilo que você passa

Espiritualidade é ter a vida como o maior guru. 

Dinacaryā (दिनचर्या): 
a disciplina sintrópica (caryā) diária (dina)

De que valem as prescrições inflexíveis de quaisquer disciplinas religiosas, quando se alcançou o imo do coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que nos dita o ritmo próprio e sagrado da nossa respiração? A partir do momento em que podemos afirmar, com convicção, "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação", não há mais lugar para as rígidas disciplinas externas. A disciplina do Ser torna-se uma exteriorização do nosso próprio sentimento sintrópico ou altruísmo biológico, bem como da nossa rotina diária de ajuste e sintonia fina da mente com o sagrado no coração. Tal ajuste sintrópico, realizado com vistas a se colocar o amor universal em ação, promove a gradual transmutação das energias entrópicas e materiais que alimentam os cinco sentidos e a mente ao longo do dia, suprindo o corpo de Prāṇa (energia vital). Este é o sentido do Dhyāna Mantra “Haṃsa”

“Haṃsa” simboliza o processo de individuação do Ser. Literalmente, a expressão “Haṃ-sa” significa “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”. O termo “Haṃsa” significa “cisne” e representa o Espírito (Ātman), ou seja, "o fogo ardente do coração" ou "a presença da paz e do amor em ação". O Dhyāna Mantra traz implícito o entendimento de que devemos renunciar (saṃnyāsa) a todo alimento e estímulo, recebido pelos cinco sentidos e pela mente, caracterizado pelo descontrole ou pela violência. Ele representa um convite para que nos consagremos (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúsculo desafio que a vida nos apresenta uma oportunidade de disciplina interior (tapas), silêncio do ego (o yajña da naiṣkarmya ), e doação de si mesmo (dāna).

2021-10-15

Onde quer que você esteja, seja a alma do lugar . . .

Há exatos cinco anos esta reflexão canônica tinha início, com o artigo "A Meditação do Coração segundo a Bhagavad Gītā", celebrando o Dia do Mestre, este interpretado, principalmente, em seu sentido mais profundo de Ācārya, mentor, ou guru espiritual, cuja missão de vida pode ser resumida na máxima: "Eu não vim para te ensinar, eu vim amar. O amor te ensinará". É exatamente este o espírito de todo o compêndio, que reflete sobre a educação maiêutica (oposta às atuais tecnologias da deseducação) e busca fundamentar a arte e a ciência da meditação, em conformidade com os ideais sintrópicos da nascente Universidade do Coração, da qual somos colaboradores.

Quando chegamos ao Rio, em janeiro de 1991, Cássia e eu ainda não sabíamos exatamente porque estávamos vindo para cá e não para São Paulo, de onde partíramos para nos juntar ao projeto pioneiro desenvolvido por Francisco Barreto, em Sergipe, fundado em práxis que, hoje, definimos como sintrópica. Não sabíamos, até então, que iríamos colaborar para plantar, no Rio de Janeiro, as sementes daquela cultura sintrópica, desenvolvida em torno das práticas de meditação do coração e dos ideais da espiritualidade laica e pura da Universidade do Coração. Se há uma palavra que abranja e resuma o segredo deste processo de germinação daquela práxis, esta palavra é "sintropia". As linhas que se seguem, portanto, pretendem sintetizar a disciplina pessoal e sintrópica, aprimorada ao longo dos anos, com vistas a nos aproximar da nossa meta.

2021-10-14

Bhāvana Namaḥ: A Meditação e a Universidade do Coração

Embora o primeiro esboço deste texto tenha sido elaborado em 28.01.12, uma semana antes da vinda de Francisco Barreto ao Rio de Janeiro com alguns voluntários da Grande Síntese para o estabelecimento da pedra fundamental da Universidade do Coração
Francisco Barreto (05.02.2012)
, a sua conclusão está sendo possível somente agora. Quando eu comecei a escrever este texto havia há pouco concluído os três anos do meu pós-doutorado com bolsa da FAPERJ (Processo E-26/101.733/2008-Bolsa; e matrícula 2008.0660.0) na Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ, responsável pela implementação do Laboratório de Estudos sobre a Índia e Ásia do Sul (LEIAS) na UFRJ, conforme previa o convênio de cooperação técnica número 7/2007, celebrado entre a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Por questões políticas, o projeto de implementação do LEIAS foi cancelado, impedindo o estabelecimento do programa regular e bilateral entre Brasil e Índia, destinado a doutorandos e mestrandos da UFRJ interessados em temas relacionados à história, cultura e economia do subcontinente asiático.

2021-10-11

No silêncio deste dia que amanhece . . .

A Bhagavad Gītā simboliza o
Dhyāna Mantra Haṃsa
I. PREPARAÇÃO PARA A  MEDITAÇÃO SINTRÓPICA

Sentados em uma posição confortável e totalmente relaxados, com o pensamento concentrado entre as sobrancelhas, os olhos fechados, respiremos suavemente, com amor, com alegria e com paz. Imaginamos estar ante a presença amorosa dos seres celestiais. Contemplamos esta imagem amorosa, sem nos preocuparmos em visualizá-la, do mesmo modo que fazemos quando sentimos saudades de um ente querido, que está distante. Com o pensamento concentrado entre as sobrancelhas, ocupemo-nos, unicamente, de contemplar o objeto de nossa devoção.

2021-09-30

A Bhagavad Gītā no Mahābhārata: a Filosofia Sintrópica na Práxis

A filosofia sintrópica se estabelece como uma escuta do coração, na forma de um diálogo interior, representando o diálogo da consciência, tal qual o próprio Arjuna experimenta no episódio da Bhagavad Gītā, onde se reflete sobre o mundo às avessas do Mahābhārata1, com muitos papéis do hinduísmo tradicional sendo questionados, ou se invertendo (Arjuna se traveste de mulher; os Pāṇḍavas, ainda jovens, vão viver como renunciantes na floresta, mas depois retornam para uma nova vida na cidade etc.), em função da influência, sutil e decisiva de Krishna e da sua filosofia sintrópica na vida dos Pāṇḍavas. 

2021-07-06

A essência do Mahābhārata e da Bhagavad Gītā em 108 proposições

Mahābhārata1 estabelece a filosofia do coração em torno de quatro Puruṣārthas, ou poderes do coração, explicitados no próprio corpo do texto (MBh 1.2.83). No episódio da Bhagavad Gītā Arjuna mostra-se, inicialmente confuso, sem ânimo, motivação e coragem (śraddhā). Ele não sabe como resolver o seu dilema, elucidado por Krishna ao longo do texto. Krishna argumenta que, em cada instante, somos constituídos em conformidade com a nossa śraddhā (o sentimento sintrópico, a certeza interior e o altruísmo biológico, frutos do amor em ação), a bússola que orienta o desenvolvimento da nossa capacidade sintrópica de convergir, agindo com conhecimento e amor, para o coração. Como se dá este processo? Esta questão, introduzida no vídeo abaixo, está respondida nas 108 proposições discutidas a seguir. Dramatizada ao longo de todo o Mahābhārata, e conceituada no diálogo da Bhagavad Gītā, a Filosofia do Coração funda-se na escuta amorosa do sentimento sintrópico que expressa o nosso altruísmo biológico, ou  śraddhā. Este revela-se a partir do esforço de harmonizar as vias, contrárias e mutuamente excludentes, da ação e do conhecimento (jñānakarmasamuccaya-vāda). 

2021-06-28

Mahābhārata: a filosofia sintrópica na práxis

Neste sábado, 26.06.21, tive a oportunidade de realizar a palestra “Mahābhārata1: A história da manifestação do śuddha dharma” (veja o vídeo abaixo), no ciclo de palestras do Projeto Fontes de Luz, organizado pelo Ashram Kalyāṇa do Śuddha Dharma Mandalam. O título, um tanto provocativo, indica a transgressão de certos valores no Mahābhārata, onde muitos papéis do hinduísmo tradicional são questionados, ou se invertem em função da influência, sutil e decisiva, de Krishna e da sua filosofia sintrópica na vida dos Pāṇḍavas. Arjuna, por exemplo, se traveste de mulher; os Pāṇḍavas, ainda jovens, vivem como renunciantes na floresta, mas depois retornam para uma nova vida na cidade etc.

2021-04-22

O hino de exaltação a Durgā entoado por Arjuna

Arjuna entoa o Hino à Durgā

No Mahābhārata1, instantes antes do início do episódio da Bhagavad Gītā, Krishna pede para Arjuna  invocar Durgā (Invencível), a expressão da energia sintrópica (brahma-śakti), personificada no Ṛgveda como a deidade Śraddhā.

O Hino à Durgā (Durgāstava) entoado por Arjuna, por orientação de Krishna, consta da seção 23 do livro sexto do Mahābhārata. Durgā se manifesta e abençoa Arjuna. Este hino aparece também como parte da recensão da Bhagavad Gītā extraída da ​Bhāṣya de Hamsa Yogi e editada pela organização religiosa Śuddha Dharma Maṇḍala (capítulo 1, versos 14 a 26). Esta recensão, contudo, desloca o décimo verso para o final do hino (verso décimo terceiro). Além disso, nesse mesmo verso, traz a expressão "raṇājire" (no campo de batalha) no lugar da habitual "raṇe raṇe" (de batalha a batalha). Na tradução que se segue, respeitei a ordem tradicional dos versos, mas utilizei a variante "raṇājire" para lembrar que a Gītā Bhāṣya de Hamsa Yogi é a única que contempla o Hino à Durgā. Agradeço as sugestões de tradução do Prof. Sérgio Mendes; onde não o segui, os riscos são de minha responsabilidade.