Respirar não é apenas viver;
é lembrar-se de quem se é.
1. O voo do cisne e a origem da respiração sagrada
Na tradição védica, o Haṃsa — o cisne branco — é símbolo do Ser que atravessa os mundos sem se manchar. Ele é o paramahaṃsa, aquele que distingue o real do irreal, que nada nas águas da dualidade, mas vive da luz da unidade.
Mais que uma ave mitológica, o haṃsa é um arquétipo do reconhecimento: o momento em que a alma individual (jīva) desperta para sua identidade com o Espírito universal (Ātman).
Quando respiramos com escuta amorosa, ouvimos esse cisne. Ele pousa no lago do coração e canta: haṁ... saḥ... — o som silencioso da respiração viva. Não se trata de uma técnica criada pela mente, mas do dhyāna-mantra, o mantra natural da meditação no Ser. Todo ser vivo o entoa, mesmo sem saber. O haṃsa-mantra é śuddha dhyāna: meditação pura, espontânea e sagrada.
2. O prāṇāyāma que se traduz como Bhāvana Namaḥ
No Śraddhā Yoga, essa escuta é prática sutil e entrega profunda: Bhāvana Namaḥ — rendição (namaḥ) à vibração do amor universal (bhāvana), que depura o ego ao reconhecer a unidade em todas as coisas.
Nesse estado, não basta conhecer a verdade: é preciso viver sua fragrância com fervor. Essa entrega desperta uma vontade altruísta, capaz de perceber a Grande Lei (Ṛta) velada nos ciclos do tempo e nas necessidades de cada um dos períodos do dia.
O Haṃsa Prāṇāyāma, quando vivido como dhyāna-mantra, convida a essa escuta do fogo interior — a presença silenciosa que revela a realidade sintrópica. A Kaṭha Upaniṣad diz: o prāṇa é ponte entre o manifesto e o imanifesto. Aqui, ele se transfigura:
- Cada inspiração (haṃ) acolhe a Brahma Śakti;
- Cada expiração (saḥ) expressa a śraddhā — não como devoção dirigida a algo externo, mas como percepção direta da lei que organiza os átomos e as galáxias.
Esse prāṇāyāma não se mede por tempos, mas pela dissolução da ansiedade de controle. É um prāṇāyāma śuddha — puro — porque não nasce da técnica, mas do reconhecimento da verdade viva que pulsa no sopro.
Respirar com śraddhā é deixar-se respirar. O foco não está no “como”, mas no “quem”. A respiração deixa de ser esforço: torna-se via de auto-reconhecimento.
haṃsaḥ → so’haṃ → ahaṃ brahmāsmi“Eu sou o cisne; o cisne é o Eu; e o Eu é o Absoluto.”
3. Bhāvana Namaḥ: a Arte de Amar
Bhāvana Namaḥ encontra eco no pouco conhecido mantra: OṂ haṃsaḥ so’haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā. "OM, eu sou o Eu Sou. Saudações a Yogeśvarī, Rainha do Yoga — Śrī Yoga Devī."
Este mantra expressa o êxtase do coração quando o praticante repousa no estado de testemunha (sākṣī), revelado no ritmo da respiração.
Toda disciplina espiritual está contida nesse sopro consciente:
- Inspiro Brahma Śakti,
- Expiro Śraddhā.
O Dhyāna Mantra Haṃsa não é uma técnica, mas a assinatura do despertar sintrópico. Se o Haṃsa é o ritmo, Bhāvana Namaḥ é a melodia que o orienta.
A Arte de Amar manifesta-se como o néctar que flui do coração e sintoniza o ser com as noúres — as ondas de amor universal. Esse processo, como vimos, se desdobra em cinco gestos:
- Saṃkalpa — firme resolução.
- Ṛṣi-nyāsa — interiorização da presença divina.
- Viniyoga — lembrança de Bhāvana Namaḥ como sentido do agir.
- Satya Tyāga — entrega à Vontade Cósmica.
- Upasthāna — gratidão pela união com o Sagrado.
Bhāvana Namaḥ, assim, expressa o esforço amoroso de manter sintonia com o Dharma, renunciando (saṃnyāsa) a tudo que obscurece a consagração (tyāga) da vida ao Ser.
4. Os três gestos da consciência: o sopro como yoga
Inspirar, reter e expirar — pūraka, kumbhaka, recaka — deixam de ser tempos do ar e se tornam modos do Ser:
- Pūraka: acolher a unidade. Inspirar é reconhecer que tudo vem do Uno.
- Kumbhaka: repousar no centro. A consciência se recolhe como chama protegida do vento.
- Rechaka: entregar-se ao todo. Expirar é unificar-se, como oferenda sutil de si mesmo.
Esse ciclo não visa um fim — ele revela um estado. O Haṃsa Prāṇāyāma é o fim da técnica e o nascimento da arte interior; da ação que nasce do centro e se dissolve em paz no mundo.
Desse ritmo primordial nasce a percepção direta (pratibhā), que estremece nossa essência e revela a tessitura sintrópica da existência em cada instante do dia.
5. Dhyāna Mantra: a meditação que começa no coração
A mente não precisa se calar para que haja meditação — basta que ela se renda ao coração. Quando a escuta se volta para o sopro, o silêncio emerge por si. A inspiração diz: “Eu sou” (haṃ). A expiração responde: “Ele é” (saḥ).
Assim, entre o eu e o Outro, nasce a unidade — não como ideia, mas como experiência. Essa prática não exige tempo marcado, nem qualquer postura externa, mas a compostura de quem toma o verdadeiro assento do Ser.
Ela pode ser praticada em todo lugar: em silêncio, em movimento, tocando, sorrindo, vivendo.
Onde houver respiração consciente (Haṃsa Prāṇāyāma), haverá esta meditação viva (Dhyāna Mantra).
Como uma chama que não vacila no abrigo do vento, tal é o yogin cuja mente repousa no Ser. — Bhagavad Gītā 6.19
O Haṃsa Prāṇāyāma, vivido como Dhyāna Mantra, é esse abrigo. Não para fugir do mundo, mas para agir a partir do centro — onde o sopro do Ser não cessa.
Próximo texto: O Prāṇāyāma como Três Gestos do Ser
Rio de Janeiro, 02 de junho de 2025
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