Pārśvanātha Mandir (Janeiro de 2010) Templo jainista do século décimo em Khajuraro |
O hinduísmo, em geral, pode ser compreendido como um sistema religioso bastante tolerante com relação à homossexualidade. Enquanto no ocidente a homossexualidade continua a ser um tópico associado ao preconceito, ao ódio e à violação de direitos individuais, no hinduísmo cada caso é considerado a partir do seu contexto, de acordo com as circunstâncias. E isto porque o entendimento particular que cada um tem do dharma (o sagrado, a lei eterna) é sempre condicionado pelas circunstâncias culturais, que nos possibilitam apenas uma aproximação parcial à verdade absoluta, ao Sanātana Dharma. Para o hinduísmo, a verdade absoluta permanece sempre velada e suas expressões relativas sempre se dão condicionadas pela cultura, pela língua etc. Por isto, não são as crenças, nem os dogmas, que unificam os distintos pontos de vista presentes nas inúmeras expressões da religiosidade popular. As crenças hinduístas são tão livres e variadas quanto o são as possibilidades da imaginação humana. Daí se dizer que há mais deuses e divindades no panteão hindu que indianos na Índia. O hinduísmo não tem uma Bíblia, um único livro sagrado onde toda a verdade absoluta e inquestionável está revelada. Pelo contrário, tem muitos livros sagrados e com pontos de vista contraditórios. Daí se dizer que a unidade do hinduísmo está em seu aspecto dialético e pragmático. Na ausência de uma referência única como a Bíblia, os indianos se apoiam primeiro nas tradições de suas próprias famílias, as quais se respaldam na figura de um preceptor, que pode ser um sacerdote (guru) ou um scholar (paṇḍita). Por isto, em questões controversas, como as relativas à homossexualidade, nem sempre há soluções concordantes entre os diversos preceptores.
Enquanto a Bíblia afirma claramente que não há salvação para os homossexuais (1 Coríntios 6:9), que a homossexualidade é antinatural e pecaminosa (Levítico 18:22) e deve ser punida com a sentença de morte (Levítico 20:13); as Escrituras Sagradas da Índia, embora privilegiem a heterossexualidade, não deixam de reconhecer a homossexualidade como um fenômeno natural. No âmbito do hinduísmo, tudo o que ocorre na natureza é um fenômeno da natureza e, consequentemente, faz parte da natureza. Desse modo, o comportamento homossexual seria “natural” a alguns grupos. As Escrituras, entretanto, não tratam da vida erótica em nenhuma de suas formas, uma vez que esta temática não é o seu objeto e sim de textos como o Kāma-sūtra, onde se discute, por exemplo, (1) a inversão de papéis entre o homem e a mulher, (2) o lesbianismo e (3) o sexo oral entre homens. O texto traz referências implícitas até mesmo ao casamento (pari-graha) homossexual.
Vários códigos de conduta orientam a vida dos indianos em consonância com as diversas classes sociais (sacerdote, político, comerciante, serviçal) e, em conformidade, também com os quatro períodos principais da vida em família (período de estudante, de constituição de família, de aposentado e de busca e realização de Deus). A heterossexualidade garante a continuidade do grupo e o desenvolvimento de todo o tecido social. Está, por isto, na base mesma do hinduísmo, sendo mais “desejável” e aceita que a homossexualidade. Contudo, os hindus também reconhecem o fato de que as pessoas nascem com diferentes tendências e preferências em função dos condicionamentos desenvolvidos em vidas passadas (Lei do Karma). O próprio sistema de castas da Índia traz implícita essa ideia de que pertencer às castas inferiores significa gozar de maior liberdade e estar praticamente isento de obrigações religiosas. Para o homem primitivo e não-religioso, quase tudo é permitido. Das castas superiores, entretanto, se espera o desenvolvimento de uma consciência intuitiva, em consonância com um entendimento profundo dos textos sagrados, de modo que esta consciência possa voltar-se para uma identificação crescente e infinita com a essência mesma da Suprema Realidade.
Em termos de sexualidade, portanto, a tensão maior no contexto do hinduísmo não se dá entre heterossexualidade e homossexualidade e sim entre a sexualidade ativa e a progressiva abstinência sexual, que parece associada à escuta interior do coração e, consequentemente, ao progresso espiritual. Para se compreender o sentido desta escuta, podemos nos valer de um conselho de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus, em uma carta de julho de 1903, onde Rilke sugere um primeiro passo para se aprender a lidar com os segredos do coração. Ele diz:
Tenha paciência com todas as coisas insolúveis em seu coração e tente se afeiçoar às próprias questões como se fossem de um quarto trancado, ou como livros escritos em uma língua desconhecida. Não busque agora as respostas; elas não podem ser dadas a quem não está pronto para vivê-las. E se trata de viver tudo. Viva agora as questões. Viva-as talvez aos poucos, sem notar, até chegar à resposta um dia distante.
O direito à liberdade de escolha, conforme esta escuta interior, também pode ser compreendida por meio das palavras de José Régio, em "Cântico Negro", poema imortalizado na voz de Maria Bethania, que termina com as seguintes linhas:
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
A Índia é um universo. Este pequeno ensaio baseia-se apenas na análise textual, não leva em conta nenhum dado sociológico concreto atual etc. que poderia, talvez, nos sugerir conclusões diferentes. O meu interesse e foco principal são os textos sagrados, não as leis, como a seção 377 do código penal indiano e/ou as políticas de determinados períodos e/ou regiões da Índia. O Senhor Buda, por exemplo, discute no Kālāma Sutta as limitações da razão que não se deixa iluminar e guiar pelo coração. Não é incomum os budistas argumentarem que enquanto as demais religiões se fundam na fé, no budismo a ênfase está em examinar as evidências disponíveis antes de se colocar o coração no caminho. Como nos alerta o Senhor Buda, a única fé digna deste nome é fé na escuta do coração, a fé-em-si-mesmo, que deriva do amoroso sentimento intuitivo, simbolizado pelo coração. A via de realização da essência do sagrado em nosso coração implica em se viver de forma coerente com o que se pensa e acredita. É consenso nas tradições indianas que cada pensamento que cultivamos contribui na forja do nosso caráter. Logo, o caráter seria a obra de cada um. Semeamos o nosso próprio destino com a nossa conduta. Daí, em suma, no dizer de Aristóteles, para o bem ou para o mal, que o homem se torna aquilo que ele repete repetidas vezes repetidamente. . .
Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 2021
Este texto deveria ser apresentado num simpósio.
ResponderExcluirInteressante a questão da sexualidade, “terceiro gênero” para o hinduísmo.
Muitos desconhece isso, isto é, dos indianos serem mais tolerantes com relação à homossexualidade.
Grato pelas considerações. A Índia é um universo. Eu me baseei apenas na análise textual, não levei conta nenhum dado sociológico, concreto etc. que poderia, talvez, nos levar a conclusões diferentes.
ExcluirJaya ! Turci.......
ResponderExcluirMagnífico texto......esclarecedor, necessário......
Vivi isso na Índia.....principalmente em Badrinath, qdo fomos conhecer a morada dos sacerdotes do templo de Narayana.....e claramente, esse 3º gênero a que vc se referiu, se fez evidente.
Ashram Sarva Mangalam e Naradeva Shala trabalham com esta visão...
Parabéns pela clareza de idéias, faz toda a diferença......
Shantirasthu,
Devi Dasika,
Grato, Margareth, pelo seu testemunho e pelas suas palavras gentis, de aprovação. Considerando o seu trabalho e envolvimento com a cultura indiana, fico feliz de saber que estamos na mesma sintonia (aliás, em sintonia desde os tempos do Ashram da Marinês Peçanha, na rua Aurélia, e do saudoso Sri Vajera, com quem estudamos na mesma turma!). Shantirasthu!
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