2022-02-28

O Dhyāna Mantra

O Dhyāna Mantra “Haṃsa” está representado
no diálogo da Bhagavad Gītā.
As Escrituras Sagradas afirmam que a chave para a harmonização da mente está na compreensão profunda da inspiração (pūraka) e da expiração (rechaca). 
A mente e o processo de respiração representam dois aspectos da Consciência estreitamente relacionados entre si. A respiração irregular, típica da mente inquieta, é também fonte de inquietação. O foco na observação da respiração no início das práticas de meditação, nos leva a acalmar a mente. Entre os movimentos contrários de inspiração e expiração, ocorre uma fração de segundo de não-movimento, como nos pêndulos, que antes de mudarem de sentido, param completamente por um instante. É nesse instante de quietude, entre os sons produzidos na inspiração (haṃ) e na expiração (sa), que ocorre a unificação dos campos interno e externo do ser. Nesse momento em que a respiração permanece suspensa, antes de cada inspiração, o Ser se manifesta no silêncio. 

Segundo as Escrituras védicas, a inspiração faz o som “haṃ”, e a expiração, o som “sa”. "Haṃ-sa" representa, desta forma, o mantra natural do processo de respiração, também chamado de ajapa-japa, repetição sem repetição, porque não é repetido oralmente, nem contado em contas, como os são os mantras em geral. Esse mantra ocorre com a respiração e para ouvi-lo é preciso observá-la pulsando em nós, enchendo-nos de prāṇa, a força vital oriunda da Consciência Suprema, que dá vida ao nosso corpo físico.

No instante em que a respiração permanece suspensa, após cada expiração, o Ser se recolhe. Daí que a vida se manifeste no corpo com a primeira inspiração e o abandone com a última expiração. Por isto, muitos iogues costumam estender o período de retenção da respiração após a inspiração e jamais no período após a exalação. Respeitando-se os tempos 1-4-1 dos śuddha prāṇāyamas, segue-se a inspiração em um tempo, a retenção em quatro e a expiração em um, sem qualquer pausa para a nova inspiração. No caso do processo natural da respiração, que caracteriza o Dhyāna Mantra Haṃsa, os tempos são 1-0-1. O tempo zero entre a inspiração e a expiração caracteriza o espaço interior conhecido como a morada do Ser em nós, referido na literatura sagrada como madhya-deśa, a região (deśa) central (madhya).

Entre os movimentos contrários de inspiração e expiração, ocorre uma fração de segundo de não-movimento, como nos pêndulos, que antes de mudarem de sentido, param completamente por um instante. É nesse instante de quietude, entre os sons da inspiração (haṃ) e da expiração (sa), que ocorre a unificação dos campos interno e externo do ser. Nesse momento em que a respiração permanece suspensa, antes de cada inspiração, o Ser se manifesta no silêncio. Esse lugar de repouso, entre a inspiração e a expiração simboliza o mesmo espaço interior que se revela entre dois pensamentos. É a morada da Consciência, o instante entre o pensamento que termina e o novo que surge. Por isto, muitos se referem aos estados meditativos, quando os pensamentos se acalmam e diminuem, como aquele estado em que a mente fica como se tivesse parada. Fica serena como as águas de um lago cristalino, sem "ondas-pensamento", refletindo, serenamente, a luz da consciência pura.

O foco na respiração no início das práticas de meditação, nos leva a acalmar a mente. Muitos místicos relacionam o mantra Haṃsa com a região do corpo caloso do cérebro, que teria a forma de um cisne, e se diz ser a área responsável pelas intuições e o desenvolvimento espiritual de uma pessoa. Desta região do corpo caloso flui o líquido cérebro-espinhal por onde ascende, quando estimulada pelas práticas de prāṇāyāma e meditação, a energia kuṇḍalinī, que conduz aos estados de êxtase, ou samādhi.

Deste modo, o Dhyāna Mantra Haṃsa nos aproxima da arte e da ciência da meditação, revelada na metáfora da Bhagavad Gītā, onde Arjuna e Krishna representam, como vimos, os dois pássaros descritos no Ṛigveda (1.164.20). Trata-se de um mantra, verdadeiramente universal, pois está presente em todos os seres e pode ser praticado por qualquer pessoa, independentemente das suas crenças e/ou religião. De início, basta que nos sentemos em silêncio, observando a nossa respiração como expressão de um  ajapa-japa mantra, cientes de que o som da inspiração é “ham” e o da expiração “sa”. Para entender o segredo do Dhyāna Mantra Haṃsa, primeiro é preciso observá-lo para começar a ouvi-lo. Embora o prāṇa, a força vital do universo, representada na respiração, seja um, nas pessoas ele se divide em  apāna e prāṇa. O ar que entra diz-se que é apāna; o que sai, prāṇa. Quando o prāṇa sai e o apāna não entra, a vida no corpo cessa. Simbolicamente, o coração (hṛdaya) é o lugar onde o prāṇa imerge, dentro e fora. No momento em que aprendemos a nos concentrar no espaço entre as respirações (kumbhaka), esses dois lugares, dentro e fora, revelam-se, na verdade, um só: a morada do Ser. Equilibrada em kumbhaka, a energia de inspiração e expiração deixa os  canais (nāḍīs)  lunar de iḍā e solar de piṅgala, associados aos dois hemisférios cerebrais, movendo-se para o delicado e gracioso canal de suṣumṇā, onde promovem o despertar da kuṇḍalinī, a energia criadora.

Em função das regras gramaticais do sânscrito (sandhi: saḥ + ahaṃ = so 'haṃ), quando a expressão “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)” é repetida em sequência, o que ouvimos é “... haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ...” tal qual temos no processo da respiração. Daí também o mantra se chamar “Haṃ so”. O significado de “Haṃsa” e de “Haṃ so” é o mesmo, assim como também o é o mais conhecido nome “So 'haṃ”, ou seja, “Aquilo sou eu”. Com a prática do Dhyāna Mantra Haṃsa, o ritmo da respiração desacelera, acalmando naturalmente a mente e fazendo com que ela se volte para o Ser, fazendo surgir a consciência sintrópica de que “Eu sou Espírito” – “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)”.

A consciência sintrópica, em suma, está sempre conosco, embora não possa ser percebida pelos sentidos. Ela se manifesta quando nos rendemos ao sentimento da unidade (Bhāvana), oculto no processo de inspiração e expiração como “haṃ-sa”, que nos conduz, naturalmente, ao estado de paz interior (śānti) e bem-aventurança (ānanda). Com o tempo, nem sequer precisamos mais nos concentrar neste mantra, para percebê-lo ocorrendo em nosso ser o tempo todo, constantemente nos estimulando a nos recordarmos de nossa identidade real. Daí este mantra ser chamado no Śuddha Dharma de Dhyāna Mantra, aquele que nos revela o mistério da respiração sintrópica e o segredo da vida.


Rio de Janeiro, 28.02.22.
(Atualizado em 15.05.23)

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