Desde os primórdios da humanidade, a música transcende a mera melodia, elevando-se como uma linguagem universal que entrelaça corações e almas. Por meio de notas, acordes e ritmos, ela nos convida a uma jornada profunda de autodescoberta, harmonia e transcendência. Neste ensaio, exploraremos a relação intrincada entre música, sintropia e a jornada humana, utilizando a Bhagavad Gītā como nosso guia sintrópico para desvendar a sinfonia vibrante de nossa existência.
Sintropia e Entropia: A Dança da Ordem e do Caos
No universo, duas forças antagônicas regem a ordem e a desordem: a sintropia, que representa a tendência dos sistemas à organização e complexidade, e a entropia, que representa a tendência à desorganização e ao caos. A Bhagavad Gītā contextualiza a lei de Ṛta, formulada no texto sagrado hinduísta Ṛg Veda, que descreve a ordem cósmica e a harmonia universal. Segundo o Ṛgveda, Ṛta (ordem cósmica, sintropia, lei, verdade) representa a lei geral da necessidade, que regula a operação do cosmos e de todas as coisas. O Ṛg Veda menciona a lei de Ṛta em diversos hinos, como no hino 10.129, que afirma: "Ṛta é a verdade, Ṛta é o fundamento, Ṛta é a essência do que é."
A música, desde os hinos védicos cantados em rituais religiosos até as composições contemporâneas que nos tocam profundamente, é uma expressão vibrante da sintropia. Por meio da sua estrutura e harmonia, ela organiza o caos sonoro, criando melodias que nos convidam à contemplação da ordem e da beleza do universo. Diversos estudos acadêmicos exploram a relação entre Ṛta, música e cosmologia no hinduísmo. Alguns exemplos incluem Music and the Cosmos in the Vedic World de Gavin D. Flood (1996) e Sound and the Sacred in the Vedas de Michael Witzel (2001). Este entendimento também está presente na filosofia grega. Por exemplo, na República, Platão defende a importância da música na educação dos cidadãos. Para ele, a música era mais do que apenas entretenimento; era uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento da alma e para a construção de uma sociedade justa e harmoniosa. Platão acreditava que a música certa poderia moldar o caráter das pessoas, promovendo virtudes como a coragem, a justiça e a temperança.
O Sentimento Sintrópico, a Vontade e o Cérebro Reptiliano: Uma Sinfonia Complexa
Em nossa jornada pela vida, somos guiados por duas forças distintas, mas complementares: a vontade, a faculdade sintrópica que nos impulsiona em direção ao transcendente, e os impulsos do cérebro instintivo, reptiliano, que nos conectam ao mundo material e entrópico. Embora aparentemente antagônicas, essas forças coexistem harmoniosamente em nosso ser, compondo uma sinfonia complexa e dinâmica. A vontade, guiada pelo sentimento intuitivo e pelo anseio de transcender os limites do mundo físico, nos direciona para a compreensão da unidade e da harmonia cósmica, simbolizada na literatura sagrada pelo termo “Ṛta”. Por outro lado, os impulsos da parte mais primitiva do cérebro humano, enraizados em nossa natureza animal, nos direcionam à busca por sobrevivência, reprodução e segurança. A vontade nos permite transcender a nossa natureza inferior e egóica, organizada a partir dos instintos básicos desta parte reptiliana do cérebro, direcionando-nos para a compreensão da lei de Ṛta, que nos revela que somos expressões de uma única vida e que ela anima todo o universo.
A Bhagavad Gītā utiliza a linguagem musical para transmitir seus ensinamentos sobre o sentimento sintrópico de forma profunda e inspiradora. O verso BhG 10.22 apresenta o Ātman (o princípio espiritual, simbolizado no alento vital) como a essência de todas as manifestações, comparando-o ao Sāma Veda, uma das quatro coleções de hinos védicos destinados a serem entoados em melodias específicas. Esta passagem sugere que, assim como o Sāma Veda é a essência da música nos Vedas, o Ātman é a essência de tudo, revelando que o universo é uma sinfonia vibrante, onde tudo está interligado e interconectado.
Śraddhā: A Vibração do Sentimento Intuitivo e a sua Conexão com a Ciência
A ciência vem desvendando os mecanismos cerebrais que nos conectam ao transcendente, demonstrando que práticas espirituais como a meditação podem ativar áreas específicas do cérebro, associadas à compaixão e à conexão com algo maior que nós mesmos. Ela comprova que quando a mente se torna mais clara, calma e focada, um sentimento profundo surge em nós, reduzindo a sensação egóica de separação e reforçando a de união com tudo o que existe. A literatura sagrada da Índia denomina este sentimento como śraddhā.
Śraddhā representa o compassivo sentimento sintrópico e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto. Śraddhā representa a força que nos impulsiona a superar obstáculos e alcançar objetivos aparentemente impossíveis, sem se deixar traduzir meramente como uma expressão de fé religiosa. Por isto, é importante distinguir este sentimento de confiança interior da mera boa fé, que pode ser objeto de manipulação. O afeto denotado por śraddhā representa a força amorosa que move as pessoas, conectando-as em um nível profundo e construindo relacionamentos sintrópicos. Este sentimento possui uma dimensão racional e intuitiva, conectando-nos à essência vibrante do universo e à busca pela verdade. Ele nos conecta à musicalidade do universo e se traduz, em parte, pelo conhecido termo “axé”, que expressa um conceito central da cultura afro-brasileira e que simboliza a energia vibrante que nos guia na busca pela verdade e pela construção das relações afetivas significativas. Os versos da canção “Andar com Fé”, de Gilberto Gil, "Andar com fé eu vou que a fé não costuma faiar...", podem ser interpretados como uma expressão sincrética desta força transformadora e inabalável, designada como axé. O axé ecoa a busca pela verdade e pela realização, conectando-se à śraddhā em sua essência vibrante. A fé por si só, de outro lado, embora possa ser um sentimento nobre, constitui antes a base e o fundamento da mentira e da falsidade. As pessoas maliciosas sempre se valem da boa fé daqueles que facilmente acreditam em qualquer coisa e se deixam ludibriar. Em contraposição a esta boa fé medieval, a cultura sincrética e progressivamente sintrópica do Brasil aproxima o axé à fé interior em si mesmo, tal como expressa pelo cogito cartesiano, que jamais se afasta das evidências racionais da verdade. Deste modo, possibilita o resgate do entendimento da essência de śraddhā, tal como expressa na Bhagavad Gītā.
Conclusão: A Sinfonia da Alma
A música, como expressão vibrante da sintropia, revela-se como uma poderosa ferramenta para nos conectar com a nossa vontade interior e transcender os limites da natureza material. Ao explorar os mistérios da música, sintropia e consciência, abrimos caminhos para uma jornada de autodescoberta e transcendência. A ciência vem demonstrando como os sentimentos sintrópicos nos direcionam para a construção de uma vida plena de significado, realização e conexão com algo maior que nós mesmos. Ao desvendar os mistérios do cérebro e da consciência, ela nos possibilita embarcar na sinfonia vibrante de nossa existência, buscando harmonia, significado e conexão com algo maior que nós mesmos.
Rio de Janeiro, 01.05.24.
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