2018-10-29

Não há um caminho para a paz; a paz é o caminho

​Em nossa busca pela paz, muitas vezes esquecemos que a verdadeira batalha não ocorre no mundo exterior, mas dentro de nós mesmos. Essa percepção profunda é transmitida pela sabedoria universal da Bhagavad Gītā, ​o texto central do épico Mahābhārata. Não devíamos nos esquecer jamais, conforme ensina o épico, que o exterior apenas reflete o nosso interior. A verdadeira batalha é aquela que se reflete no mundo como o esforço para se vencer a si mesmo e não ao próximo. Não é a luta de gêneros, de etnias, de classes, nem se dá entre estereótipos de esquerda e direita. Daí a UNESCO expressar em sua Declaração sobre a Cultura da Paz, formulada em 1999, a compreensão de que a a paz verdadeira não pode ser alcançada apenas por meio de soluções externas: "Uma vez que as guerras se iniciam na mente humana, é na mente que devemos construir os mecanismos de defesa da paz."

A verdadeira revolução é a revolução do altruísmo, conforme já tratei em outro artigo (ver aqui). ​O altruísmo, baseado em estudos científicos recentes, é uma qualidade inerente à natureza humana e pode ser cultivado e desenvolvido. A adoção de uma abordagem altruísta nos permite superar as dicotomias sociais e políticas e estabelecer um terreno fértil para a paz. Essa revolução interior é a chave para a paz do coração, śānti, que buscamos. Está no entendimento do altruísmo o segredo para se compreender a paradoxal e paradigmática posição assumida pelo Príncipe e General de Guerra, Krishna, na batalha: ele não toma partido; não escolhe um lado. Em sua santa e equânime “neutralidade”, contudo, contenta aos dois lados. Propõe-lhes que escolham entre (1) tê-lo do seu lado, desarmado e sem tomar parte na batalha; ou (2) ter os seus exércitos e bens aos seus serviços. O Príncipe Arjuna escolhe ter do seu lado o Senhor Krishna, desarmado e sem tomar parte na batalha; e o corrupto Príncipe Duryodhana também fica satisfeito em poder ficar com os exércitos de Krishna. As consequências de uma e outra escolha são por demais complexas para se tratar aqui. A proposta de Krishna, em poucas palavras, ensina uma maneira inteligente e harmoniosa de resolver conflitos complexos, tais como os experimentados no Brasil atual. Ela revela, acima de tudo, que devemos nos alinhar com aqueles que têm o poder de amar, antes que amor ao poder, como se vê nos discursos de ódio que ainda  polarizam o Brasil, afastando-o do mundo moderno e civilizado. 

De um lado, os defensores de uma predatória ética neoliberal; de outro, aqueles que ainda professam o cristianismo-marxista-ateu do século XIX, característico das instituições sindicais e movimentos sociais. O mal de ambos é o mesmo que nos assola desde o obscuro período medieval: a insistência em ver no outro os demônios que cada um traz em si mesmo. A maioria de nossa classe política, muito provavelmente, jamais ouviu falar do Mahābhārata, o texto que trata exaustiva e sublimemente de todas as manhas e artimanhas políticas e que também promove o altruísmo natural e biológico, única base de legitimação das revoluções. O documentário "Altruism Revolution" (2015) apresenta os mais recentes experimentos da área científica, provando a existência do altruísmo biológico na natureza e ilustrando como ele pode ser cultivado e desenvolvido.

Ainda temos pela frente, em suma, um longo processo antes que cessem os gritos de guerra e a exaltação do confronto. A paz que almejamos ainda não é a paz verdadeira, a paz do coração, śānti. Quando muito, é apenas a “pax” imperialista da tradição romana, mantida sob a ponta da baioneta, em defesa de interesses egoístas e valores mesquinhos, de classe.


Rio de Janeiro, 29.10.18.
(Atualizado em 31.03.20.)

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