2020-10-31

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (IV) Śraddhā

Este texto é o quarto da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020).

A experiência fenomenológica de Arjuna é ainda algo muito pouco explorado. Esta experiência retrata como o desenvolvimento de śraddhā corrige e atualiza o seu entendimento védico da realidade, conduzindo-o ao encontro consigo mesmo, no coração. Em função do caráter mais sectário e dogmático da literatura devocional dos Purāṇas e do próprio hinduísmo, o conceito designado por śraddhā sempre teve a sua importância ofuscada por bhakti (devoção, fé). Nesses textos a importância da ação costuma ser desprezada e bhakti aparece como o principal veículo para a salvação. Estabeleceu-se, desta forma, a leitura ainda corrente da Bhagavad Gītā que insiste em desconsiderar a real função teológica de śraddhā no texto. Daí a opção frequente de se privilegiar bhakti e traduzir śraddhā como “fé”, tal como ainda se vê em muitas traduções[1]. É śraddhā que explica a mudança de estado de ânimo de Arjuna e a sua consequente decisão de acolher o conselho de Krishna. No contexto da Bhagavad Gītā, portanto, śraddhā é mais importante e central que bhakti, porque se apresenta como condição suficiente para resolver o dilema de Arjuna (TURCI, 2007a).

2020-10-23

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (III) A Teoria de Verdade

Este texto é o terceiro da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020). 

A epistemologia de que se vale Krishna na Bhagavad Gītā deriva da milenar filosofia do sāṃkhya, segundo a qual a matéria possui três qualidades básicas, denominadas, respectivamente, sattva (harmonia e equilíbrio), rajas (movimento e paixão) e tamas (inércia e indolência). De acordo com o sāṃkhya, em cada situação da vida de um indivíduo, dependendo do estímulo interno do espírito, predomina uma dessas três qualidades. Por isto, os indivíduos também podem ser classificados, em conformidade com as suas inclinações, como sáttvicos, rajásicos e tamásicos. Os três guṇas são os responsáveis pela produção de todos os pares de opostos da realidade fenomênica deste mundo dual: afeto e aversão; prazer e dor; amizade e inimizade etc. Estas três qualidades (triguṇas) da realidade material não existem isoladamente, em forma pura, mas sempre conjuntamente, com uma predominando sobre as outras duas e compondo todo o espectro, tanto da realidade subjetiva, como objetiva. Em termos simples, o predomínio de sattva denota o estado harmonioso e equilibrado entre matéria e espírito, característico do funcionamento ātma-para (espiritualista), discutido na seção anterior. O predomínio de rajas ou de tamas caracteriza o funcionamento guṇa-para (materialista). O guṇa sattva é indicativo da presença e predominância do princípio inteligente e espiritual, tanto quanto os guṇas tamas e rajas o são da influência e predominância do princípio material e do consequente estado de sujeição do espírito à matéria. Sattva representa a harmonia; rajas, o estado dinâmico e explosivo, típico daquilo que é colorido pela paixão; e tamas, o estado obscuro, pesado e inerte, característico do que é opaco e sem luz. Deste modo, a śraddhā tamásica pode traduzir-se, por exemplo, nos fenômenos do fundamentalismo religioso; a śraddhā rajásica, naqueles outros ocasionados pela fé apaixonada e em descompasso com a razão; e a śraddhā sáttvica, que é o objeto central da Bhagavad Gītā, pela sintonia com as intuições superiores do espírito e confiança na certeza científica.

2020-10-17

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (II) A Natureza da Meta

A Bhagavad Gītā como a Expressão Paradigmática da Metáfora Fundamental sobre a Arte e a Ciência da Meditação
Sanjaya narra o diálogo da Bhagavad Gītā
para o rei cego Dhritarashtra.

Este texto é o segundo da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020), objeto do texto anterior (ver aqui).

Parte essencial da narrativa maior do épico Mahābhārata (aproximadamente 100.000 versos), os setecentos versos da Bhagavad Gītā constituem, muito provavelmente, a primeira reportagem de guerra em tempo real de que se tem notícia (TURCI, 2007b). O episódio da Bhagavad Gītā representa a reportagem feita ao rei cego Dhṛtarāshtra em seu palácio sobre os fatos que estão se passando no campo de batalha, instantes antes do seu início. A importância da Bhagavad Gītā deve-se ao fato dela registrar o diálogo que restabelece os fundamentos perdidos da ancestral arte e ciência da meditação, conforme praticada pelos antigos sábios da tradição védica (Ṛṣis).