2024-04-05

Uma Interpretação Sintrópica da Bhagavad Gītā: Uma Ponte Entre Ciência e Espiritualidade

O conceito de sintropia (tendência em direção à ordem; o contrário da entropia), cunhado por Albert Szent-Györgyi em 1974, assume cada vez mais relevância na busca por pontes entre ciência e espiritualidade. Este ensaio propõe uma interpretação sintrópica da Bhagavad Gītā, revelando uma convergência entre a sabedoria milenar do texto indiano e a ciência moderna. Essa abordagem inovadora se torna possível ao considerarmos a quadriga presente na Bhagavad Gītā, onde se encontram Arjuna e Krishna, como uma representação da metáfora dos dois pássaros, descrita no Ṛg Veda. Essa compreensão permite estabelecer um eixo sintrópico capaz de abarcar a história, a arte e a ciência da meditação, e a gestão de processos, do meio ambiente e das pessoas.

Dualidade da Natureza Humana

Conforme sugerido em minha tese "Sraddha in the Bhagavad Gita" (2007), a expressão "sentimento sintrópico" representa a melhor tradução para o termo śraddhā na Bhagavad Gītā. Isto significa que o conceito que o termo "sintropia" designa é central para a interpretação da Bhagavad Gītā. Do ponto de vista energético, a matéria expressa a entropia, enquanto o espírito se manifesta como sintropia. Para entendermos melhor essa relação, é preciso revisitar a história do conceito de entropia. Em 1850, o matemático Rudolf Clausius cunhou o termo para dar expressão à segunda lei da termodinâmica, conhecida como a lei da entropia crescente. Essa lei define a entropia como a medida da desordem de um sistema. O que resiste à desordem é o que tem vida, e a vida, por sua vez, é um processo sintrópico que coloca ordem nas coisas.

Desenvolvimento do Conceito de Sintropia

A compreensão da vida como um processo sintrópico emerge pela primeira vez em 1941, como uma hipótese formulada pelo matemático Luigi Fantappiè. Em 1944, ele publica seu livro Princípios de uma teoria unitária do mundo físico e biológico, completando a formalização do conceito. No mesmo ano, Erwin Schrödinger, vencedor do Prêmio Nobel de Física de 1933, utiliza pela primeira vez a expressão "entropia negativa" em seu célebre livro What is Life? The Physical Aspect of the Living Cell. O passo crucial, no entanto, só é dado em 1974, quando Albert Szent-Györgyi, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina de 1937, cunha o termo "sintropia" e publica o artigo "The Concept of Syntropy" na revista Nature. Györgyi deixa claro que a sintropia representa um impulso inato da matéria viva e orgânica para se aperfeiçoar. Esse impulso natural para o florescimento do ser, que se apresenta como um sentimento, pode ser entendido como aquilo que o texto da Bhagavad Gītā designa como śraddhā, conforme temos discutido em diversos textos. Quando obstruído pelas forças materiais e entrópicas, deixa em nós um sentimento de frustração e desâmino, tal como ilustrado pelo personagem Arjuna, levando-nos a buscar pequenos prazeres, que nos afastam da via de realização espiritual. Desta forma, a partir desse marco, estabelecido por Györgyi, consolida-se o entendimento de que a evolução, longe de ser um mero produto do acaso, segue um ritmo preciso entre um polo original de energia material e entrópica e um polo final de consciência espiritual e sintrópica, tal como representado alegoricamente nos textos sagrados.

A Lei de Ṛta na Bhagavad Gītā

A Bhagavad Gītā reflete a lei de Ṛta, que rege o equilíbrio cósmico e a interação entre espírito e matéria, através da metáfora dos dois pássaros (Jīva e Ātman). Essa metáfora retrata a dualidade da natureza humana: a material (entrópica) e a espiritual (sintrópica). O Ṛg Veda utiliza o termo "Ṛta" para expressar a lei que regula o equilíbrio cósmico e ordena o funcionamento de todas as coisas do universo. Em outras palavras, Ṛta (ordem cósmica e harmonia dos contrários) representa a lei geral de interação do espírito com a matéria. Essa lei assume a forma convergente e ordenadora (sintrópica) quando predominam as forças espirituais, e a forma divergente e desordenadora (entrópica) quando predominam as forças materiais.

O Eixo Sintrópico

A partir dessa compreensão da Bhagavad Gītā, torna-se possível estabelecer um eixo sintrópico que serve de fundamento para o desenvolvimento da arte e da ciência da meditação, da meditação na ação e da práxis sintrópica, esta expressa como um modelo de gestão de processos e de pessoas.

As Três Metáforas e os Três Mantras

O eixo sintrópico subsumido na Bhagavad Gītā é composto por três metáforas e três mantras da cultura védica:
Metáforas:
  1. Os Dois Pássaros: Jīva e Ātman, um sob o domínio entrópico da matéria e o outro, simbolizando o Espírito e a sua natureza sintrópica.
  2. O Cisne (Haṃsa): Descrito em algumas Upaniṣades, simboliza a unificação dos dois pássaros. A concepção de Haṃsa (cisne, símbolo do Espírito) é utilizada pelos yogis em sentido místico para designar o casamento do “eu” (‘haṃ) com o espírito universal “ele/ela” (saḥ): Haṃ-sa.
  3. A Quadriga: A própria Bhagavad Gītā.
Mantras:
  1. AUṂ (OṂ): As três letras expressam, respectivamente, o Espírito, a Matéria, e a relação energética de identidade e contradição simultâneas entre Espírito e Matéria. Em outras palavras, a sintropia, a entropia e o equilíbrio sintrópico.
  2. Haṃsa: Conecta o ser individual (Jīva) com a realidade última (Ātman, Brahman). Segundo as Escrituras védicas, a inspiração faz o som “haṃ” e a expiração, o som “sa”. "Haṃ-sa" representa, desta forma, o mantra natural do processo de respiração..
  3. OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA: Interpretado como uma expressão do gesto de rendição de Arjuna, representante da condição humana, a Krishna, representante do Espírito Supremo.
Convergência entre a Sabedoria Sagrada e a Ciência Moderna

A interpretação sintrópica da Bhagavad Gītā revela a convergência entre a sabedoria milenar do texto indiano e a ciência moderna. Essa convergência abre caminho para uma compreensão mais profunda da natureza humana e do universo, oferecendo ferramentas para o desenvolvimento individual e social.

Análise de Diferentes Escolas

As distintas escolas de meditação, gestão de pessoas e de processos podem ser analisadas e ressignificadas a partir do eixo sintrópico revelado na Bhagavad Gītā. Esse eixo as vincula como galhos de um mesmo tronco principal, funcionando como uma ponte entre os domínios da ciência e da espiritualidade.

Conclusão

A interpretação sintrópica da Bhagavad Gītā apresenta-se como uma ferramenta valiosa para a compreensão da natureza humana e do universo. Ela oferece um novo olhar sobre a realidade e abre caminho para o desenvolvimento de uma compreensão aprofundada sobre a realidade sagrada que se oculta nas aparências do mundo, possibilitando o nosso desenvolvimento, nos planos individual e coletivo.

Referências Bibliográficas

Bhagavad Gita. (2008). Translated by J. A. B. van Buitenen. The University of Chicago Press.
Rg Veda. (2004). Translated by Stephanie W. Jamison and Joel P. Brereton. Columbia University Press.
Upanishads. (2009). Translated by Patrick Olivelle. Oxford University Press.
Fantappiè, L. (1944). Principi di una teoria unitaria del mondo fisico e biologico. Sansoni.
Schrödinger, E. (1944). What is Life? The Physical Aspect of the Living Cell. Cambridge University Press.
Szent-Györgyi, A. (1974). "The concept of syntropy". Nature, 248(5445), 411-412.
Turci, Rubens. "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (RN36089) [Doctoral dissertation, McMaster University]. Ed. ProQuest Dissertations Publishing, 2007.


Rio de Janeiro, 05.04.24
(Atualizado em 13.04.24)

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