2023-05-14

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (II)


Vida contra a Morte:
a questão central do Mahābhārata 

Há algo em comum no modo conforme os grandes seres enfrentam certas questões cruciais, face à própria morte. Sócrates, condenado à morte por envenenamento, vê na cicuta (veneno) o medicamento que lhe traria a libertação final de sua alma. Toma a cicuta em paz porque tem certeza de que vivera de forma coerente. Em comparação com a sua determinação de avançar em direção à verdade, a sua própria necessidade de se autodefender desaparece. De igual modo, Jesus, no tribunal romano, cala-se ao ser perguntado se era o rei dos judeus. Bastaria que negasse a acusação e estaria livre, conforme as regras jurídicas vigentes na época. Entretanto, prefere a morte, que fica como testemunha das verdades que professou. Ambos parecem entender a morte apenas como morte do ego, o princípio material de organização do indivíduo. 

O aclamado livro de ficção científica e filosofia Vida Contra a Morte ("VALIS" em inglês), de Philip K. Dick, ilustra brilhantemente a perplexidade humana ante a inevitabilidade da morte. No texto, Horselover Fat, um alter ego do autor, busca respostas para as suas experiências místicas, mostrando como a realidade é complexa, com múltiplas camadas de significado ocultas em nossas experiências mais cotidianas. O autor sugere ser possível transcender as limitações da mente por meio da meditação e da introspecção e alcançar, desta forma, os mais elevados níveis de consciência. O texto explora a ideia de que a existência humana é uma luta constante entre forças opostas, que necessitam ser equilibradas e harmonizadas. O universo seria regido por uma consciência superior que regularia as nossas vidas. Philip K. Dick recorre a uma visão de mundo que tem raízes profundas na literatura sagrada do ocidente e do oriente. 

Na obra prima da literatura indiana, o Mahābhārata, o texto que nos interessa aqui, esta discussão se dá em torno do par do par śraddhā (acento tônico no segundo “a”) e śrāddha (acento tônico no primeiro “a”). No Mahābhārata, instantes antes do início do episódio da Bhagavad Gītā, Krishna pede para Arjuna  invocar Durgā (Invencível), a expressão da energia sintrópica (brahma-śakti), personificada no Ṛgveda como a deidade Śraddhā. Compreendendo a medida da devoção de Arjuna, Durgā se manifestou no firmamento e, na presença de Krishna, abençoou Arjuna com a promessa de vitória sobre os seus inimigos, desaparecendo logo a seguir. A Invocação e a internalização da divindade arquetípica envolve a firme resolução (saṃkalpa) da faculdade da vontade de não se afastar da meta suprema, que é alcançar a unificação com a energia sintrópica universal (brahma-śakti), A deidade Śraddhā simboliza o poder do amor em ação e também o fogo do coração espiritual. Deste modo, a reflexão sobre a origem da vida e o enigma do nascimento e morte de todos os seres é ilustrada a partir do entendimento ritualístico de śraddhā, a energia sintrópica, presente na atuação do espírito, de śrāddha, a energia entrópica, presente nos movimentos da matéria, e da harmonização de ambas. De forma breve, o Mahābhārata pode ser compreendido como uma grande representação histórico-mitológica dos processos entrópicos e sintrópicos que regem o funcionamento da vida e do universo, conduzindo-nos, gradualmente, do saṃsāra (o mundo caótico das aparências) ao nirvāṇa (o mundo sagrado que se oculta sob as aparências). A diferença de conceitual sobre o entendimento ocidental da vida, explicitado no texto Vida Contra a Morte, de Philip K. Dick, e aquele oriental, expresso no Mahābhārata, pode ser resumido em uma única sentença: enquanto para o ocidente a morte é o que se opõe à vida, para o oriente o que se opõe à morte é o nascimento, pois a vida, enquanto expressão sintrópica da consciência, preexistiria ao nascimento e não se extinguiria com a morte. As dezoito seções do Mahābhārata apresentam um tratamento enciclopédico acerca da vida, do nascimento e da morte.

No contexto do Mahābhārata, o nascimento pode ser associado ao processo sintrópico que organiza a vida individual na matéria. Envolve a criação e organização de um corpo novo a partir de várias partículas materiais. Em outras palavras, a primeira parte da vida biológica representa um estado de ordem e complexidade que pode ser associado à sintropia. A morte pode ser entendida como um processo entrópico, ou seja, um processo gradual de decomposição, que, no limite, envolve a desintegração do corpo em seus componentes. Ou seja, a morte expressa um estado de entropia, uma vez que a ordem e a complexidade da vida são perdidas. O nascimento de uma galáxia, por exemplo, envolve o processo de composição, que resulta em um aumento da ordem e estrutura do universo. Por outro lado, a morte de uma estrela e a consequente desintegração em seus componentes envolve o processo de decomposição, que resulta em um aumento da entropia e diminuição da ordem. 

No Mahābhārata, os rituais de śrāddha (ritos funerários) representam o motivo e a ocasião para desenvolver em todos os participantes o sentimento de que o processo entrópico de decomposição da matéria física, encerra o processo sintrópico de ordenação da matéria, iniciado com o nascimento, mas não encerra a continuidade da vida sintrópica do espírito, representada na matéria como śraddhā, a força que orienta o indivíduo em direção à consciência sintrópica do universo (Brahman), a mantenedora da ordem e da complexidade de tudo o que é existente.

A consciência sintrópica do universo organiza todos os elementos que constituem um ser vivo. Por exemplo, nossos corpos são compostos de células, tecidos, órgãos e sistemas, que trabalham juntos para manter nosso organismo funcionando de forma saudável. Após a morte de um ser vivo, seu corpo começa a se decompor, e os tecidos, órgãos e células, anteriormente organizados, começam a se desfazer. A decomposição é, portanto, um processo entrópico inevitável que ocorre com a morte, ou seja, com a extinção gradual da presença da centelha divina, do fogo espiritual, que representa a presença da consciência sintrópica universal no corpo individual. Deste modo, a vida material envolve os processos sintrópicos de composição e entrópicos de decomposição. O corpo material está constantemente se recompondo e se regenerando, mas eventualmente chegamos ao fim desse processo e começamos a nos decompor. Já a vida espiritual, após a morte, representa o estado de harmonia entre estas duas forças contrárias, origem do nascimento e da morte.

Segundo o Ṛigveda, a expressão maior da verdade é Ṛta (ordem cósmica), a lei geral da sintropia, que regula e ordena a operação do cosmos e de todas as coisas. Apenas observando a natureza, pode-se afirmar que a regularidade do nascer e do pôr do sol expressa esta lei geral de necessidade, chamada Ṛta (lei, ordem, verdade) na tradição védica. Os conceitos de dharma (lei, sagrado, espiritualidade) e karma (o princípio espiritual de causa e efeito que rege as ações), discutidos na Bhagavad Gītā, derivam de Ṛta, o axioma fundamental do conhecimento védico (Brahmavidyā). Embora o termo ocorra na Bhagavad Gītā uma única vez (BhG 10.14) e com o sentido de “verdade”, o conceito geral de Ṛta permeia todo o texto. Ṛta, quando expressa de forma benevolente, torna-se satya, a verdade amorosa, que possibilita o avanço de todos os seres e de todas as ciências particulares. Conforme se infere do diálogo entre Krishna e Arjuna, as más ações e as emoções inferiores impedem o desenvolvimento do sentimento espiritual e intuitivo de Ṛta. É a fala verdadeira e amorosa (satya) de Krishna que leva Arjuna a direcionar a atenção para a percepção de Ṛta e logo, para o hábito de operar (karma) no mundo, cultivando esta sintonia com o sentimento amoroso que nos revela a verdade e a unidade (bhāvana) do cosmos e nos conduz aos estados contemplativos de meditação (dhyāna), culminando no êxtase da realização espiritual (Brahma-Prāpti). O sentimento de Ṛta conduz à compreensão da unidade que existe no cosmos, incluindo todos os seres vivos, os distintos seres espirituais, o meio ambiente, os diversos planos sutis da existência e as suas leis de funcionamento. Ele aquieta e tranquiliza a mente para que esta possa se conduzir à sua realização espiritual, quando então se torna a marca característica de quem alcançou a compreensão dos processos de “vir-a-ser” e de “cessação do vir-a-ser que é ilusório”.

No Mahābhārata, o entendimento dos processos entrópicos e sintrópicos do universo também é denominado como Ṛta, a lei cujo atendimento com plena compreensão conduz ao Nirvāṇa, expressão da vitória sobre a morte. Diferentemente da tensão descrita no texto de Philip K. Dick, onde a luta se define de forma radical em termos de vida contra a morte, o Mahābhārata descreve a vida material a partir do ciclo de saṃsāra, ou seja, o ciclo de constante composição e decomposição de todas as coisas. O Mahābhārata está repleto de imagens transcendentes oriundas dos rituais de śrāddha que nos ajudam a desenvolver a nossa śraddhā e, consequentemente, a alcançar a compreensão do mistério da vida e das suas verdades fundamentais, expressas na lei de Ṛta. Os dilemas do Mahābhārata são resolvidos, principalmente, a partir da compreensão do simbolismo dos ritos de śrāddha, que, eventualmente, levam a pessoa a despertar e a desenvolver a sua śraddhā. Estar possuído por śraddhā significa colocar todo o coração e espírito na execução de todas as ações de forma ritualística. É neste aspecto que ela reside no coração de todos os seres, simbolizando o despertar da beatitude (ānanda), que ocorre durante as revelações e as epifanias. Parte central do épico, a representação do simbolismo dos ritos de śrāddha orienta a encenação dos livros seis a nove do Mahābhārata, que nos propõem a reflexão sobre a morte e sobre o sentido da vida, conforme expressas nos textos sagrados que versam sobre Ṛta. Ao longo dessas narrativas, a pessoa é conduzida à essência mais pura do dharma e a indagar sobre a natureza da práxis capaz de aproximá-la da consciência sintrópica (Brahman) que permeia e organiza a realidade. O livro seis, Bhīṣma Parva, apresenta o início da grande batalha do Mahābhārata e introduz a discussão sobre a morte ritualística de Bhīṣma. Esse contexto nos permite discutir e integrar o par śraddhā /śrāddha por meio do drama da guerra. Quando nos afastamos do Ātman perdemos a nossa śraddhā e a nossa capacidade intuitiva de reconhecer os processos sintrópicos que orientam e harmonizam a entrópica realidade material. O rei cego perde de vista como governar; Bhīṣma perde de vista o que precisa proteger; e Karṇa perde de vista a quem ele realmente deve lealdade. O livro sete, Droṇa Parva, tem como eixo central as mortes de Droṇa e Abhimanyu, o filho de Arjuna. A morte de Droṇa ilustra o quanto a má conduta nos torna cegos para distinguir a verdade. Sua morte, como a de Bhīṣma, deve-se ao seu mal-entendido sobre o dharma e sua consequente adesão ao que era falso. Isto aprofunda a reflexão dos líderes Pāṇḍavas e dos Kauravas sobre o significado do dharma, causando dúvidas em relação à guerra que eles falharam em evitar. O livro oito, Karṇa Parva, apresenta o duelo entre Arjuna e Karṇa. Karṇa personifica aquele que decidiu colocar toda a sua alma a serviço de sua necessidade cega de mostrar lealdade e amizade àquele que não a merecia. Ele é seu próprio inimigo e o inimigo do Ātman em si mesmo. Simbolicamente, esse fato é expresso por meio de sua relação hostil com Śalya, que será morto por Yudhiṣṭhira no livro 9, Śalya Parva. 

Em última análise, quando alguém executa todas as ações como ações rituais, com fervor e devoção, tal como nos ritos de śrāddha, a pessoa desenvolve a sua śraddhā que expressa o amoroso sentimento intuitivo e sintrópico capaz de conduzi-la do saṃsāra ao nirvāṇa. É exatamente isso que os livros seis a nove do Mahābhārata sobre as mortes dos comandantes Kauravas nos mostram: como a práxis sintrópica funciona no processo da experiência humana. Śraddhā e śrāddha estão relacionados à dimensão espiritual e cultural da vida. Constituem um aspecto essencial do ciclo de vida e morte. Śraddhā expressa o processo de construção espiritual e cultural da vida, enquanto śrāddha nos conecta a este processo, uma vez que representa a forma pela qual os antepassados são lembrados e honrados após a morte.




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