2025-07-02

A Roda e o Eixo: O Foco Absoluto de Śraddhā

Quando a mente encontra o eixo do coração

A mente é uma roda em movimento. Ela gira, com seus múltiplos raios, revelando as direções da vida material, os caminhos da existência humana e os sentidos que se abrem para a alma. Essa roda é a vṛtti — flutuação, atividade, rotação interior. Movimento inevitável.

Mas há também um centro, um ponto imóvel em torno do qual tudo gira. Esse centro não é vazio. É a sede onde se aloja a presença silenciosa, estabilidade viva, o fogo sutil que ilumina sem se mover: śraddhā, o foco absoluto do coração espiritual.

Assim se inicia a contemplação do eixo e da roda. O eixo é  Ṛta, a ordem do real. A roda são as experiências, os pensamentos, os gestos, os desejos — tudo aquilo que se movimenta e se transforma no fluxo da existência. A espiritualidade não está na negação da roda. Está na sabedoria de conhecer o eixo.

Vṛtti: O Movimento Essencial

No sânscrito, vṛtti é mais que uma palavra técnica. É um conceito dinâmico, ancestral, multiforme. Deriva da raiz √vṛt, que significa girar, mover-se, ocorrer, acontecer. Ela aponta para o modo como a existência se manifesta: como giro, como processo, como forma de energia em transformação.

Em sua acepção mais conhecida nos círculos do yoga, vṛtti aparece como flutuação da mente — os pensamentos, imagens, memórias e impulsos que surgem incessantemente. É esse o sentido central dos Yoga Sūtras de Patañjali.

Mas a palavra é mais ampla. Vṛtti pode significar também modo de ser, função, modo de operar, giro do discurso, expressão de um texto. Em outras palavras: vṛtti é a dança da forma, em toda parte onde a consciência se veste de mundo. No Śraddhā Yoga, vṛtti não é apenas obstáculo. É também instrumento — a roda que faz girar a existência sagrada.

A Tradição Mental: Patañjali e o Controle

Em Patañjali, a fórmula é clara: yogaś citta-vṛtti-nirodhaḥ. “O yoga é a cessação das flutuações da mente.” (Yoga Sūtra 1.2) A mente, como cavalo rebelde, precisa ser contida. As vṛttis, como ondas do lago, devem ser aplacadas. A consciência pura (puruṣa) brilha apenas quando o lago está sereno. A meta é nirodhaḥ — cessação, suspensão, supressão das atividades mentais.

É um caminho que acredita no recolhimento completo da mente, no domínio do corpo e na extinção progressiva do desejo. Mas há algo que falta nesse percurso. Falta o coração.

A Tradição do Coração:
Krishna e a Transformação

Na Bhagavad Gītā, Krishna não manda calar a mente. Ele não recomenda a renúncia ao mundo. Ele não diz a Arjuna: “Fuja do campo de batalha e mergulhe no silêncio.” Pelo contrário: ele pede ação. Mas uma ação, purificada pelo foco. Não qualquer ação. Não ação motivada pelo desejo ou pelo ego. Mas ação como práxis espiritual, manifestação da presença do Ser.

A fórmula, então, muda. O eixo não está no nirodhaḥ da mente. Está no sthita-prajñā — a sabedoria estável, firme, ancorada no silêncio da mente egóica. A alma que age de forma impecável,  sem se agitar. Que fala, mas não se confunde. Que gira, mas com foco absoluto  em torno de um ponto imóvel: o coração em śraddhā.

Śraddhā Vṛtti: A Roda que Gira em torno do Amor

É aqui que nasce o conceito central deste texto: śraddhā vṛtti.  Não uma flutuação qualquer, mas a vṛtti orientada, domada, convertida em exteriorização sintrópica do Ser. A śraddhā vṛtti não apaga a mente. Ela reordena. Não recusa os desejos, mas os purifica. Não nega a ação, mas a torna um gesto de sintonia com Ṛta, a ordem viva do cosmos.

Enquanto o Yoga de Patañjali busca o silêncio da morte, a imobilidade absoluta da mente, o Śraddhā Yoga busca a estabilidade vibrante do coração — o eixo invisível que sustenta o giro sem se perder nele.

A Certeza que Arde
 
Śraddhā não é crença. Não é crença cega, nem fé imposta. É um foco interno que emana do coração, um  fervor lúcido, que guia o coração à verdade. É um gesto de convicção silenciosa, uma luz que não vacila, mesmo em meio ao caos do mundo. Como no instante de clareza de Descartes — o cogito que se revela como certeza inabalável —, śraddhā é a chama interior que sustenta o giro da mente sem se confundir com ele.

É a rédea que governa os cavalos da quadriga. É o prāṇa que organiza o corpo. É a intuição firme que, mesmo no turbilhão, reconhece a direção certa.

Pravṛtti e Nivṛtti: O Gesto do Espírito em Movimento

No coração da Bhagavad Gītā, Krishna apresenta dois gestos fundamentais da existência:
  • Pravṛtti: o impulso para fora, o engajamento no mundo, a ação que se manifesta.
  • Nivṛtti: o retorno para dentro, o recolhimento da alma, a renúncia silenciosa.
Ambos são movimentos da mesma roda. Um avança, o outro recua. Um manifesta, o outro recolhe. Um revela, o outro protege.

Na tradição védica anterior à Bhagavad Gītā, esses dois caminhos eram considerados excludentes. O asceta seguia o caminho da nivṛtti, retirando-se do mundo. O chefe de família, o guerreiro, o rei, vivia segundo a pravṛtti — entregando-se aos deveres sociais, aos rituais, ao fluxo das ações.

Mas Krishna revela outra via. Ele ensina que a verdadeira sabedoria não está em escolher entre agir ou não agir, mas em agir pelo não agir, com renúncia do ego. Agir no mundo sem perder o eixo, como instrumento, não como agente. Isso é agir com śraddhā.

A Práxis Sintrópica

Esse gesto de agir sem a intervenção direta do ego é naiṣkarmya, conceito que atravessa todo o Śraddhā Yoga, onde é reconhecido pelo nome de práxis sintrópica. Ela não representa nem a agitação sem consciência (pravṛtti cega), nem a renúncia estéril (nivṛtti desvitalizada). É o movimento equilibrado que brota do foco do coração — aquele que age sem apego, que recolhe sem fuga, que faz de toda ação uma meditação.

Práxis sintrópica é vṛtti regida pela śraddhā. É a roda que gira em torno de um centro luminoso. É a arte de manter o movimento sem perder a direção.

Entropia e Sintropia: A Nova Linguagem do Antigo Ṛta

Na ciência contemporânea, reconhecemos a distinção entre duas tendências opostas:
  • A entropia, princípio da desordem, da dissipação, do desgaste — força que conduz à uniformidade e ao colapso.
  • A sintropia, princípio da organização, da vida, da concentração de energia — força que resiste à morte e sustenta o milagre da forma viva.
No Veda, essa oposição já era intuída na forma da Ṛta, a grande Lei. Ṛta não é apenas ordem cósmica — é o equilíbrio dinâmico entre forças complementares, como pravṛtti e nivṛtti, desejo e desapego, nascimento e dissolução.

Na tradição do Śraddhā Yoga, essa sabedoria ressurge:
  • Pravṛtti é a energia entrópica que nos arrasta para o mundo, para a dispersão, para o jogo das formas.
  • Nivṛtti é a energia sintrópica que nos reconduz ao centro, à coesão, ao prāṇa que sustenta a vida.
A roda gira porque há um eixo. E o eixo é Ṛta  — presença imóvel, foco puro, o Ser que pulsa no coração de tudo.

O Foco Absoluto

O foco da mente em qualquer objeto é volátil. Ele se distrai, se fragmenta, se confunde. Mas o foco da mente no coração desperta śraddhā — é silencioso, constante, incandescente e só necessita nutrir-se da luz amorosa que se irradia do Espírito para manter as "rédeas", a gestão de qualquer foco objetivo da realidade concreta.

Ele não precisa se esforçar para manter-se. Ele simplesmente é. Ele irradia. Ele sustenta todos os focos na renúncia (nivṛtti) que nos reintroduz à verdadeira práxis (pravṛtti). Renunciamos ao senso de que nossa mente egóica e objetiva deve controlar o foco ao seu alcance, portando-se como se fosse o verdadeiro agente, a própria subjetividade. 

No Śraddhā Yoga, não buscamos suprimir o movimento da mente objetiva, mas transformá-lo em expressão do foco absoluto da nossa própria subjetividade. A ação concreta não é inimiga da espiritualidade — o inimigo é o esquecimento do eixo subjetivo do Espírito. Não se trata de alcançar mindfulness, a atenção plena, mas heartfulness, a consciência plena, a unificação com a sua energia, que é Amor Puro. No foco absoluto não há busca, há entrega (tyāga) de toda atividade mental ao controle do Ātman, cf. ensina o verso 18.66 da Bhagavad Gītā: sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja. ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ — Abandonando todas as variedades de deveres e disciplina da mente, simplesmente busque o Foco Absoluto do Ātman — heartfulness. A unificação com esse Outro de você mesmo o libertará de todas as ações desprovidas de foco espiritual. Nada tema!

Mindfulness, enquanto atenção plena, muitas vezes é praticada como estado de alerta desprovido de sujeito. Heartfulness é a sintonia fina com o Ser, é experimentar de śraddhā como resultado do foco absoluto na percepção sutil da Brahma Śakti, que se revela como Ṛta, a grande lei de regulação cósmica.

As Metáforas que Iluminam o Caminho

A Bhagavad Gītā, em sua pedagogia da arte e da ciência do foco absoluto, que é a própria arte e ciência da meditação, nos oferece chaves visuais e simbólicas para compreender a śraddhā-vṛtti, a disciplina do foco absoluto. Três metáforas centrais se destacam no segundo capítulo:
  • A tartaruga e os sentidos (BG 2.58). “Quando ele recolhe completamente os sentidos, como uma tartaruga recolhe seus membros, então sua sabedoria está firmemente estabelecida.” Aqui, vṛttis são os membros — sentidos que se estendem ao mundo. O sábio não os nega, mas os recolhe para dentro. Ele não se arrasta para fora. Ele repousa no eixo.
  • O barco e o vento (BG 2.67). “A mente que segue os sentidos errantes leva embora a sabedoria, como o vento arrasta um barco sobre as águas.” Aqui, vṛttis são como ventos — desejos, distrações, impulsos. Sem śraddhā, a mente é como um barco sem leme. Com śraddhā, ela encontra direção e estabilidade.
  • A noite e o dia do sábio (BG 2.69). “Aquilo que é noite para todos os seres é dia para o auto-controlado; aquilo em que todos despertam é noite para o sábio.” Aqui, vṛttis são a ilusão da realidade comum. O sábio vive em outro tempo — o tempo do coração desperto. Sua luz não é visível aos olhos mundanos, mas é intensa como sol no zenite da alma.
Estas metáforas escondem: (1) o segredo da síntese entre śraddhā e vṛtti; (2) a crítica ao nirodhaḥ como meta final; (3) a definição de śraddhā vṛtti como expressão sintrópica; e (4) o fechamento com a experiência sensível de Ṛta a partir do foco no coração, onde o Ātman se manifesta. Elas escondem o desfecho doutrinal e contemplativo proposto por Krishna na Bhagavad Gītā, que unifica śraddhā, vṛtti e ta numa só práxis viva de unificação com o Ātman.

Vṛtti: De Obstáculo a Veículo

No sistema clássico de Patañjali, as vṛttis — flutuações da mente — devem ser cessadas. No Śraddhā Yoga, elas devem ser transformadas. A roda não precisa parar. Seu movimento precisa ser experimentado a partir do eixo imóvel  Ātman, que revela ta, a lei da roda que gira com centro.

As vṛttis não devem ser suprimidas, mas conduzidas com arte e amor. Elas são como os cavalos da Kaṭha Upaniṣad: podem arrastar a alma ao abismo — ou podem levá-la à luz, se guiadas pelo eixo invisível, o foco absoluto do coração. O eixo não gira; é Ātman, Espírito que faz tudo girar em ordem cósmica — esta é a melhor definição de Ṛta.

Śraddhā Vṛtti: A Disciplina Natural e Sintrópica que Unifica a Vida

Śraddhā vṛtti é o nome da disciplina espiritual que integra pravṛtti e nivṛtti, ação e renúncia, mente e coração. Ela não busca extinguir o movimento da mente, mas reorientá-lo segundo o eixo sutil do foco absoluto do coração. Ela transforma pensamento em meditação, fala em mantra, gesto em entrega. É a arte de viver em que toda ação nasce da luz interior, e retorna a ela, como respiração consciente, em sintonia com o prāṇa, o alento vital que nos conecta com a própria vida.

Não se trata de deixar o mundo. Mas de estar no mundo sem se perder dele. Não de calar os pensamentos, mas de escutá-los e interpretá-los a partir do fogo que é foco, o coração.

Śraddhā: O Fogo Vivo que Sustenta o Amor em Ação

Śraddhā é, no sânscrito, aquilo que “se estabelece a partir do coração”. Não pode ser reduzida à mera fé, como defendem aqueles que veem a Bhagavad Gītā como um texto religioso e não como expressão filosófica do período épico da literatura sagada da Índia. É  foco amoroso, não crença. É confiança luminosa, estabilidade intuitiva e bússola que nos guia em direção convergente à verdade. É o que permite ao praticante agir, sem interesse, desapegadamente, de forma impecável. É o que sustenta o dia do sábio enquanto o mundo gira como noite para o homem comum. É o que conduz o barco mesmo quando os ventos são contrários. É o que brilha como sol interior quando tudo à volta é noite.

O Yoga Ancestral da Bhagavad Gītā

A Bhagavad Gītā declara, com clareza solar: “Esse Yoga é muito antigo. Foi passado de mestre a discípulo, mas com o tempo se perdeu.” (BhG 4.1–3) O que se perdeu não foi uma técnica. Foi a forma de ver o mundo e de agir nele. Não se perdeu apenas um método, mas o caminho de integração sintrópica — onde a vida toda é Yoga, e o coração é o centro da ação e de todo o movimento. Esse é o Śraddhā Yoga. E sua expressão viva é a śraddhā vṛtti — o foco absoluto; o giro iluminado pelo eixo da presença interior.

Śraddhā:  o princípio organizador do foco absoluto

Em termos sintrópicos, śraddhā é a expressão da consciência sintrópica de Ṛta, imanente em nosso coração. É o que transforma o fluxo mental e a atividade sensorial em gesto consciente. Sem śraddhā, a mente se dispersa — e a entropia domina. Com śraddhā, a mente se orienta — e a sintropia se manifesta. Quando a vida se alinha com Ṛta, a ação se torna instrumento da ordem cósmica.

A Participação no Equilíbrio

A disciplina espiritual descrita pela Bhagavad Gītā não é moralismo religioso. É participação ativa no equilíbrio cósmico. É ecologia interior e exterior — cultura sintrópicaÉ uma sabedoria que reconhece a presença da ação em tudo o que vive — e a orienta para o bem, o justo, o belo, segundo a perspectiva pessoal e experiencial de quem busca o foco no fluxo de aproximação ao Ser (Ātman) e à sua lei (Ṛta). É o gesto de quem compreende que não basta agir — é preciso agir com eixo, buscando a maestria na ação, conforme ensina Krishna (BhG 2.50).

Śraddhā Vṛtti como Cultura Sintrópica

Assim nasce a śraddhā vṛtti como práxis e como cultura.
  • Como práxis, ela é a disciplina do foco absoluto do coração, aplicada à vida cotidiana.
  • Como cultura, ela é a civilização da síntese sonhada pelos Ṛṣis e revelada pelos grandes Avatāres da humanidade, como o próprio Krishna — onde se age segundo a luz do Ātman, presente no coração; se vive com escuta da grande lei de Ṛta; se organiza a vida com amor e sensibilidade ao processo contínuo de espiritualização da matéria, trazendo equílibrio sintrópico às regiões onde a vida ameaça sucumbir.
Essa cultura sintropica já pulsa em nós. Ela é antiga como a luz, conforme afirmava o próprio Krishna. E nova como o instante presente, conforme sugere a contemporânea ciência sintrópica.

A Roda e o Eixo, em Nós

Tudo gira. Mas nada se perde.  A vida na matéria é vṛtti — movimento, expressão, caminho. O ser humano é śraddhā — manifestação inacabada do foco absoluto do coração, identidade de si mesmo com o centro — o silêncio do ego.

Não é possível, nem necessário, apagar o mundo para encontrar o Ser. É preciso cultivar o foco absoluto: agir com śraddhā, falar com śraddhā, respirar com śraddhā. Assim, a roda gira em toda a sua riqueza e pluralidade entrópica. Mas o eixo permanece em sua sublimidade sintrópico. Desse equilíbrio, nasce o foco absoluto no desperto.


Rio de Janeiro, 02 de julho de 2025.

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