2019-01-26

Arjuna e o Poder da Renúncia e da Entrega

Este artigo discute a distinção entre os conceitos védicos designados pelos termos "saṃnyāsa" (renúncia) e "tyāga" (entrega), redefinidos por Krishna ao longo do episódio da Bhagavad Gītā. Krishna discute a natureza fractal e sintrópica da ação virtuosa, caridosa, amorosa e perfeitamente ética, que se vincula ao mistério da renúncia ao efêmero e entrega ao sagrado. Ele trata, em suma, da renúncia (saṃnyāsa1), como a condição sine qua non do despertar da consciência, e da entrega (tyāga), como a condição necessária para a ascese mística (Brahma-sāmīpya). 

A literatura védica, de forma geral, não faz uma distinção clara entre "saṃnyāsa" (renúncia) e "tyāga" (entrega). Ela se estrutura a partir do axioma não dualista da identidade entre a imanência e a transcendência do sagrado. Este princípio único da unidade de toda a experiência fenomenológica tem a sua expressão empírica no sentimento da comunhão com o sagrado (śraddhā), que decorre das práticas de contemplação (bhāvanā) associadas às cinco formas de organização do pensamento superior2 (cintā-s), base de toda a heurística utilizada pelos grandes sábios (Ṛṣi-s) para construírem as suas visões de mundo (Ṛṣi-nyāsa). Na Bhagavad Gītā, em particular, Krishna parte deste axioma fundamental para formular o Śuddha Rāja Yoga, fundado no sentimento sintrópico de conexão com o sagrado (śraddhā) e que contempla uma reflexão criteriosa sobre a natureza da ação e sobre a arte e a ciência da meditação

Meditação: medir a ação
O primeiro capítulo da Bhagavad Gītā descreve o estado de confusão mental e depressão de Arjuna, fruto da sua indecisão sobre a melhor forma de agir. Os demais capítulos mostram Krishna orientando Arjuna para que ele execute toda e qualquer atividade no mundo como uma forma de pura meditação – a meditação na ação. Krishna convida Arjuna a vencer, inicialmente, os seus verdadeiros  inimigos, representados pelas paixões inferiores. São elas que nos levam a acreditar, equivocadamente, que atores, à nossa imagem e semelhança, possam constituir-se como nossos inimigos no teatro da vida. É com esta disposição que Arjuna deve desempenhar o seu papel. Para desenvolver esse dom sagrado de perceber a realidade última que se oculta sob os véus de māyā (a energia feminina, que produz a sensação de concretude e realidade do mundo fenomênico e que corresponde, aproximadamente, aos Cinco Agregados, ou Skandha-s do budismo: a forma material, a sensação, a percepção, o condicionamento mental e a consciência de si), o Senhor Krishna prescreve a Arjuna a renúncia (​saṃnyāsa) ao funcionamento de base material e egoísta, regulado pela  natureza material do ser (ahaṃkāra), e a gradual entrega (tyāga) ao funcionamento sintrópico, de base altruísta, regulado pela sua natureza espiritual (Ātman).

A superação da sujeição que nos é imposta pela nossa natureza material (ahaṃkāra) em função dos estímulos recebidos do mundo (expressão de māyā) tem início quando aprendemos a agir pelo coração, despertando o sentimento sintrópico de conexão com o sagrado (śraddhā) e aprendendo a contemplar (bhāvanā), em todos os fenômenos do mundo, a realidade última, a um só tempo, transcendente e  imanente. A Bhagavad Gītā trata desta inversão no funcionamento do ser do modo guṇa-para para Ātma-para. O modo guṇa-para é caracterizado pela sujeição à influência dos três guṇa-s (tendências, qualidades) que caracterizam māyā: sattva, rajas e tamas, respectivamente, as energias que levam à estabilização, desestabilização, ou destruição da natureza e do mundo. O modo Ātma-para é caracterizado pelo estado amoroso de liberdade (kaivalya) do Espírito puro que reside no imo do sagrado coração e pela ação impecável, de natureza fractal e sintrópica. Este modo está ilustrado, por exemplo, na seguinte máxima de Hermes Trismegisto, "Assim como acima, abaixo; assim como dentro, fora; assim como no universo, no corpo3 humano". 

A vida é feita de escolhas
O funcionamento Ātma-para deriva de dois compromissos fundamentais: (1) o conhecimento progressivo sobre a natureza da meta que se quer alcançar; e (2) a disposição para se treinar, incansavelmente, em todas as ações e pensamentos do dia-a-dia, o poder de renunciar, imediata e instantaneamente, a qualquer coisa contrária à meta. A renúncia (saṃnyāsa) ao efêmero evoca a entrega (tyāga) ao sagrado e dá início à aproximação assimptótica à meta suprema, caracterizada pelo funcionamento Ātma-para, que implica no desenvolvimento gradual do estado de atenção plena e de perfeita vigilância aos estímulos que nos chegam, ininterruptamente, pelos sentidos. Saṃnyāsa e tyāga devem ser exercidas a todo o momento para impedir que pensamentos inadequados instalem-se em nossa mente. Esta é a disciplina mental proposta por Krishna a Arjuna. O sucesso na arte da meditação depende desta capacidade de atualizar, a todo o instante, o trabalho interior de renúncia (saṃnyāsa) imediata ao efêmero (caracterizado pelo funcionamento guṇa-para) e, consequentemente, de entrega (tyāga) de si mesmo ao amoroso funcionamento ióguico, sintético, descrito na Bhagavad Gītā como Ātma-para. Tal funcionamento implica no desabrochar da meditação pura (śuddha ​dhyāna) e daquele silêncio interior que nos permite auscultar o sagrado e despertar a nossa consciência sintrópica.

O amor é a resposta, não importa a pergunta.
Cabe destacar que a Bhagavad Gītā trata da renúncia (saṃnyāsa) ao interesse pessoal  e não à ação justa, necessária, legítima e realizada pelo bem de todos, marca característica da entrega (tyāga) ao funcionamento ióguico, ou espiritualista (Ātma-para), conforme Krishna esclarece a Arjuna. A Bhagavad Gītā afirma que o funcionamento ióguico manifesta-se pela maestria em todas as ações. Expressa a nossa capacidade de renunciar ao mais prazeroso (preyas), dando primazia àquilo que se concebe ser o melhor e mais justo (​śreyas). A renúncia (saṃnyāsa) à execução de todas as atividades manchadas, ou pelo interesse próprio, ou por contrariarem as leis ambientais e sociais (dharma), orienta-nos, naturalmente, para o sagrado, presente em nosso próprio coração, e objeto de nossa crescente devoção e entrega (tyāga). Trabalhar ativamente pelo bem do mundo, sem, contudo, pertencer a este mundo, caracterizado pelo sofrimento, constitui, em essência, o que se compreende por saṃnyāsa e tyāga no contexto da Bhagavad Gītā. O engajamento, simultaneamente, ativo e contemplativo no mundo constitui a essência dos ensinamentos da Bhagavad Gītā. Anteriormente à Bhagavad Gītā, tornar-se um saṃnyāsin, um monge renunciante, significava desligar-se do mundo e abandonar a via de ação, conforme praticada no mundo. A revelação de Krishna, entretanto, redefine, ou atualiza, o entendimento daquilo que constituia a via do renunciante (saṃnyāsin). Krishna pede a Arjuna que aprenda a estar no mundo, sem ser do mundo e não que ele se torne um saṃnyāsin no sentido védico do termo, conforme era o seu desejo, expresso na abertura do segundo capítulo da Bhagavad Gītā. Gandhi, que orientou toda a sua vida segundo a ética amorosa da Bhagavad Gītā, representa um exemplo moderno desta mesma práxis ensinada por Krishna.

O Poder da Renúncia e da Entrega
A Morte de Sócrates - Pintura óleo sobre tela (1787) de
Jacques-Louis David
As verdades espiritualistas expressas a partir dos conceitos de saṃnyāsa (renúncia) e tyāga (entrega) conforme desenvolvidos na Bhagavad Gītā encontram vários paralelos na tradição filosófico-religiosa ocidental. No diálogo platônico Fédon, por exemplo, Sócrates diz  a Crito: “eu devo um galo a Asclépio; você pode lembrar-se de pagar este débito?” (117c-118a) Asclépio representa o deus da medicina e a bem humorada frase de Sócrates refere-se ao fato de que ele não temia tomar a cicuta. Ela representava, naquele momento, não o veneno que lhe tiraria a vida, mas o medicamento que lhe traria a libertação de sua alma. Sócrates estava em paz, com a mente serena, porque tinha certeza de que vivera de forma coerente, tal como declarara durante o seu julgamento, quando teria dito: “Há muitos modos de se evitar a morte. A dificuldade, meus amigos, não está em evitá-la, mas em como não cair vítima de conduta injusta e indigna, porque este risco nos alcança muito mais rapidamente do que o da própria morte.” Sócrates demonstra tal convicção interior e fé em si mesmo, que rejeita, inclusive, o plano de fuga que os seus discípulos haviam lhe preparado. Ele ainda brinca enquanto estes pediam que ele se apressasse, pois a sua execução estava marcada para a manhã daquela madrugada. Sócrates diz que não havia necessidade de pressa, pois a sua morte somente viria no terceiro dia, conforme sonhara na noite anterior e como, de fato, aconteceu.

A decisão de Sócrates de renunciar ao efêmero e se entregar ao sagrado, optando, deste modo, por não escapar à sua sentença de morte, somente voltaria a se repetir alguns séculos mais tarde com o exemplo de saṃnyāsa (renúncia) e tyāga (entrega) de Jesus que, perante o tribunal romano, calou-se ao ser perguntado se era o rei dos judeus. Bastaria que negasse a acusação e estaria livre, conforme as regras jurídicas vigentes na época. Entretanto, Jesus renuncia à esta via escapista e se entrega à vontade do seu Pai, aceitando, deste modo, a crucifixação, que fica como testemunha das verdades que trouxera.

N O T A S

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.


Na prática do Bhāvana procura-se externar o sentimento de unidade (Tudo é manifestação de Brahman) que decorre da meditação e se aperfeiçoa com ela.  O Bhāvana representa, portanto, o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da Essência do Sagrado.
Esquema da ordenação do pensamento (cintā)
(2) A figura ao lado apresenta um pequeno esquema da ordenação do pensamento (cintā) realizado em 1987, quando procurava compreender a relação entre os três componentes do Śuddha Rāja Yoga. Vasudeva Row discute as cintās (pronuncia-se “tchintaas”) em um estudo que acompanha a tradução ao espanhol da obra Yoga Dīpikā (Madras: 1916), publicada pela seção chilena do Śuddha Dharma Maṇḍalam (1972). Afirma que a Brahma-cintā, ou seja, o esforço de contemplação da ideação (cintā) sintrópica da projeção parcial do infinito Brahman durante o processo de manifestação do cosmos já é, por excelência, meditação (p. 161). Por estar na origem de tudo, tal ideação atua sobre as faculdades mentais, onde se originam as demais cintās, que compõem o Śuddha Rāja Yoga: Vibhūti-cintā (ideação ou percepção das excelências); Jñāna-cintā (reflexão sobre o conhecimento adquirido); Saṃkalpa-cintā (lembrança constante das resoluções tomadas) e Karma-cintā (exercício constante do modo correto de atuar).

Não é difícil perceber que as cinco cintās compõem as três bases onde se funda o Śuddha Rāja Yoga:
  1. a prática da Bhāvana está compreeendida nas duas primeiras cintās -- Vibhūti-cintā e Jñāna-cintā;
  2. aquilo que se entende por Karma está representado nas duas seguintes -- Saṃkalpa-cintā e Karma-cintā; e
  3. Brahma-cintā representa aquilo que está na raiz mesma de toda a criação, Dhyāna.
Isto explica, inclusive, que em estágios avançados, o praticante não necessite de nenhum aparato ritualístico como suporte para as suas práticas de Śuddha Rāja Yoga. Chega o tempo em que já não se necessita de vela, incenso, olhos fechados, nada disto. Pode-se, então, realizar as suas práticas em qualquer lugar, o tempo todo. Esta particularidade denota a natureza universal do Śuddha Yoga, que  a um só tempo o distingue e o unifica aos demais sistemas de pensamento.

O Śuddha Yoga implica em não se privilegiar uma forma de espiritualidade, ou de prática religiosa, mas em se deixar guiar, simplesmente, pela percepção da essência pura (śuddha) da lei (dharma) que rege o funcionamento objetivo e subjetivo dos seres e que na linguagem técnica do sânscrito designa-se como Śuddha Dharma.

(3) A seguinte passagem do texto medieval Śiva-Saṃhitā procura ilustrar esta relação fractal do corpo cósmico:
Neste corpo, existe um Meru ligado a sete ilhas. Há também os rios, os oceanos, as montanhas, os campos e os guardiões dos campos. E neles os sábios, todas as estrelas e planetas, os locais de peregrinação e os templos com as suas respectivas deidades. O sol e a lua funcionando como os agentes da emanação e dissolução, como uma névoa com os elementos ar, fogo, água e terra. Todos os objetos dos três planos de existência [material, celestial e transcendente] estão contidos no corpo e atuam em torno desse Meru. Unicamente o yogi, não há dúvidas, tem consciência disto. (ŚS 2.1-5)


Texto seguinte: O Fogo Ardente do Coração

Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 2019.
(Atualizado em 31.01.24.)

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