2019-01-14

Movimentos de Convergência: (6) a contracultura e os estados alterados de consciência

Luiz Carlos Maciel, foi para O Pasquim por intermédio de seu amigo Tarso de Castro. Já como cronista, Maciel recebeu, certo dia, uma carta comentando sobre a contracultura e os jornais alternativos que haviam surgido nos EUA. A carta fora enviada por um leitor brasileiro chamado Jacques, estudante da Universidade de Berkeley. Maciel passou então a se corresponder com ele e a se informar sobre a contracultura (veja aqui), porque no Brasil não havia nenhuma informação acerca deste movimento e muito menos sobre a repressão sofrida pelos seus integrantes.
O documentário Operation Abolition (1960), que registra a violência exercida pelas forças policiais para reprimir as manifestações estudantis ocorridas em Berkeley em maio de 1960 e que fora financiado pelas autoridades americanas como forma de propaganda anticomunista, estava sendo exibido nas universidades como exemplo de que os estudantes não tinham o direito de se rebelar, como faziam os comunistas e, agora, os hippies. O resultado foi o oposto do imaginado: as manifestações juvenis se multiplicaram pelas universidades, porque as notícias sobre a rebelião de Berkeley mostravam, na verdade, que os garotos eram heróis e os policiais, os vilões, agredindo jovens indefesos. Berkeley tem uma importância no movimento da contracultura por ter sido a primeira universidade americana a se posicionar contra a guerra do Vietnã (1955 - 1975).
Jacques informou a Maciel tudo que estava acontecendo lá, inclusive o movimento hippie. A partir daí, Maciel passou a comprar livros e revistas que retratassem a contracultura e o movimento hippie. Esse material que chegava para Maciel chamou a atenção de Tarso de Castro, que lhe propôs escrever duas páginas no Pasquim sobre esse movimento de jovens que a imprensa brasileira simplesmente ignorava. Foi assim, sob tais condições históricas, a partir de sua coluna Underground no Pasquim, que Maciel se tornou o guru da contracultura. Não tardou e os hippies brasileiros, interessados em viver aqueles valores que Maciel trazia em sua coluna, começaram a procurá-lo na redação do jornal. Alguns eram famosos, como Paulo Leminski, por exemplo. Aos poucos, Maciel foi deixando os cabelos crescerem, marca característica dos hippies e da contracultura, assumindo o papel de uma figura contracultural.
Maciel logo percebeu que a chave mestra da contracultura e do movimento hippie eram as drogas psicodélicas. Sem as drogas psicodélicas não teria existido a contracultura. Sob o efeito das drogas as pessoas viviam experiências de estados alterados de consciência, praticamente impossíveis de serem alcançados de outro modo. Sob o efeito das drogas, os pintores pintavam diferente, os poetas escreviam diferente, os músicos tocavam diferente, levando-o à conclusão de que o próximo passo da humanidade não viria por meio do conhecimento tradicional, mas de uma mudança de estado de consciência. A realidade se apresenta em função do nosso estado de consciência. Diferentes estados de consciência conduzem a diferentes formas de percepção da realidade. Foi assim, a partir desse contexto, que Maciel decidiu tomar o seu primeiro ácido, o LSD, ao qual se seguiram muitos outros. As experiências com LSD despertaram Maciel para aspectos da realidade que ele nunca havia compreendido -- por exemplo, aqueles descritos no pensamento oriental, representado no hinduísmozen budismo e taoismo. Logo após experimentar dos estados alterados de consciência provocados pelo LSD, Maciel percebe que o Sutra da Perfeição da Sabedoria, também conhecido como Sutra do Coração ficara claro para ele. Este Sutra do budismo mahayana afirma que não há nada substancial, que nada tem existência real. Como uma mente formada em um colégio tradicional católico poderia conceber isto, não fosse pelo choque, capaz de quebrar velhos condicionamentos e sistemas de crenças, proporcionado pela experiência psicodélica?
Nos EUA, esse movimento estava crescendo sob a liderança daquele que Maciel considera o verdadeiro guru da contracultura: Timothy Leary. Maciel foi profundamente influenciado por uma adaptação que Leary fez do Livro Tibetano dos Mortos como guia de viagens psicodélicas. A ideia fundamental do texto é a seguinte: a viagem de ácido é como uma morte do ego, o que corresponde à morte ela mesma entre os tibetanos. O Livro Tibetano dos Mortos é lido pelos sacerdotes budistas no leito dos moribundos. A pessoa morria e se prosseguia com a leitura porque se acreditava que ela continuava ouvindo. A função do livro é orientar o espírito do falecido através dos diferentes estágios que a pessoa deve passar após a morte, os chamados bardos. Um discípulo dedicado pode, assim que morre, reconhecer a luz clara do vazio, do Sunyata. Então ele se liberta das reencarnações e é imediatamente absorvido por esta luz clara. Contudo, se ele não reconhece esta luz, começa a descer pelos distintos bardos, mais ou menos agradáveis, até chegar à porta da matriz, quando a alma, ou isso que sobrevive ao corpo, é atraída, de acordo com o seu grau de desenvolvimento, para o ventre da mulher onde irá renascer. Timothy Leary argumenta que esta sequência de bardos até a luz clara é semelhante à viagem de LSD. Quando se toma LSD, a primeira coisa que se experimenta é um impacto que deixa a pessoa completamente desnorteada. Ou seja, representa a luz clara do vazio, que não conseguimos reconhecer.
Maciel passou por esta experiência várias vezes, tendo, inclusive, as famosas bad trips (más viagens). Leary explica que elas são mais instrutivas do que as experiências agradáveis, de pouco aprendizado. O aprendizado se dá, principalmente, nas dificuldades, como ocorre nas bad trips. Leary orientava os usuários para manterem uma distância de observador em relação aos acontecimentos presenciados durante a viagem aos diferentes bardos. Não se deve ceder, nem ao impulso para a rejeição, nem para a atração. Deve-se manter uma isenção em relação a tudo que se testemunhar nos diferentes bardos, conforme recomendação do Livro Tibetano dos Mortos. Maciel descreve com detalhes uma destas suas viagens com LSD. Estava com amigos em uma casa de campo muito agradável, com um jardim muito bonito. Após terem tomado LSD, Maciel deitou-se na relva, sob o sol, transportado de felicidade, e ficou contemplando o céu. Aconteceu então um fenômeno físico muito simples: umas nuvens escuras cobriram o sol. Neste exato momento, Maciel entrou numa profunda bad trip. Ficou com a (falsa) consciência de que tudo o que existia era um absoluto e desesperante erro cósmico. Tudo era irremediavelmente horrível e desesperador. Estava deitado e se sentou sem ação, absolutamente impotente ante o grande erro cósmico do qual era vítima. Que poderia ele fazer ante esta experiência? Lembrou-se então da adaptação Timothy Leary do Livro Tibetano dos Mortos e de sua  descrição da disciplina budista de permanecer como um espectador isentoFicou em posição de lótus, em yoga, repetindo “eu sou um espectador isento”.
Nas experiências psicodélicas, perde-se a noção de tempo. A noite caiu e Maciel continuava imóvel, em posição de lótus, quando testemunhou um dos espetáculos mais deslumbrantes de sua vida: a lua cheia se erguendo, andando pelo céu com um secto maravilhoso de estrelas acompanhando aquela marcha da lua. Maciel saíra da bad trip com a consciência de que não havia erro cósmico algum. Pelo contrário, o cosmos era de uma perfeição absoluta. Tudo era divino e maravilhoso. Não fosse a lembrança da passagem do Livro Tibetano dos Mortos, contudo, poderia teria entrado em desespero e buscado o socorro médico. Por isto Timothy Leary defendia que as drogas psicodélicas deveriam ser utilizadas apenas num ambiente adequado sob a supervisão de um orientador que soubesse acalmar a pessoa, para que ela soubesse que a experiência logo terminaria, ficando apenas o aprendizado sobre esta estranha realidade dos estados alterados da consciência, onde se fundara a própria contracultura. O pensamento de Leary, obviamente, foi bastante contestado e os seus resultados até o presente ainda são objeto de acalorados debates no ambiente acadêmico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário