Nota editorial de grafia: neste artigo, optamos por shakti e chakras (grafias correntes em português), mantendo os demais termos sânscritos em IAST (ex.: kośa, kuṇḍalinī, suṣumṇā nāḍī, Ājñā, Anāhata, Ṛta). Adotamos Krishna (grafia consagrada) em vez de Kṛṣṇa.
Partindo da premissa implícita na Bhagavad Gītā, onde se afirma ser a śraddhā dos sábios perfeitos (BhG 10.10: “Aqueles que se entregam a Ti, amadurecidos pelo ardor do coração, Tu os atravessas como um fio perfura as águas”), podemos compreender que śraddhā rege a influência do espírito imaterial. Por outro lado, a natureza material, que se manifesta através dos desejos e do corpo, é descrita como prakṛti, cuja ação e efeito são regidos por forças visíveis, como o kāma ou energia do desejo (BhG 7.5–6: — “Entre as ciências, a espiritual é suprema, mas a ignorância da alma, que prende à matéria, prepondera na maioria”). Assim, a Bhagavad Gītā revela essencialmente a coexistência e interação dinâmica entre estas duas influências, espiritual (śraddhā) e material (kāma), tornando imprescindível reconhecer que ambas são vitais para a manifestação integral do ser.
A experiência humana transcorre nos cinco kośas — os invólucros sutis do ser — que abrangem do anatomicamente sólido annamaya kośa até o sublime ānandamaya kośa. Cada kośa tem suas necessidades específicas e uma relação única entre as forças de śraddhā e kāma. O annamaya kośa, ou corpo físico, é a base sólida desta arquitetura, um sistema que não suporta longos períodos sem alimento, água e oxigênio. Aqui reside a expressão mais densa da shakti sob a forma de kāma, a energia vital ligada aos sentidos, à sexualidade e à pulsação da vida em seu aspecto mais palpável. Entretanto, não paramos neste nível; a energia vital que anima o corpo se expande e se transforma nos corpos sutis: o prāṇamaya kośa (energia vital, respiração), o manomaya kośa (invólucro do ego [ahaṃkāra] e sede dos pensamentos e processos mentais condicionados), o vijñānamaya kośa (inteligência intuitiva e discernimento espiritual) e, finalmente, o ānandamaya kośa, a camada da bem-aventurança — onde a conexão com a luz do coração (śraddhā) torna-se claramente experienciada. Esta progressão dos kośas reflete a sutileza crescente da consciência e da shakti, com kāma predominando nos kośas corporais e sutis inferiores, e śraddhā manifestando-se plenamente nos kośas mais elevados, ligados à sabedoria e à experiência espiritual.
Paralelamente, a teoria dos chakras oferece uma representação energética complementar desses níveis, situando diferentes aspectos da shakti em centros intra-sutis ao longo da coluna vertebral. Os chakras inferiores (Mūlādhāra, Svādhiṣṭhāna, Maṇipūra) correspondem principalmente à expressão da energia kāma — da sobrevivência ao desejo e à vitalidade criativa. O chakra cardíaco (Anāhata) é o locus da śraddhā, da conexão amorosa, do ardor sintrópico e da convicção interior que conecta o jīva ao Ātman e à dimensão superior da consciência.
No centro desta rede, a kuṇḍalinī funciona como a energia latente, o canal e a força da shakti que conecta os diferentes níveis da existência, fazendo a ponte entre o básico e o sublime, o material e o espiritual. A ascensão da kuṇḍalinī pelo canal central (suṣumṇā nāḍī) propicia a integração e a harmonização dos aspectos aparentemente opostos da energia, equilibrando kāma e śraddhā.
A síntese final dessas forças ocorre no Ājñā chakra, o locus do foco absoluto do coração e da visão espiritual, situado entre as sobrancelhas. Aqui, buddhi (inteligência intuitiva superior) harmoniza-se com o manas (mente egoica reflexiva e condicionada), permitindo que a luz do coração (śraddhā) ilumine a mente e que toda respiração se torne uma meditação contínua, marcada pelo mantra interno Haṃsaḥ (So’ham). Este é o ponto do foco absoluto, onde o amor consciente dirige a mente para além dos desejos imediatos, criando uma unidade viva do conhecimento e da ciência sintrópica.
Neste processo, śraddhā evolui de uma fé passiva, uma força meramente rajásica, para se tornar expressão da conexão com Ṛta — a ordem cósmica e princípio regulador que equilibra e harmoniza o universo — e do humano com o sagrado, equilibrando, integrando e transcendendo kāma. Assim, o ser humano encontra sua plenitude ao vivenciar a dança harmoniosa da shakti entre o corpo e o espírito, a matéria e a luz, o desejo e a consciência.
Esta visão integrada, ancorada na arquitetura dos kośas e dos chakras, não apenas ilumina o caminho da transformação interna, mas também oferece um mapa prático para a autoconsciência e o autodomínio, onde o corpo é nutrido e respeitado, o desejo é reconhecido e sublimado, e o coração meditativo ilumina cada instante da existência.
Referências indicativas (versos mencionados / correlatos): BhG 10.10–11 (buddhi-yoga); 7.7 (sūtra–maṇi analogia); 7.4–7.6; 17.3 (śraddhā-mayo ’yaṁ puruṣaḥ); 4.39 (śraddhāvān labhate jñānam); 6.47 (śraddhāvān bhajate yo māṁ); 12.2 (śraddhayā parayopetāḥ); 3.37.
Notas editoriais de método:
1) Citações: utilizamos paráfrases em sentido amplo das passagens indicadas da Bhagavad Gītā; para o texto crítico e o devanāgarī, consultar edições com o Bhāṣya de Śaṅkara.
2) Integração de quadros: a exposição articula Taittirīya Upaniṣad (kośas), Sāṅkhya (ahaṃkāra, manas, buddhi) e tradição tântrica/haṭha (chakras, kuṇḍalinī) em chave sintética do Śraddhā Yoga, sem pretensão filológica de unidade histórica.
3) Chakras e kuṇḍalinī: reconhecemos sua elaboração tântrica posterior à composição da Bhagavad Gītā; aqui funcionam como gramática energética complementar para a leitura do texto.
4) Vocabulário ‘energia/sintrópica’: empregado como analogia heurística (não como enunciado físico-empírico).
5) Tomamos a Bhagavad Gītā como magistério integral; o verso BhG 10.10 (teṣāṁ satatayuktānāṁ...) é buddhi-yoga (sem a palavra śraddhā). Para enunciados explícitos sobre śraddhā, remetemos a BhG 17.3; 4.39; 6.47; 12.2. A numeração aqui segue a recensão usada nos comentários de Śaṅkara.
Rio de Janeiro, 13.09.25.