2025-05-19

Além do Foco: Da Atenção Plena à Heartfulness — A Meditação Sintrópica do Śraddhā Yoga

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De mindfulness a kindfulness,
até chegar ao heartfulness — a bússola interior,
que conduz a mente de volta ao coração,
 onde brilha o eixo do Ser.
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1. Introdução: O Sucesso e os Limites do Mindfulness

Nas últimas décadas, a meditação conquistou espaço nos centros de saúde, empresas e universidades ocidentais. Boa parte desse reconhecimento deve-se à popularização do mindfulness, uma adaptação contemporânea de práticas meditativas orientais, especialmente budistas, promovida por Jon Kabat-Zinn e outros pesquisadores. Seu sucesso está relacionado à promessa de alívio do estresse, regulação emocional e bem-estar psicológico.

Segundo Kabat-Zinn1 (1990), mindfulness é “a consciência que emerge quando se presta atenção intencionalmente ao momento presente, sem julgar”. Essa definição, embora eficaz no contexto terapêutico, ignora as camadas mais profundas da consciência (buddhi) e o reconhecimento do Ser (Ātman).

Contudo, essa forma de meditação, extraída de um contexto espiritual mais amplo, mostra seus limites: falta-lhe profundidade ontológica, muitas vezes reduzida à técnica de foco atencional. Como resposta, emergem propostas como a de kindfulness, que tentam reintegrar o coração ao processo meditativo, apontando para uma compaixão incorporada. Este artigo propõe analisar essas práticas à luz da via óctupla de Patañjali, articulando-as com a tradição do Śraddhā Yoga Svatantra, centrada nas três metáforas e três mantras da meditação sintrópica2.

2. Mindfulness: O Foco Funcional (Dhāraṇā Incompleto)

O mindfulness, tal como aplicado no Ocidente, fixa-se na dimensão de dhāraṇā — concentração da mente (manas) em um único ponto, geralmente a respiração ou sensações corporais. Trata-se de uma conquista preciosa, mas parcial. A mente é domada, mas não iluminada. A ausência de referência ao Ser (Ātman ou Puruṣa) torna a experiência circular: o praticante aprende a manejar o sofrimento, mas não necessariamente a transcendê-lo.

Ronald Purser3 (2019) adverte para o risco de que a prática do mindfulness, ao ser desprovida de seu contexto ético e espiritual, se torne uma ferramenta de adaptação ao sistema — o que ele chama de "McMindfulness".

3. Kindfulness: O Foco Compassivo (Intuição de Buddhi)

Kindfulness, termo cunhado pelo monge budista Theravada Ajahn Brahm4, representa uma tentativa espontânea de superar a aridez técnica do mindfulness. Ele observou que a prática de mindfulness por si só, como uma simples consciência não-julgadora do momento presente, poderia se tornar "seca, entediante e fria" sem a adição da gentileza e da compaixão. Assim, propôs o termo "kindfulness" para enfatizar a importância de cultivar uma consciência gentil, calorosa e amigável em nossa prática meditativa e em nossa vida diária. “A bondade é a essência da atenção verdadeira” (Ajahn Brahm, 2010).

Ao incluir o afeto e a ternura, ele aproxima a mente — manas —  da inteligência compassiva — buddhi — e abre a porta para uma meditação menos egocentrada. Contudo, sem um alicerce metafísico (como o reconhecimento do Ser), a prática ainda permanece vulnerável ao emocionalismo ou à superficialidade terapêutica.

Essa distinção entre manas e buddhi, fundamental nas tradições orientais, é obscurecida no pensamento ocidental, que unifica toda operação cognitiva sob o rótulo de "razão". No Oriente, manas é a mente sensório-discursiva, enquanto buddhi é a inteligência espiritual, sede da clareza intuitiva. Mindfulness opera em manas; kindfulness começa a tocar buddhi.

4. A Crítica Ontológica: O Vazio do Pós-Deus

A comparação entre mindfulness e kindfulness exige ser situada no contexto do ateísmo pós-metafísico da tradição judaico-cristã do Ocidente. Após a "morte" do "deus" bíblico, proclamada por Nietzsche, a psicanálise e a ciência moderna desenvolveram-se sobre um paradigma materialista. A prática da meditação foi absorvida como técnica psicológica, e não como caminho de realização do Ser.

O budismo, apesar de eliminar o Puruṣa (Espírito, o Ser) do sāṃkhya, jamais reduziu vipassanā a mindfulness. Vipassanā contempla anicca (impermanência), dukkha (sofrimento) e anattā (não-eu), e implica visão penetrante que integra buddhi — portanto, mais próxima de kindfulness do que do mindfulness ocidentalizado.

5. A Via Óctupla de Patañjali: Do Recolhimento ao Êxtase

Antes mesmo de recolher os sentidos ou fixar a mente, a meditação exige um compromisso interior: um saṃkalpa. Esse compromisso se traduz, na tradição do Yoga clássico de Patañjali, nos yamas e niyamas — princípios éticos e disciplinares que estabelecem o alicerce da prática. Eles não são adereços morais, mas condições energéticas para que a mente possa repousar e o coração se abrir.

Do saṃkalpa, passamos ao assentamento do Ser. O verdadeiro āsana — tradicionalmente traduzido como "postura" — não se refere apenas à posição do corpo, mas à disposição interior de tomar o assento do Ser, de tornar o corpo um templo (kṣetra) disponível à consciência (kṣetrajña).

A respiração consciente, então, torna-se ponte: o prāṇāyāma — e, mais especificamente, o Haṃsa — quando a respiração se torna meditação. Ao inspirar e expirar com śraddhā, o praticante marca no corpo a harmonia, ritmo e unidade do cosmos.

No Yoga de Patañjali, assim como no Śraddhā Yoga, a meditação é um processo progressivo e profundo:
  • Pratyāhāra: recolhimento dos sentidos, inversão do olhar (da dispersão sensorial ao eixo interior); ou, em termos do Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā, a transição de guna-para para ātma-para — o retorno ao eixo (BhG 2.58).
  • Dhāraṇā: foco concentrado, firmeza atencional (nível onde mindfulness opera).
  • Dhyāna: fluxo meditativo contínuo, presença lúcida (buddhi iluminado).
  • Samādhi: absorção no Ser, superação da dualidade.
Mindfulness para em dhāraṇā, kindfulness intui dhyāna, mas só o caminho integral, explicitado na tradição védico-tântrica e sintetizado na Bhagavad Gītā, conduz ao samādhi — à experiência da realidade como Ser, e não apenas como sensação.

6. A Metáfora da Roda e o Eixo do Ser

A quadriga da Bhagavad Gītā nos oferece uma imagem poderosa: as rodas representam o movimento incessante do saṃsāra — os altos e baixos de sukha (prazer) e duḥkha (sofrimento). Mas o eixo da roda é imóvel: representa o Ātman, o centro não-dual da consciência. Quando a consciência habita o eixo, a roda pode continuar girando, mas o sofrimento não mais governa a alma.

Meditação é esse retorno reiterado ao eixo do Ser. Quando o eixo (kha) está lubrificado com heartfulness, o movimento da roda torna-se suave: su-kha. Quando o eixo não é lubrificado pela práxis sintrópica, surge a fricção que gera dor: duḥ-kha.

7. As Três Metáforas e os Três Mantras do Śraddhā Yoga

O Śraddhā Yoga Svatantra sintetiza a arte e a ciência da meditação em três metáforas e três mantras:
  • Os Dois Pássaros (Ṛgveda) expressam a intenção do mantra OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA, que é pratyāhāra — recolhimento do jīva que observa, confiança no testemunho interior.  “Dois pássaros, companheiros inseparáveis, pousam na mesma árvore. Um come o doce fruto; o outro apenas observa.” (Ṛgveda 1.164.20)
  • O Cisne, representando a unificação dos dois pássaros, se revela no mantra Haṃsa que também é prāṇāyāma e expressão viva de dhāraṇā — o foco no mantra da respiração como ponte entre o efêmero e o eterno.
  • A Quadriga (Bhagavad Gītā) expressa o processo de reunificação dos dois pássaros no cisne Haṃsa, que conduz à dhyāna e ao samādhi. Quando o viajante unifica as duas dimensões (dois pássaros) de si mesmo (Haṃsa), as rédeas de manas ficam sob a condução de buddhi e tem início o processo de convergência assintótica para o  Ātman. A integração das rédeas (manas), condutor (buddhi) e viajante (Jīva), revelam o processo de reintegração cósmica (AUM/OM) que se desenvolve no ser humano, direcionando-o ao Ātman. Quando Arjuna inicia a sua jornada assintótica da mente (manas) para o coração (buddhi), ele se identifica e se deixa conduzir por Krishna, que representa o Ātman, presente em seu próprio coração espiritual (buddhi).
Cada fase da meditação é sustentada por um símbolo profundo e um mantra que a ancora energeticamente.

8. Heartfulness: O Fogo do Coração que Respira Amor

Se mindfulness representa o foco, e kindfulness a ternura, heartfulness é a presença vibrante do Ser. No Śraddhā Yoga, ela emerge de śraddhā — ardor do coração e poder do amor em ação, que transcende técnica e emoção. Trata-se de uma imersão da mente na luz do coração5, e do coração na luz do Ātman.

Diferentemente das tradições que ainda giram ao redor da roda (guna-para), heartfulness aponta para o eixo imóvel (ātma-para). O coração espiritual é o centro de onde emanam e para onde retornam todas as formas. Respirar com śraddhā é dizer Haṃsa: “Eu sou Ele.” Śraddhā é a própria lei do universo em ação (Ṛta). Quem age com śraddhā está, literalmente, respirando Brahman (BhG 6.40-47).

9. A Medicina do Ser: Inspiro Paz; Expiro Amor... Eu sou Ele/a...

A prática da respiração consciente (Haṃsa), ancorada no Ser é heartfulness. Mais do que uma técnica terapêutica de alívio, torna-se medicina da alma — uma prática sintrópica de reencontro com a inteireza.

Enquanto mindfulness ajuda a focar, e kindfulness a suavizar, heartfulness, a meditação sintrópica, integra. Ela mostra que foco sem coração é frio, mecânico, inorgânico, e coração sem foco não é coração, é paixão, é dispersão. O caminho está no mantra natural da respiração, Haṃsa: "Eu sou Ele." Meditar é respirar a lei de amor que fundamenta o universo (Ṛta) e ser respirado por Ela. Eis a arte e a ciência da meditação.

OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA — que a luz do coração se faça presente e ilumine as nossas vidas.

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N O T A S

(1) Kabat-Zinn, J. (1990). Full Catastrophe Living: Using the Wisdom of Your Body and Mind to Face Stress, Pain, and Illness. New York: Delacorte.

(2) Chamamos aqui de "meditação sintrópica" aquela que não apenas reduz o sofrimento (função entrópica negativa), mas reorganiza, orienta e harmoniza a consciência de acordo com a inteligência cósmica (Ṛta) — força que conduz à reintegração e ao florescimento.

(3) Purser, R. E. (2019). McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality. London: Repeater Books.

(4) Brahm, A. (2010). The Art of Disappearing: The Buddha's Path to Lasting Joy. Somerville, MA: Wisdom Publications.

(5) O Śraddhā Yoga propõe que heartfulness, a meditação pura — śuddha dhyāna — não nasce da técnica, mas do ardor do coração, que penetra buddhi e ilumina a mente. Essa potência meditativa, gerada pela śraddhā-jyotiḥ, é o que define sua força sintrópica e distingue a prática como verdadeira realização do Ser. Trata-se da meditação como śraddhā em ato — luz encarnada, que marca o caminho sintrópico de reintegração ao Ser. 



Rio de Janeiro, 19.05.25.
(Atualizado em 20.05.25)

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