2024-12-31

Śraddhā Sūktam: Um Hino Védico ao Sentimento Sintrópico de Sintonia com a Lei do Equilíbrio Cósmico

"O fogo interior, o ardor do coração (śraddhā), inflama o fogo (agniḥ) da oferenda (juhvati). A oblação (haviḥ) é conduzida (praṇīyate) com fervor (śraddhayā). Deuses (devā) e o anfitrião (yajamānaś) anseiam pela oblação (havyam)." - Śraddhā Sūktam (Ṛg Veda 10.151)

O Śraddhā Sūktam, um hino védico ressoando com a profunda importância do fervor e sentimento de convicção íntima (śraddhā), encontra-se no décimo mandala do Ṛg Veda (10.151), a escritura mais antiga da tradição védica, estimada entre 1500 e 1200 a.C. Este hino, um dos mais antigos a celebrar o conceito de śraddhā, a destaca não como mera crença, mas como uma força motriz, sentimento interior de convicção íntima que permeia todas as ações, impulsionando a realização de oferendas religiosas e a busca por prosperidade espiritual e material. No contexto védico, śraddhā implica uma profunda confiança e convicção na eficácia dos rituais, bem como na verdade da ordem cósmica (Ṛta). É a força que conecta o indivíduo ao sagrado, unindo-o à harmonia do universo. É também o alicerce para alcançar qualquer objetivo, seja material ou espiritual.

O Śraddhā Sūktam, traduzido e discutido a seguir, apresenta paralelos com a Bhagavad Gītā e o hino a Durgā, revelando a profunda interconexão entre o ardor e sentimento amoroso do coração, a ação e a busca pela verdade.

Tradução e Interpretação do Śraddhā Sūktam

1. श्रद्धायाग्निर्जुह्वतिप्रणीयते हविः श्रद्धया देवायजमानश्च हव्यम् ।
श्रद्धायांहि जुह्वतेऽधि जुह्वति श्रद्धां देवा उपजीवन्ति सर्वे॥१॥
śraddhāyāgnir juhvati praṇīyate haviḥ śraddhayā devā yajamānaś ca havyam
śraddhāyāṃ hi juhvate'dhi juhvati śraddhāṃ devā upajīvanti sarve ||1||

O ardor e sentimento amoroso do coração (śraddhā) inflama o fogo (agniḥ) do oferenda (juhvati). A oblação (haviḥ) é conduzida (praṇīyate) com fervor (śraddhayā). Deuses (devā) e o patrono da oferenda (yajamānaś) anseiam pela oblação (havyam). Pois é com fervor (śraddhāyāṃ) que eles realizam oferendas (juhvate) e oferecem ainda mais (adhi juhvati), o seu próprio fervor. Todos os deuses (devāḥ sarve) vivem (upajīvanti) por este fervor e ardor do coração (śraddhām).

Neste primeiro verso, o hino destaca a importância de śraddhā como elemento essencial no ritual do sacrifício (yajña). É o que inflama o fogo sagrado (agniḥ), conduz a oferenda (haviḥ) e sustenta a nossa relação com as divindades (devāḥ). O patrono da oferenda (yajamānaś) também deve estar imbuído de śraddhā para que o ritual por ele encomendado seja eficaz. A repetição da palavra "śraddhā" enfatiza sua centralidade no processo. Śraddhā, enquanto sentimento intuitivo e sintrópico, conecta o mundo humano ao divino.

2. श्रद्धेश्रद्धां मेऽनु मे जुषस्व मेपिप्रयस्वोत्तरां सुष्टुतिं मे 
श्रद्धांमे देवी जुषस्व श्रद्धांमे यजमानाय जुषस्व ॥२॥
śraddhe śraddhāṃ me'nu me juṣasva me piprayasvottarāṃ suṣṭutim me
śraddhāṃ me devī juṣasva śraddhāṃ me yajamānāya juṣasva ||2||

Ó Śraddhā (śraddhe), acolha (juṣasva) o meu fervor (śraddhām me) para que ele me (anu me) inspire (piprayasva) um louvor (suṣṭutim me) ainda maior. Ó Deusa (devī) Śraddhā, aceita (juṣasva) o meu ardor (śraddhām me). Aceita (juṣasva) o fervor deste (śraddhām me) para quem se realiza esta oblação (yajamānāya).

Em seguida, o segundo verso é uma invocação direta à deusa Śraddhā, implorando por sua aceitação e bênçãos. O patrono pede que Śraddhā inspire suas ações e orações, garantindo que suas oferendas sejam aceitas pelas divindades. O ardor do coração é visto como um canal de comunicação com o sagrado, e o suplicante busca cultivá-lo para fortalecer essa conexão. A repetição do pedido "aceita a minha śraddhā" revela a importância da aprovação divina para o sucesso do ritual.

3. यथादेवा अमृतं मादयन्ते यथा देवा असुरान्जघ्नुरिन्द्रः 
एवादेवी जुषस्व श्रद्धां नो यथा नःसर्वेऽपि जुषन्त दातारः ॥३॥
yathā devā amṛtaṃ mādayante yathā devā asurān jaghnur indraḥ
evā devī juṣasva śraddhāṃ no yathā naḥ sarve'pi juṣanta dātāraḥ ||3||

Assim como os seres divinos (devāḥ) se alegram (mādayante) com a imortalidade (amṛtam). Assim como os seres divinos (devāḥ) com Indra (indraḥ) derrotaram (jaghnuh) os demônios (asurān). Assim, ó Deusa (devī), aceita (juṣasva) o nosso fervor (śraddhām no). Para que todos (sarve) os doadores (dātāraḥ) também nos favoreçam (juṣanta naḥ).

Prosseguindo, o terceiro verso utiliza analogias para ilustrar o poder do fervor e ardor do coração. Assim como os seres celestiais se alegram com a imortalidade e conseguem vencer os demônios, os humanos também podem alcançar grandes feitos por meio da sua śraddhā. A śraddhā é apresentada como a força capaz de garantir a vitória sobre o mal e atrair a bênção dos deuses. O verso reforça a ideia de que o fervor é essencial para a superação de obstáculos e a conquista da prosperidade.

4. श्रद्धयादेवा जुह्वति श्रद्धया हविर्दधाति यजमानः 
श्रद्धयामनुष्यः प्रयुङ्क्ते श्रद्धया पशुमालभते हन्ति ॥४॥
śraddhayā devā juhvati śraddhayā havir dadhāti yajamānaḥ
śraddhayā manuṣyaḥ prayuṅkte śraddhayā paśum ālabhate hanti ||4||

Com śraddhā (śraddhayā) os seres divinos (devāḥ) fazem oferendas (juhvati). Com śraddhā o patrono (yajamānaḥ) consagra (dadhāti) a sua oferenda (haviḥ). Com śraddhā o homem (manuṣyaḥ) se esforça (prayuṅkte). Com śraddhā ele reconhece (ālabhate) e subjuga (hanti) o seu instinto animal (paśum).

Complementando, o quarto verso expande a importância de śraddhā para além do contexto ritualístico, mostrando que ela é essencial em todas as esferas da vida. A natureza e qualidade da śraddhā de cada um guia as ações, tanto dos seres divinos, como dos seres humanos. Seja na realização de um ato ritualístico, no trabalho ou em qualquer outra atividade, a śraddhā é o que impulsiona o esforço e garante o sucesso. O verso reforça a mensagem central do hino: śraddhā é a chave para a prosperidade,  o bem-estar e o sucesso na vida espiritual.

5. आनो यज्ञं भारती तूयमेत्वा सर स्वती सप्तथंगीर्भिरुक्थैः
इन्द्रश्चसोमं पिबतु क्षेमश्च नो ब्रह्मा चनः प्रदिशतु श्रद्धाम् ॥५॥
ā no yajñaṃ bhāratī tūyametva sarasvatī saprathāṃ gīrbhir ukthaiḥ
indraś ca somaṃ pibatu kṣemaś ca no brahmā ca naḥ pradiśatu śraddhām ||5||

Que Bhāratī (bhāratī) venha (ā) rapidamente (tūyam) ao nosso (no) sacrifício (yajñam). Sarasvatī (sarasvatī) com as sete (saprathāṃ) prosódias (gīrbhiḥ) e hinos (ukthaiḥ). E que Indra (indraḥ ca) beba (pibatu) o Soma (somaṃ). Que Kṣema (kṣemaḥ) e Brahmā (brahmā) nos concedam (pradiśatu) bem-estar (naḥ) e fervor (śraddhām).

Por fim, o quinto verso invoca divindades associadas ao conhecimento, à sabedoria e à prosperidade, pedindo que abençoem a oferenda e concedam bem-estar e śraddhā aos participantes. A presença de Bhāratī e Sarasvatī, deusas da linguagem e da sabedoria, ressalta a importância do conhecimento e da expressão correta no ritual. Indra, deus da guerra e da chuva, representa a força e a prosperidade. Kṣema e Brahmā, deuses do bem-estar e da criação, complementam as bênçãos desejadas. O verso finaliza o hino reforçando a busca por uma vida plena, abrangendo aspectos materiais e espirituais.

O Śraddhā Sūktam descreve śraddhā como um sentimento que inflama o fogo do sacrifício, sustenta a relação com os seres celestiais e inspira as ações altruístas. Através dos versos, é evidenciado que a śraddhā é o meio para alcançar a plenitude espiritual e o bem-estar. O hino é frequentemente recitado em cerimônias religiosas para fortalecer a conexão com o sagrado e garantir o sucesso dos rituais. Ele nos convida a cultivar a confiança, a convicção e o sentimento amoroso para alcançarmos nossos objetivos e vivermos uma vida plena e significativa.

Śraddhā Sūktam - establishing will power and faith in oneself
(Gaiea Sanskrit)

Śraddhā na  Bhagavad Gītā

A Bhagavad Gītā redefine a ritualística védica, internalizando o seu sentido e transformando-a em uma metáfora para a batalha interior que se passa no campo mental do discípulo em busca de autorrealização. Enquanto os Vedas se concentram em rituais externos, como sacrifícios e oferendas, a Bhagavad Gītā desloca o foco para o campo da mente e da consciência. O campo de batalha de Kurukshetra se torna um símbolo do campo mental, onde os conflitos internos e dilemas morais são travados.

Na Bhagavad Gītā, śraddhā é um conceito central, essencial para que Arjuna supere suas dúvidas e aja com maestria no cumprimento dos seus deveres. Krishna aconselha Arjuna a recuperar sua śraddhā, destacando que o fervor é fundamental para a realização de qualquer ação e para a obtenção de conhecimento espiritual. Sem śraddhā, o indivíduo fica à mercê de suas dúvidas e incertezas, incapaz de discernir o caminho correto e alcançar a libertação.

Bhagavad Gītā propõe um novo tipo de sacrifício e oferenda: o sacrifício do ego, dos desejos e apegos. Arjuna é convidado a renunciar à sua identificação com o ego individual e se entregar à lei cósmica da tradição védica, Ṛta, ressignificada por Krishna. Essa renúncia interna é o verdadeiro sacrifício que conduz à libertação. O fogo cerimonial se transforma na busca por conhecimento, sabedoria e maestria na execução de todas as ações. A Bhagavad Gītā é um diálogo que inflama a chama interior em Arjuna, purificando sua mente e revelando a verdadeira natureza do Ser.

Śraddhā e o Hino a Durgā

A associação de śraddhā com Durgā, a deusa símbolo de força, coragem e proteção, revela uma dimensão dinâmica do ardor do coração. No contexto da Bhagavad Gītā, Krishna aconselha Arjuna a invocar Durgā para que ele recupere sua śraddhā e encontre a força necessária para enfrentar os desafios que a vida lhe apresenta. Essa associação nos auxilia na compreensão de que śraddhā é uma força ativa que nos impulsiona a agir de forma altruísta, com coragem e determinação. Durgā, com sua multiplicidade de braços e armas, representa a capacidade de agir em múltiplas frentes, com destreza e firmeza. A invocação a Durgā é um chamado para se agir com śraddhā, de forma desapegada, com coragem e com o entendimento de que já não somos nós que agimos, pois nos tornamos instrumentos do sagrado, de modo que a nossa ação implica na inação do ego. Em outras palavras, Durgā personifica o fervor e o sentimento intuitivo como śraddhā, demonstrando que śraddhā  não se explica pela mera fé e crença. Durgā, em suma, nos inspira a enfrentar nossas batalhas internas e externas com śraddhā.

Conclusão

Na Bhagavad Gītā, śraddhā pode ser interpretada como um "sentimento sintrópico", uma intuição da ordem cósmica que se alinha com Ṛta. Como um sentimento sintrópico, śraddhā  impulsiona a ação em conformidade com Ṛta, promovendo a união e a evolução. O conceito de sintropia, como força que impulsiona a vida e a evolução, ecoa a dimensão da śraddhā que conecta o indivíduo ao cosmos e ao sagrado, promovendo a harmonia entre os seres. Vista como um sentimento sintrópico, śraddhā representa a força dinâmica que nos impulsiona em direção à verdade, à evolução e à integração com o cosmos. 

Embora enraizado na tradição védica, o significado do Śraddhā Sūktam transcende seu contexto original, oferecendo uma ode à importância universal de śraddhā. O Śraddhā Sūktam, hino atemporal do Rig Veda, celebra a śraddhā, a força interior que permeia todos os aspectos da vida. A Bhagavad Gītā e o hino a Durgā complementam e aprofundam o significado do Śraddhā Sūktam. Como um sentimento sintrópico de sintonia com a lei do equilíbrio cósmico, śraddhā nos impulsiona a agir em conformidade com Ṛta, promovendo a harmonia e a realização em todos os aspectos da vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário