2019-01-01

Movimentos de Convergência: (3) Heidegger

1. A  Filosofia como a História do Ser

Luiz Carlos Maciel estudou filosofia, segundo ele próprio afirma (veja aqui), pelo livro Introducción a la Filosofía, de Manuel García Morente. O texto apresenta um panorama bastante acessível da filosofia ocidental. Morente parte da dualidade fundamental de sujeito e objeto, e sustenta que no início da história da filosofia a ênfase era no objeto, ou seja, na realidade – aquilo que está fora de mim, tudo que não sou eu.
Segundo Morente, a primeira grande revolução filosófica acontece com a filosofia moderna (Descartes, Leibniz, Spinoza), que desloca a ênfase do objeto para o sujeito. Daí decorre a famosa frase de Descartes “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum). Descartes coloca o pensamento subjetivo antes da existência, que é objetiva. É o pensamento subjetivo que o autoriza a acreditar no objeto. Nasce daí a relação estabelecida aqui entre a certeza sensível, expressa no cogito cartesianoe o conceito de śraddhā na Bhagavad Gītā. Esta tendência de valorização do sujeito ocorre também no empirismo inglês, o qual questiona, inclusive, a própria substancialidade do objeto. Em outras palavras, é a reunião das experiências sensoriais (pelo tato, olfato, paladar, audição e visão) que dão existência aos objetos fora de nós. Do mesmo modo, a filosofia do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling e Hegel.) coloca o objeto como resultado de uma experiência, ou seja, de um testemunho do sujeito. Esta tendência aprofunda-se com Hegel e tem a sua culminância com Soren Kierkegaard, pensador dinamarquês que se atreveu a criticá-lo. Para marcar a importância e o sentido filosófico da vida Kierkegaard afirmou que Hegel seria como um homem muito rico que, ao construir uma mansão maravilhosa, teria optado por morar do lado de fora, na casa do zelador. Para Kierkegaard, Hegel construíra um edifício teórico espantoso, mas inútil, pois despreza a única coisa que interessa – a vida, a existência. Nasce assim o movimento da Filosofia Existencialista, que marcou profundamente a vida de Maciel.

O Existencialismo desloca totalmente o foco do pensamento do Ser para o ser humano. O que é o ser humano? O que é a existência humana? Estas são as grandes questões da filosofia existencialista. Sartre dedicou-se inteiramente a elas em O Ser e o Nada. O que interessa para Sartre é esse “nada”, que representa uma espécie de rachadura do Ser, provocada pela existência da consciência humana. Se não há consciência humana, o próprio universo perde o significado. O significado é essa fissura do Ser representada pela consciência. Afinal, onde está a consciência – esse nada que não pode ser experimentado pelos cinco sentidos, mas que expressa o Ser-para-si? Esse é o grande problema filosófico de Sartre em O Ser e o Nada.
Como jornalista filosófico, Maciel ocupou-se principalmente de Sartre, então um sucesso de mídia. Não tratava de Heidegger, cuja linguagem mais acadêmica limitaria o seu público ao âmbito das elites universitárias. Heidegger era tão rigoroso e técnico que sequer reconhecia em Sartre um verdadeiro filósofo. O grande interesse de Maciel, contudo, sempre foi o pensamento de Heidegger, resumido em suas três obras fundamentais: O Ser e TempoIntrodução à Metafísica e O Acontecimento Apropriativo. Heidegger faz uma analítica existencial em O Ser e Tempo como uma preparação para o que ele quer realmente fazer, uma filosofia do Ser, como demonstra em Introdução à Metafísica. A partir daí, Heidegger dá início a uma meditação sobre o Ser, desenvolvida ao longo de sua obra, até culminar em sua publicação póstuma, O Acontecimento Apropriativo. Esses três livros marcam as três fases de Heidegger: a inicial, a de transição e a final. Nesta última, procura chegar à essência do Ser pela linguagem. É aí que entra a contracultura, uma vez que para o pensamento oriental esta pretensão heideggeriana é absurda. Foi a contracultura que apresentou o pensamento oriental para Maciel. Daí surgiu o seu interesse pelo hinduísmozen budismotaoismo, etc. O pensamento do oriente ganhou interesse no ocidente, principalmente, por meio da contracultura. E Heidegger parecia ter consciência da importância do pensamento oriental. Sua concepção do Ser aproxima-se da concepção do filósofo hindu, Shânkara, do não dualismo do Sunyata, o vazio budista, e da meditação zen budista.
2. O Esquecimento do Ser e o Desvelar da Verdade

Martin Heidegger é considerado um dos maiores filósofos do século XX. Nem por isto é uma unanimidade. Foi acusado de antissemitismo e, inclusive, de ter se afastado de Edmund Husserl, porque ele era judeu. Nomeado Reitor da Universidade de Friburgo pelo próprio Hitler, aceitou o posto sem nunca ter se posicionado contra o nazismo e os seus horrores. Em sua defesa, também pode-se argumentar que namorou Hannah Arendt, judia, que jamais viu em Heidegger qualquer sinal de antissemitismo. Para Maciel, portanto, esta questão é secundária. Heidegger, o grande filósofo, é muito mais importante que esta polêmica em torno da sua aparente omissão em relação ao nazismo.
Heidegger examina a existência humana (faz uma analítica existencial) em Ser e Tempo, publicado em 1927, como uma Introdução à Filosofia do Ser que ele queria desenvolver. Para conhecer o Ser era necessário conhecer o dasein, o ser humano, o único que pergunta pelo Ser. A própria noção de Ser surge da mente do ser humano. Daí a necessidade de sua analítica existencial para abrir uma investigação sobre o sentido do Ser. Este é o verdadeiro objetivo de Ser e Tempo. Em seguida vem a investigação sobre a verdade do Ser. Para avançar em sua pesquisa, Heidegger examina praticamente toda a filosofia ocidental, dando particular atenção ao nascimento desta filosofia com os Pré-socráticosTales de Mileto, o mais antigo dos Pré-socráticos, inicia a sua caracterização do Ser com a expressão “tudo é Um”. A manifestação deste Um, desta archéou princípio fundamental da qual todas as coisas são diferenciações, é tudo o que aparece, ou seja, tudo o que está presente aqui e agora. O Ser é a presença deste Presente. Os Pré-socráticos chamavam esta presença de physis, ou seja, o é do que é. Physis, portanto, é o Ser ele mesmo. Contudo, a partir de Sócrates, esta physis teria sido corrompida, em função da exigência socrática de definir todos os termos do discurso. Segundo Heidegger este encerramento sintático, esta exigência lógica de definição, teria atrasado o desenvolvimento do pensamento grego. O exemplo que Heidegger mais gosta de dar é o da definição de homem: “o homem é um animal racional”. Esta definição lógica nada mais seria que uma deturpação do logos, o Verbo. Desta definição lógica de homem constam: (1) o gênero, animal; e (2) a diferença específica, racional. Heidegger demonstra a limitação desta definição que não nos diz absolutamente nada sobre o que é o homem. Para Heidegger é o ser-aí, o dasein.
Segundo Heidegger, quebra-se, a partir de Sócrates, a unidade do “tudo é Um” e multiplicam-se os dualismos em Platão e Aristóteles. Tais dualismos são mantidos pela Escolástica Medieval e dominam o pensamento do ocidente até a chegada de Heidegger, que pretende dar à filosofia um segundo início, retomando os Pré-socráticos. Deste modo, para Heidegger, physis não se refere apenas ao que é físico, a própria natureza, como Aristóteles pensou ser. Physis é tudo o que tem presença. Logo, não é apenas o que resulta das definições lógicas, que deixam escapar o logos. O logos, afirma Heidegger, é mais parecido com o Tao, que significa caminho. O que acontece no caminho é o desvelar da verdade, aletheia. Se há este desvelar da verdade é porque existe também o velamento da verdade. A história do Ser, portanto, seria a história do seu velamento e do seu desvelamento.
Para criticar a filosofia existente, Heidegger utiliza o conceito fundamental de diferença ontológica: a diferença entre o ente e o Ser. O ente é o que aparece; a existência, a manifestação dos modos de Ser. O Ser é a presença disto que aparece; a essência, aquilo que fundamenta e ilumina a existência. É o Ser que faz o ente aparecer. Quando a filosofia ocidental abandonou o objeto e deslocou-se para o sujeito, o objeto passou a ser ocupação da ciência. Cada ciência desenvolveu o seu objeto particular de estudo. A Química, por exemplo, estuda a natureza das substâncias químicas. Desse modo, a ciência tem o seu limite, dado pelo objeto que ela estuda. A ciência, portanto, não pensa o Ser, pensa o ente. Todo o pensamento ocidental está dominado pelo ente e não pelo Ser. O Ser foi esquecido. O que caracteriza a filosofia ocidental é o esquecimento do Ser. Heidegger discorre sobre este tema no livro Introdução à Metafísica, onde o seu pensamento inicia esta nova trajetória que irá culminar em seu livro póstumo Acontecimento Apropriativo, que apresenta a primeira descrição do Ser ele mesmo.
Em Acontecimento Apropriativo, Heidegger afirma que a ocorrência do Ser encontra-se fora do tempo da historiografia, pois representa o começo do Ser, quando o Ser e o Nada eram a mesma coisa. Esta ocorrência significa que o Ser, ele mesmo, se apropria do ser-aí, do dasein. Do mesmo modo, o dasein se apropria do Ser. Tudo existe porque há esta pertença mútua entre o Ser ele mesmo e o ser-aí, entre o Ser Absoluto e o ser humano. Não há um sem o outro. Com este tema Heidegger acredita ter dado um segundo início para a filosofia ocidental.
3. Da Fenomenologia ao Pensar Poetante
Na época em que publicou Ser e TempoHeidegger era um jovem professor de filosofia na Universidade de Friburgo (Albert-Ludwigs-Universität Freiburg), que tinha como Reitor o filósofo Edmund Husserl (1859 – 1938), criador da Fenomenologia Pura, com quem estudara e desenvolvera, inicialmente, o seu pensamento.

Fenomenologia distingue-se de outros métodos de conhecimento pelo fato de descrever os fenômenos sem maiores ilações. Estuda o fenômeno e estabelece o seu eidos, ou seja, a essência que o constitui. Mais tarde, em sua segunda fase, Heidegger iria abandonar a Fenomenologia e partir para o que ele chama de o pensar poetante, caracterizado pela abundância de metáforas e referências aos poetas de língua alemã como, por exemplo, o austríaco Rainer Maria Rilke (1875 – 1926).
A partir de Ser e o Tempo, Heidegger passa a ser considerado como um filósofo existencialista, título que rejeita completamente. Segundo ele afirma, nesta obra estava apenas estrategicamente interessado na descrição da existência humana, que ele chamava de ser-aí, “dasein”. Dasein é a palavra germânica para “existente”. Para “existência”, o alemão tem a palavra de raiz latina “existenz”. Heidegger, então, para descrever a existência humana afirma que “a essência da existência é a sua existência”. Parece meio tautológico, mas o que ele está dizendo é: “a essência do dasein e a sua existenz”. Ou seja, a nossa essência é o fato de que existimos.
Heidegger não interpretava, apenas descrevia as características dos fenômenos, conforme aprendera de Husserl. E a descrição que mais tocou Maciel foi a caracterização do dasein como um ser para a morte, um tema recorrente na vida de Maciel. Sua primeira experiência concreta com a morte deu-se quando ele tinha apenas 16 anos de idade, ao cair do oitavo andar no poço do elevador de serviço do seu prédio. Perdeu o ar completamente, mas não a consciência. Quase desfalecido, acreditou estar morto no fundo do poço do elevador. Nesse seu primeiro encontro com a morte, ao invés de angústia e desespero, experimentou uma paz profunda e muito confortável. Aos poucos, contudo, foi recuperando a respiração e tomando consciência de onde estava. Logo o elevador se move e ele percebe que havia caído em cima do elevador, de uma altura não muito grande. E assim, passado algum tempo, foi socorrido.
O momento importante da primeira experiência de Maciel com a morte, contudo, foi o breve momento que passou sem poder respirar, quando se julgou morto. Foi uma experiência fantástica que Maciel somente iria compreender plenamente anos mais tarde, ao ler em Castaneda sobre a importância de entrarmos em relação com a nossa morte pessoal. Heidegger trata deste mesmo ponto quando afirma que o ser autêntico é aquele que entende a morte como a sua morte pessoal. Aquela morte que um dia, inevitavelmente, todos nós iremos enfrentar e que o homem comum, vivendo na inautenticidade, teima em ignorar, optando por pensar nela de forma genérica e impessoal – morre-se.
Sem levar em conta a carga moral da expressão “ser autêntico”, Maciel considera que ser autêntico significa viver a própria morte, ou seja, ter intimidade com ela. Castaneda diria que você deve tornar-se amigo da sua morte. Deve tomá-la como a sua melhor conselheira todas as vezes que as coisas ficarem confusas e você não souber que rumos tomar. A sua morte vai lhe lembrar que a única coisa que realmente importa é o seu toque, o toque da morte. Enquanto ela não lhe tocar, fique satisfeito com isto. Castaneda personifica a morte e diz que ela sempre nos acompanha. Está sempre do nosso lado esquerdo à distância de um braço, ou seja, sempre junto de nós. Este é um dos ensinamentos que constituíam a disciplina do guerreiro impecável.
O que conta para o guerreiro, segundo Castaneda, é a sua impecabilidade. Para compreender o sentido de impecabilidade em Castaneda como aquela maneira de se comportar em que você poupa energia, sem desperdiçá-la naquilo que não é necessário, Maciel vale-se do seguinte exemplo, dado por Don Juan. Imagine um andarilho que está subindo uma montanha íngrime. À sua direita há um precipício e; à esquerda, uma elevação. Enquanto caminha pela trilha, percebe que o cordão do seu sapato está desamarrado. Ele se abaixa para dar o laço no cordão do sapato. Agora, imagine duas situações distintas. Numa delas, uma pedra gigante rola na sua frente e despenca no abismo. Nesse caso, você foi salvo por ter se abaixado para amarrar o sapato. Na outra situação você amarra o sapato e a pedra rola sobre você. Não se pode saber o que vai acontecer. O que compete ao guerreiro, então? O guerreiro tem que ser sempre impecável. Ele deve se abaixar e dar um laço IMPECÁVEL no cordão do sapato. Isto é o máximo que ele pode fazer, pois não se pode prever o futuro.
O conceito de impecabilidade é um conceito fundamental, embora as pessoas comuns lhe prestem pouca atenção. A impecabilidade é uma exigência para atravessar, ileso, o portal da morte e alcançar o incognoscível.


Rio de Janeiro, 01.01.19

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