2025-05-21

O Espírito da Obra: śraddhā e a meditação como cultura do coração

O objetivo principal das práticas de meditação descritas nesta obra é nutrir o praticante de śraddhā, o amoroso sentimento sintrópico que, como uma bússola interior, ilumina a razão em direção à Verdade e ao Absoluto (Brahma-sāmīpya). É essa energia afetuosa e integradora que conduz da realidade ilusória (saṁsāra) à realidade sagrada (nirvāṇa), à medida que se aprofunda a compreensão de Ṛta — a lei universal que harmoniza os processos entrópicos da matéria inorgânica com os fluxos sintrópicos da vida espiritual e orgânica.

As práticas de meditação ganharam fôlego no Ocidente especialmente a partir da década de 1960, impulsionadas pela contracultura — um movimento que questionou os fundamentos da cultura dominante, da política à religião. Em busca de harmonia com a natureza e suas leis sagradas, muitos jovens encontraram na meditação uma forma de reconexão com o fluxo sintrópico da vida, em contraste com as ideologias mecanicistas herdadas do século XIX. Inspirados pelo lema revolucionário “Paz e Amor”, surgiram comunidades hippies e centros de autoconhecimento onde a meditação se tornou prática cotidiana. O “Poder da Flor” enfrentava o poder das armas. Ainda que a utopia hippie não tenha se realizado plenamente, seus valores essenciais — como a busca pela paz interior e a integração com a natureza — deixaram marcas duradouras na cultura ocidental e contribuíram para a inserção da meditação em espaços acadêmicos e terapêuticos, inclusive no Brasil1.

Na Bhagavad Gītā, há um verso2 que traduz com perfeição o estado sintrópico de alegria pura (ānanda) que caracteriza o meditante:
Aquilo que é noite para todos os seres (sarva-bhūtānām), é dia para o sábio (muneḥ) que vê (paśyataḥ); e aquilo que para os seres é dia, é noite para o sábio cuja mente está disciplinada (saṁyamī). (BhG 2.69)
Em outras palavras, o śraddhā yogī — aquele cujo coração foi purificado — está desperto apenas para o aspecto sagrado e sintrópico da realidade. Ele reconhece, em tudo o que existe, uma mesma fonte de luz, dissolvendo as fronteiras entre a vigília e o sonho, entre o objetivo e o subjetivo, entre o saṁsāra e o nirvāṇa.

Este livro-blog reflete profundamente sobre o significado desse ensinamento. Ele nasce de duas intuições fundamentais, amadurecidas na tese Śraddhā in the Bhagavad Gītā (2007):
  1. A de que a ciência ancestral da meditação e da comunhão com o sagrado nasce de śraddhā, esse sentimento profundo e bússola interior que gera amor e clareza, características essenciais da Cultura Sintrópica e sua práxis. Trata-se de uma confiança luminosa que guia a razão em sua jornada em direção à Verdade e ao Absoluto (Brahma-sāmīpya).
  2. A de que, sob a luz de śraddhā, a ciência ióguica revelada na Bhagavad Gītā aparece como o tronco principal de uma árvore espiritual cujos ramos se estendem até o Yoga Sūtra de Patañjali e o caminho do Buda Śākyamuni sob a árvore Bodhi. Assim, as grandes tradições de sabedoria se enraízam num mesmo sentimento intuitivo essencial.
Cabe ainda destacar a dimensão cultural presente no próprio conceito de meditação. O Senhor Buda, ao definir o caminho meditativo, recorreu aos termos bhāvana (adjetivo) e bhāvanā (substantivo), ambos oriundos do campo da agricultura. Meditar é, literalmente, cultivar. O que se cultiva, porém, não é apenas a mente, mas a visão amorosa da realidade: a percepção do sagrado em tudo. Independentemente do estágio inicial do praticante, a meditação conduz, gradualmente, ao reconhecimento da unidade subjacente entre Ser e mundo. É isso que esta obra procura revelar — capítulo após capítulo — como expressão de uma cultura do coração em florescimento.

Śraddhā, por sua vez, representa a chave de acesso a essa cultura do coração. Ela é o ascetismo sereno da mente em direção ao Ātman — o princípio vital que permeia tudo e reside no interior de cada ser. É essa confiança amorosa que sustenta toda práxis espiritual autêntica, e que se revela, ao longo dos versos da Bhagavad Gītā, como a mais alta expressão da inteligência da alma. (cf. Śraddhā in the Bhagavad Gītā, 2007)

N O T A S

(1) A Tropicália é parte desse movimento, conforme ilustra a canção de Gilberto Gil "Aqui e Agora" (1977). "Esse lugar ao qual me refiro não é necessariamente geográfico ou topográfico. É um lugar especial, um lugar interior. Onde quer que a gente esteja, o melhor lugar do mundo é onde você está. E é agora, o tempo de hoje. Na verdade, isso é sobre a meditação. Essa meditação necessária que todos os seres, todos os humanos precisam fazer exatamente pra aguentar o tranco da dificuldade do mundo, que é muito grande. Gerir a existência nesse mundo é uma coisa complicada. O aqui e agora é um pouco isso. É a meditação sobre essa necessidade de estarmos íntegros, completos a qualquer momento e em qualquer lugar." (Gilberto Gil)
Aqui e Agora (Gilberto Gil)

Aqui e Agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui onde indefinido
Agora que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui de onde o olho mira
Agora que o ouvido escuta
O tempo que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui onde a cor é clara
Agora que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui longe em Nova Deli
Agora, sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui fora de perigo
Agora dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora

(2) या निशा सर्वभूतानां तस्यां जागर्ति संयमी।
yā niśā sarva-bhūtānāṃ tasyāṃ jāgarti saṃyamī
यस्यां जाग्रति भूतानि सा निशा पश्यतो मुनेः।।
yasyāṃ jāgrati bhūtāni sā niśā paśyato muneḥ (BhG 2.69)

Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário