2023-05-14

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (III)


O que vem primeiro?

O que vem primeiro, o sentimento (bhāva; bhāvanā; anubhūti) ou o pensamento (cintā; cittavṛtti)? Segundo a Bhagavad Gītā, o sentimento tem precedência sobre o pensamento. Nós não somos movidos pelas ideias, mas sim pelos sentimentos. A vida é uma sucessão de sentimentos. Os conceitos podem ser apreendidos pelas máquinas. As pessoas pensam porque sentem, e não o contrário. São os sentimentos que acionam os pensamentos e as ações. Simbolizado na famosa expressão sânscrita OṂ (AUṂ), o sentimento de amor representa, segundo a epistemologia da Bhagavad Gītā, a semente original de todas as existências e a causa do próprio surgimento do universo, que teria se dado segundo a fórmula “Ekoham, bahusyam prajayeyeti” (Eu sou Um, tornar-me-ei também múltiplos seres), discutida na Chāndogya Upaniṣad. Assim, o universo teria surgido do sentimento amoroso, expressão da vontade criadora no ser humano, manifestada como consciência sintrópica (espírito), mente (matéria) e alento vital (energia).

Os sentimentos superiores nos aproximam da realização espiritual, tanto quanto os pensamentos, emoções e sentimentos inferiores assediam e escravizam a nossa mente. Desta forma, pode-se argumentar que ser e pensar não são o mesmo, como queria Aristóteles. Ser é sentir. É experimentar, progressivamente, o amor. “Sentir” (verbos “aṇūbhū” e “bhū”) denota a experiência de ser, significa “experimentar ser”, ou “vir-a-ser”. Os sentimentos expressam necessidades imediatas dos seres e a memória deles é conhecida como “rasa”. Quando o sentimento é o amor, diz-se que o resultado de rasa é a paz do coração (śānti). Não é o conhecimento intelectual e racional do conceito de amor que nos faz convergir para a consciência sintrópica, mas o sentimento deste amor universal (śraddhā), que unifica todos os demais.

No centro de toda a epistemologia da Bhagavad Gītā está a referência à dimensão amorosa e universal do Ātman (Ser), presente em nossos corações espirituais como a consciência intuitiva, com o poder de iluminar a nossa razão individual e egocêntrica. É o sentimento de amor universal, da consciência espiritual, que dá vida à mente material, onde se projetam todos os pensamentos e emoções. É a consciência universal que, por ser luminosa como o sol, reflete algo da sua luz na mente material e opaca como a lua. Enquanto o ato de elaborar raciocínios é próprio de nossa natureza material e inconstante, o sentimento de simplesmente ser é o que caracteriza a nossa natureza superior de testemunha. Indica aquela “consciência sintrópica pura”, que testemunha e regula amorosamente o mundo. Assim como as formigas e as abelhas operam sob a jurisdição de uma consciência coletiva, também operamos sob o campo de influência de uma consciência sintrópica maior e universal. Desenvolvemos, deste modo, a capacidade de trabalhar em sintonia com a lei (Ṛta) emanada desta consciência (Ātman), que zela pelo bem-estar universal. Desta sintonia com a consciência da unidade sintrópica de todas as coisas (Bhāvana) nasce a cultura sintrópica (Śuddha Dharma), que ritualiza a vida toda (Karma/Kriyā), transformando-a num ato de contínua contemplação e meditação (Dhyāna).

Em nossa herança genética trazemos os vestígios de nossas naturezas de ordem mineral, vegetal e animal. Ainda temos em nós algo do cérebro dos reptilianos, que se movem segundo mecanismos de recompensa para a satisfação imediata de desejos. Trazemos adormecido em nós o réptil que não cria laços de amizade com o mundo, tal como a cobra que, faminta, se alimenta do próprio ovo. E trazemos também o comportamento de grupo, típico dos mamíferos, que vivem segundo relações de apego familiar, um primeiro tipo de sentimento amoroso. De um lado, temos a materialidade da mente emocional, racional e lógica, que constitui o nosso consciente, subconsciente e inconsciente (Jīva); de outro, a imaterialidade da consciência sintrópica universal (Ātman) que anima o corpo, representada pelo alento vital.

Conclusão

A questão central do Mahābhārata é a tensão entre os processos entrópicos e sintrópicos que regem a vida e o universo. A perspectiva revelada no Mahābhārata e na Bhagavad Gītā pode ser compreendida a partir de um ponto de vista espiritual e secular que opõe a morte, não à vida, mas ao nascimento. A vida, como expressão sintrópica da consciência, preexistiria ao nascimento e não seria extinta pela morte. O processo de nascimento está associado ao processo sintrópico que organiza a vida individual na matéria. A primeira parte da vida biológica representa um estado de ordem e complexidade que pode ser associado à sintropia, definida como uma tendência à ordem, organização e complexidade. Em contraste, o processo entrópico representa a tendência à desordem, aleatoriedade e decadência, que está associada à morte.

O Mahābhārata pode ser entendido como uma representação histórico-mitológica dos processos entrópicos e sintrópicos que regem o funcionamento da vida e do universo, conduzindo-nos gradativamente do saṃsāra (o mundo caótico das aparências) ao nirvāṇa (o mundo sagrado que se esconde sob as aparências).O texto explora a ideia de que a existência humana é uma luta constante entre estas forças opostas que precisam ser amorosamente equilibradas e harmonizadas, em conformidade com a práxis sintrópica exposta por Krishna na Bhagavad Gītā. Esta práxis funda-se no pressuposto de que universo é governado por uma consciência superior que rege nossas vidas, de modo que seria possível transcender as limitações da mente e atingir os níveis mais elevados de consciência sintrópica. Desta forma, como vimos, a ciência sustentável da pós-modernidade pode ser explicada a partir da expressão paradigmática “śraddhā quaerens intellectum” que promove um entendimento sintrópico da realidade (Ṛta) por meio do sentimento íntimo de śraddhā, que representa o princípio da confiança, da prudência e da verdade.

REFERÊNCIAS

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