No vasto universo da espiritualidade indiana, o Yoga se revela não como uma tradição monolítica, mas como um delta fértil alimentado por ao menos duas grandes correntes ancestrais. De um lado, flui a corrente védica, cuja busca pela transcendência culmina na filosofia vedānta, nos Yoga Sūtras de Patañjali e na Bhagavad Gītā. Do outro, corre a corrente tântrica, cujas raízes pré-védicas talvez remontem às civilizações do Vale do Indo, e que floresce no Hatha Yoga e no complexo sistema de chakras, vendo o corpo não como uma prisão, mas como um microcosmo do universo sagrado. Embora a Bhagavad Gītā pertença inequivocamente à linhagem védica, ela representa um ponto de síntese tão revolucionário que seu ensinamento transcende as escolas, podendo ser compreendido em sua essência como Śraddhā Yoga — a arte de fazer do amor um ato cognitivo e a chave da ciência da meditação (heartfulness).
Śraddhā é o que permite a Arjuna levantar-se. É o que transforma sua crise paralisante em ação iluminada. Essa perspectiva reformula o entendimento da Bhagavad Gītā não como um cardápio de yogas diferentes, mas como um único e integrado Śraddhā Yoga. Para entender a magnitude desse argumento é preciso primeiro navegar pelo Mahābhārata e compreender a sua relação com o período védico, focado no conhecimento (jñāna) do Ser (Ātman), e a ciência do Rāja Yoga de Patañjali, focada na maestria da mente (citta-vṛtti-nirodhaḥ - a cessação [nirodhaḥ] das flutuações [vṛtti] do campo mental [citta, consciência, mente). O Mahābhārata dialoga com a tradição védica que culmina com as Upaniṣades, que tratam da realização humana como resultado exclusivo do conhecimento (Jñāna) que discerne o real do ilusório, o Ser (Ātman) do não-ser. É uma via de transcendência que relega a ação humana a um estágio preliminar a ser superado, juntamente com o corpo onde essa ação se processa, que pode ser visto como um invólucro sem realidade e substância. Em contraste, as práticas proto-tântricas veem o corpo como o principal veículo para a iluminação. A tradição tântrica celebra a energia feminina imanente do cosmos, a Śakti, e nos oferece um mapa energético do corpo para se poder alcançar o despertar da consciência, por meio da ciência dos chakras e da kuṇḍalinī.
Por séculos, estas correntes correram em paralelo, mas é no grande épico do Mahābhārata que elas se encontram de forma explícita. No momento crucial que antecede a Bhagavad Gītā, Krishna — o principal expoente da tradição védica — aconselha Arjuna a invocar a deusa Durgā, a personificação da Śakti, para obter a força necessária para a batalha. Neste ato, o avatar da consciência védica valida o poder tântrico, revelando que a sabedoria (jñāna) e a energia da ação amorosa (śraddhā) são as duas asas do mesmo pássaro da libertação, lembrando que um pássaro não consegue voar com apenas uma de suas asas.
É neste contexto de síntese que, no coração da Bhagavad Gītā pulsa o Śraddhā Yoga. Krishna lembra a Arjuna os caminhos convencionais da Ação (Karma Yoga), do Conhecimento (Jñāna Yoga) e da Devoção (Bhakti Yoga), revelando que o fio de ouro que tece esses três caminhos em uma única tapeçaria é śraddhā. Esta palavra sânscrita, muito mais profunda que "fé", denota a convicção sintrópica: a conexão viva com a verdade que nasce do coração e se torna o motor de toda a prática. Sem śraddhā, a ação não se torna, verdadeiramente, desinteressada, mas mecânica; o conhecimento mostra-se estéril e a devoção, superficial. É śraddhā que transforma a crise paralisante de Arjuna em ação lúcida, permitindo-lhe fazer do amor um ato de conhecimento e da ação um ato de entrega.
Aqui, a Bhagavad Gītā revela sua expressão mais sublime e, quiçá, superior. Se o Rāja Yoga de Patañjali nos oferece uma compilação da ciência da mente — o "laboratório" onde aprofundamos esta ciência e descobrimos a anatomia da consciência e os segredos do seu funcionamento em condições controladas —, a Bhagavad Gītā nos desafia a aplicar essa ciência no mais radical dos campos de prova: a vida. O seu ensinamento não visa a quietude alienada de uma caverna, mas a equanimidade inabalável no epicentro do campo de batalha. Este é o verdadeiro teste do puro (śuddha) Yoga: não apenas silenciar os vṛttis (flutuações mentais) em um assento de meditação, mas sustentar o foco absoluto do coração, a clareza e a paz internas (o estado de Turīya, a supra-consciência) em meio ao caos da existência. Assim, se Patañjali fornece um mapa preliminar do território interior, Krishna ensina a arte de navegar por ele no tráfego intenso da existência mundana.
Desta forma, a Bhagavad Gītā transcende a si mesma, ensinando-nos a transformar a vida inteira em um ato de meditação – heartfulness. O seu ideal não é um transe inconsciente, mas o estado de hiper-lucidez, oriundo do foco absoluto do coração, que deve permear cada ação, cada palavra, cada respiração. Em última análise, o Śraddhā Yoga é a arte magistral de manter, continuamente, o foco absoluto do coração, que transforma todo e qualquer movimento em um ato completo, que envolve jñāna, bhakti e karma, e cujo nome, em última essência é meditação. O Śraddhā Yoga alcança o coração de nossos maiores conflitos e nos desafia a não apenas “praticar’ o Yoga em momentos isolados, mas a “nos tornarmos” puro Yoga, ou śraddhā yogis, em tempo integral, em um processo contínuo e crescente de unificação consciente com a śakti. E por isso, talvez não haja ensinamento mais completo, radical e profundamente humano em toda a biblioteca da sabedoria mundial que este transmitido por Krishna a Arjuna na Bhagavad Gītā.
N O T A S
[1] Em sítios como Harappa e Mohenjo-Daro (c. 2500-1900 a.C.), encontramos artefatos que sugerem práticas que seriam, muito mais tarde, formalizadas no Tantra. O mais famoso é o Selo de Pashupati, que retrata uma figura sentada em uma postura semelhante à de Yoga (mulabandhasana), rodeada por animais. Muitos acadêmicos interpretam essa figura como um "proto-Shiva", o senhor dos animais e mestre yogue. Encontramos também estatuetas de deusas-mãe e símbolos como lingams e yonis, que apontam para um culto à fertilidade e à Deusa (Śakti), elementos centrais no Tantra.
[2] Muitos acadêmicos ocidentais consideram este hino a Durgā uma interpolação posterior no texto do Mahābhārata, adicionado séculos depois para refletir a crescente popularidade e importância da tradição Shakta (o culto à Deusa). Isto é completamente irrelevante aqui para o nosso argumento, pois não anula o nosso entendimento de que Krishna é uma figura complexa e universal que se apresenta exatamente no ponto de intersecção entre a sabedoria védica e a sabedoria tântrica/shakta. A originalidade e novidade da Bhagavad Gītā em relação à tradição védica está precisamente em seu argumento que concilia e unifica pravṛtti (via da ação) e nivṛtti (via do conhecimento, ou do abandono do mundo – a via da “não-ação”). Em suma, seja o Hino a Durgā original ou uma interpolação, ele funciona como uma ilustração magistral do que o texto já sugere. Isso apenas revela a incrível capacidade da tradição indiana de tecer diferentes fios espirituais numa única tapeçaria.
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Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2025.