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II. Śraddhā como Motor
do Conhecimento e da Criação
II.1. Śraddhā: a energia do ardor do foco absoluto do coração e a certeza intuitiva daí derivada
No âmago da Bhagavad Gītā pulsa uma palavra que não é apenas conceito, mas vibração ontológica: śraddhā. Muitas vezes traduzida por “fé”, esse termo carrega implicações muito mais profundas que a simples crença em algo invisível ou a adesão a uma doutrina. Śraddhā é, antes de tudo, uma expressão do foco absoluto do coração, o sentimento de certeza interior e confiança luminosa, que não exclui o intelecto, mas o alimenta e o conduz.
Śraddhā não é cega, é visionária. Não é afeto sentimental, mas vibração virtuosa, viril, valente e corajosa da verdade no coração. Ela não se contrapõe à razão — ela a impulsiona. Como já discutido, śraddhā é a vibração sintrópica do Ser que reconhece, na própria consciência, a direção de Ṛta — a ordem cósmica [1]. É o sopro interno, a força que move o buscador antes mesmo que ele compreenda o caminho. É a voz silenciosa que sussurra a verdade antes que a linguagem a nomeie.
Śraddhāvān labhate jñānam — "Somente aquele que tem śraddhā alcança o conhecimento." (BhG 4.39)
Este verso afirma de forma lapidar: sem śraddhā, não há conhecimento. A razão só pode se tornar luz quando está enraizada em śraddhā, a condição sintrópica para o acesso à sabedoria. O intelecto, separado do coração, pode analisar, comparar, construir sistemas. Mas só sob o fogo de śraddhā ele se ilumina, se torna lúcido, inspirador, criativo.
II. 2. Śraddhā como transmutadora dos estados internos
A criação genuína não nasce do caos (entropia), mas da transfiguração do caos em cosmos (equilíbrio sintrópico). Nesse processo, śraddhā atua como fogo alquímico. Ela purifica as emoções, transmuta os impulsos e revela o potencial oculto da consciência. Vejamos como essa força opera sobre os principais estados internos:
- Kāma (desejo egoico) → transmutado em bhakti (devoção).
- Rāga (apego) → purificado como niṣṭhā (firmeza, constância) ou vairāgya (desapego) para o serviço lúcido.
- Dveṣa (aversão) → convertido em karuṇā (compaixão).
- Moha (ilusão) → dissipado pela prajñā (sabedoria intuitiva).
Śraddhā é a força que torna possível esse movimento ascensional. Ela nos permite agir mesmo na ausência de provas objetivas, avançar mesmo em meio às sombras, e entregar mesmo quando o ego quer controlar. Por isso ela é o oposto de māyā — enquanto essa energia ilude e fragmenta, śraddhā unifica. Ela restabelece o eixo interno e reconcilia as polaridades.
No plano do Yoga, śraddhā é a força que sustenta a disciplina (tapas), alimenta o discernimento (viveka) e conduz à concentração (dhāraṇā) e à meditação (dhyāna). Ela é tanto impulso quanto permanência. É o gesto de retorno do ser à sua origem. Por isso dizemos que śraddhā é o movimento sintrópico por excelência — não dispersa, recolhe e eleva.
II.3. Śraddhā e a educação da razão: buddhi purificada
No paradigma sintrópico, a razão não é abolida — ela é educada. A Bhagavad Gītā propõe um caminho para a purificação da buddhi, o intelecto superior. Essa razão purificada deixa de ser apenas lógica e se torna instrumento da visão espiritual, isto é, uma razão iluminada pelo coração.
O buddhi yoga (BhG 2.39; 10.10) é exatamente isso: a união da razão com a luz da verdade que se irradia do coração. E o que a sustenta é śraddhā. Ela é a força que permite ao intelecto se voltar para o Ser, deixar de servir aos desejos do ego e começar a discernir com lucidez o real do ilusório.
Nesse processo, śraddhā não é contrária à dúvida metódica — ela é o solo fértil que permite que a dúvida frutifique em verdade [2]. É por isso que podemos propor a fórmula: śraddhā quaerens intellectum — a certeza que busca compreensão. Esta proposição supera tanto o fideísmo medieval (fides quaerens intellectum) quanto o ceticismo cartesiano (dubito, ergo cogito, ergo sum). Em vez de fé irracional, śraddhā representa a convicção sintrópica que, não apenas sobrevive à dúvida metódica, mas funciona como base para a edificação de todo o conhecimento. Não se trata de crer contra a razão que existe uma verdade, mas de intuir, com todo o rigor da inteligência amorosa, o que se considera digno de submeter à prova. Trata-se de uma razão enraizada no amor, na bhāvanā — a conexão viva com o sagrado coração no centro da consciência.
II. 4. Meditação como reintegração da hierarquia interna
A meditação (dhyāna), nesse contexto, é a prática por excelência da integração dos planos do ser. O foco absoluto do coração — não no sentido psicológico, que é o centro de "emoções turbulentas e de um pseudoamor", mas como um gesto ritual de entrega à luz interior — permite que a razão se renda ao Ser e reencontre seu lugar. Esse "gesto ritual de entrega" é um ato consciente de subordinação, impulsionado por śraddhā, que é a "qualidade intrínseca do sagrado coração, a certeza que irradia amor e convicção". É por meio desse processo que a razão, purificada e acalmada, se subordina ao controle do sagrado coração, a verdadeira sede do Ātman, para se assentar em harmonia com ele.
A metáfora da carruagem, central na Bhagavad Gītā, é aqui resgatada e "corrigida" em seu sentido original, revelando-se como uma alegoria da arte e da ciência da meditação. O texto da Bhagavad Gītā nos convida a superar o entendimento ortodoxo do Vedanta, por exemplo, de Shankara, que privilegia a análise estática e a separação dos planos. Em uma interpretação védico-tântrica da quadriga, o corpo é o carro; os sentidos são os cavalos; a mente (manas) são as rédeas; e a razão espiritual (buddhi) é o passageiro, mas não um passageiro passivo ou meramente analítico. No caminho do Yoga, o passageiro (Arjuna) se subordina à consciência do Ser (Krishna), o cocheiro. O que a Bhagavad Gītā nos revela é que a razão, por meio da meditação, aprende a se render ao Ser, o que confere a ela o poder de se unir a ele. A unificação de si mesmo com o Ātman é a nossa "vocação" última, tal qual ensina a metáfora dos dois pássaros, do Ṛg Veda, em que um come o fruto doce e amargo da vida, enquanto o outro apenas observa. A Bhagavad Gītā propõe a superação deste dilema, tornando-se o nosso manual de instruções para que, através da meditação, o pássaro que come os frutos se una ao pássaro que o observa, revelando-se, em essência, o mesmo Ser.
No ser desintegrado, as rédeas da mente estão soltas, os cavalos correm desorientados e em descompasso, fazendo da razão um escravo dos sentidos. No ser integrado — o śraddhā yogin — buddhi toma as rédeas com firmeza, a mente se aquieta, os sentidos obedecem, e o Ātman orienta o caminho. Este é o estado de foco absoluto: um centro imóvel em meio ao movimento, uma consciência que age sem se perder. A meditação, portanto, é mais do que técnica: é recondução simbólica à carruagem da alma. É o ritual da reintegração, onde śraddhā recolhe os fragmentos da psique e os devolve à sua fonte luminosa. Por isso dizemos que "a meditação é o retorno da razão ao sagrado coração", onde a verdade não é pensada, mas revelada.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Cf. TURCI, R. Śraddhā in the Bhagavad Gītā. International Journal of Dharma Studies, 2015. Link:
A pesquisa de Turci explora Śraddhā como a "vibração sintrópica do Ser" que reconhece a ordem cósmica (Ṛta).
[2] Cf. TURCI, Rubens. “Shraddhá” quaerens intellectum: A certeza interior como pressuposto para o conhecimento. In: SCIENTIARUM HISTORIA II – Encontro Luso-Brasileiro de História das Ciências – UFRJ / HCTE & Universidade de Aveiro, 2º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, 2009, Rio de Janeiro. Link:
O texto argumenta que Śraddhā não é contrária à dúvida metódica, mas o "solo fértil que permite que a dúvida frutifique em verdade".
Próximo texto:
Śraddhā Quaerens Intellectum: O Dilema Moderno da Criatividade e o Nascimento de um Novo Paradigma (III)
Rio de Janeiro, 19 de julho de 2025.
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