2020-10-23

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (III) A Teoria de Verdade

Este texto é o terceiro da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020). 

A epistemologia de que se vale Krishna na Bhagavad Gītā deriva da milenar filosofia do sāṃkhya, segundo a qual a matéria possui três qualidades básicas, denominadas, respectivamente, sattva (harmonia e equilíbrio), rajas (movimento e paixão) e tamas (inércia e indolência). De acordo com o sāṃkhya, em cada situação da vida de um indivíduo, dependendo do estímulo interno do espírito, predomina uma dessas três qualidades. Por isto, os indivíduos também podem ser classificados, em conformidade com as suas inclinações, como sáttvicos, rajásicos e tamásicos. Os três guṇas são os responsáveis pela produção de todos os pares de opostos da realidade fenomênica deste mundo dual: afeto e aversão; prazer e dor; amizade e inimizade etc. Estas três qualidades (triguṇas) da realidade material não existem isoladamente, em forma pura, mas sempre conjuntamente, com uma predominando sobre as outras duas e compondo todo o espectro, tanto da realidade subjetiva, como objetiva. Em termos simples, o predomínio de sattva denota o estado harmonioso e equilibrado entre matéria e espírito, característico do funcionamento ātma-para (espiritualista), discutido na seção anterior. O predomínio de rajas ou de tamas caracteriza o funcionamento guṇa-para (materialista). O guṇa sattva é indicativo da presença e predominância do princípio inteligente e espiritual, tanto quanto os guṇas tamas e rajas o são da influência e predominância do princípio material e do consequente estado de sujeição do espírito à matéria. Sattva representa a harmonia; rajas, o estado dinâmico e explosivo, típico daquilo que é colorido pela paixão; e tamas, o estado obscuro, pesado e inerte, característico do que é opaco e sem luz. Deste modo, a śraddhā tamásica pode traduzir-se, por exemplo, nos fenômenos do fundamentalismo religioso; a śraddhā rajásica, naqueles outros ocasionados pela fé apaixonada e em descompasso com a razão; e a śraddhā sáttvica, que é o objeto central da Bhagavad Gītā, pela sintonia com as intuições superiores do espírito e confiança na certeza científica.

Śraddhā, conforme vimos nas seções anteriores, emana de nós em conformidade com o nosso entusiasmo, a nossa energia vital e os distintos padrões de comportamento e estados mentais que nos definem a cada momento em função dos três guṇas. Para ilustrar como os três guṇas modulam a intensidade e a qualidade da nossa śraddhā, tomemos um exemplo emprestado da linguagem musical. Se considerarmos o corpo humano como um violão onde o coração representa as suas cordas, os três guṇas, tamas, rajas e sattva seriam, respectivamente, o ritmo, a melodia e a harmonia. A linguagem musical, a linguagem poética, a linguagem científica e a língua falada podem ser entendidas como expressões da energia cósmica (brahma-śakti), que o espírito imprime na matéria sob a forma de śraddhā. A música, a literatura e mesmo os diálogos têm o poder de nos tocar, fazendo-nos vibrar em sintonia com eles, atualizando a nossa śraddhā e regulando, inclusive, o ritmo da nossa respiração. O ritmo da respiração, conforme já observado pela ciência, influencia o próprio ritmo cardíaco, contribuindo para gerar estados de mais ou menos calma e paz. Deste modo, pode-se dizer que as distintas composições de cada linguagem representam os mais variados modos de predominância tamásica, rajásica, ou sáttvica, segundo os quais a śraddhā reverbera em nossos corações.

Decorre do texto da Bhagavad Gītā, em suma, o entendimento de que as três modalidades de śraddhā (sáttvica, rajásica e tamásica) abarcam todas as nuances das verdades menores e provisórias, estabelecidas a partir de modelos da ciência, ou segundo as distintas crenças religiosas. De acordo com a Bhagavad Gītā, a verdade relativa de cada pessoa expressa a sua śraddhā. E é por isto que se pode dizer que a razão, sem o auxílio do coração, não é capaz de nos conduzir às verdades superiores. Embora o nível mais inorgânico da realidade possa ser conhecido por meio dos sentidos e do raciocínio lógico, o mundo orgânico contém segredos acessíveis apenas ao sentimento intuitivo sintrópico, que surge quando se alcança, em estado de contemplação ou meditação profunda, os níveis mais elevados da śraddhā sáttvica. A espiritualidade pura define-se por esta modalidade de śraddhā, que ilumina e maximiza o funcionamento da razão. É o amoroso sentimento sintrópico, que brota do coração, e não da razão, que traz a perspectiva holística e sistêmica da vida como um todo. Ele pode ser percebido, ou definido, como a capacidade de perceber a verdade antes de que se apresentem as razões para tal. A ausência deste sentimento de amor e compaixão, contudo, revela a natureza rajásica ou tamásica, da śraddhā que se traduz, então, na fé cega, no fundamentalismo, no ódio e no dogmatismo exacerbado.

É um fato bem conhecido que a separação radical, ocorrida no ocidente, entre as esferas da teologia e da filosofia teve por objetivo principal salvaguardar os dogmas de fé Igreja Católica. O surgimento da ciência moderna representou uma séria ameaça às crenças bíblicas. Esta ameaça levou os doutores da Igreja a promoverem uma separação artificial entre as verdades oriundas da luz natural da razão e aquelas que eles entendiam como oriundas da fé, da luz do coração. Desse modo, como consequência direta da refutação científica de alguns dogmas, estabeleceram-se estes dois domínios distintos: o domínio das verdades científicas e o domínio das crenças, ou das “meias verdades” postuladas pelo clero. A disciplina da mente estabelecida na Bhagavad Gītā há mais de dois mil anos trata desta mesma dicotomia e contempla uma solução que elimina esta falsa dicotomia criada no ocidente. Como veremos a seguir, a separação traumática e artificial entre as esferas do sagrado e da ciência, pode ser alcançada por meio da compreensão do sentido profundo de śraddhā na Bhagavad Gītā.

O texto da Bhagavad Gītā vale-se de Arjuna para mostrar como a śraddhā nasce daquela certeza sensível e fé em si mesmo que, na filosofia ocidental, é expressa pelo cogito cartesiano – a certeza indubitável. O termo “śraddhā” ocorre vinte e uma vezes ao longo da Bhagavad Gītā, oito vezes no capítulo dezessete, onde śraddhā aparece como a propriedade constitutiva e definidora dos seres e, em sua modalidade sáttvica, como a condição sine qua non do critério universal de verdade. As ocorrências de śraddhā são as seguintes:

 (1) (BhG 3.31). [Krishna:] Aqueles que, plenos de śraddhā e sem ceder às baixas inclinações, praticam esta minha disciplina, alcançam a liberação da escravidão através de suas ações.

 (2) (BhG 4.39). [Krishna:] Quem possui śraddhā alcança a sabedoria. Sendo devoto desta sabedoria e controlando os sentidos, alcança-se um estado de compreensão e paz suprema.

 (3) (BhG 4.40). [Krishna:] Entretanto, o ignorante, por não possuir śraddhā e estar com o Espírito (Ātman; o Ser) adormecido, é levado à destruição.  Para aquele cujo Espírito encontra-se adormecido, não há felicidade, nem neste mundo, nem no outro.

 (4) (BhG 6.37). [Arjuna:] Qual o destino daquele que, embora possua śraddhā, não tem ainda controle sobre as suas inclinações, de modo que sua mente se desvia do [śuddha] yoga e, em consequência, sua prática não é perfeita?

 (5) (BhG 6.47). [Krishna:] De todos os iogues, aquele que me alcança pelo Espírito (Ātman), que me reverencia repleto de śraddhā, este eu considero o melhor dentre os iogues.

 (6-7) (BhG 7.21) [Krishna:] Seja qual for a forma de devoção, desde que efetuada com śraddhā, eu premiarei o devoto com o fortalecimento de sua śraddhā.

 (8) (BhG 7.22) [Krishna:] Logo, eu preencho os desejos daquele que possui śraddhā.  De modo que os desejos atendidos, o são através do Espírito [Ātman].

 (9) (BhG 9.3) [Krishna:] Oh vencedor dos inimigos, aqueles que são desprovidos de śraddhā em relação ao dharma, não me alcançam. Eles renascem na via de samsāra.

 (10) (BhG 9.23) [Krishna:] Oh filho de Kuntī, mesmo aqueles que são devotos de outras divindades, quando o são cheios de śraddhā, eles na verdade prestam reverência ao Espírito [Ātman], ainda que não da maneira mais adequada.

 (11) (BhG 12.2). [Krishna:] Aqueles que colocam suas mentes no Espírito [Ātman], reverenciando-me com disciplina e com a mais elevada śraddhā, são considerados por mim os mais perfeitos em [śuddha] yoga.

 (12) (BhG 12.20). [Krishna:] Aqueles devotos que seguem este dharma imortal e que reverenciam o Espírito Supremo [Ātman] com śraddhā, me são extremamente queridos.

 (13) (BhG 17.1). [Arjuna:] Oh Krishna, e aqueles que, embora negligenciando as Escrituras Sagradas, executam rituais religiosos plenos de śraddhā? Qual é a condição deles em termos de sattva, rajas e tamas?

 (14) (BhG 17.2). [Krishna:] A śraddhā dos seres corpóreos classifica-se em três tipos. Sua inata natureza pode ser sáttvica, rajásica e tamásica.

 (15-7) (BhG 17.3). [Krishna:] A śraddhā conforma-se com a natureza essencial de cada um, Oh Bhārata.  Cada ser humano define-se pela sua śraddhā.  Cada um é, na verdade, sua própria śraddhā.

 (18) (BhG 17.13). [Krishna:] Define-se como tamásica a ação ritualística realizada sem śraddhā, sem a devida doação, sem nenhuma recitação de mantras, sem a distribuição de alimentos sagrados e que não obedece nenhuma regra.

 (19) (BhG 17.17). [Krishna:] Quando a tripla austeridade [do corpo, da fala e da mente] é praticada com a mais elevada śraddhā pelas pessoas de autocontrole, que não se apegam aos frutos de suas ações, ela é considerada sáttvica.

 (20) (BhG 17.28). [Krishna:] Oh Filho de Prithā, quando realizada sem śraddhā, qualquer prática ascética é considerada nula (asat) e não produz frutos, nem nesta vida, nem na próxima.

 (21) (BhG 18.71). [Krishna:] E qualquer pessoa que escute este diálogo com śraddhā e respeito também será liberada, alcançando os mundos daqueles cujas ações são virtuosas.

Para a Bhagavad Gītā, o motivo propulsor (prayojana) da busca da verdade é o desejo sincero para alcançá-la e aceitá-la, mesmo quando ela conA Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (IV) Śraddhā

traria todas as nossas crenças e expectativas anteriores. O enfrentamento sincero das dúvidas nos aproxima da verdade. Promove o desenvolvimento de śraddhā, que se inicia como uma inclinação forte, fruto da harmonia entre a razão (mente) e o coração (intuição), que, invariavelmente, nos conduz aos estados de confiança e certeza interior.

A primeira ocorrência do termo śraddhā aparece em BhG 3.31, relacionada ao processo de aprimoramento da ação. A ênfase é na ação, conforme o sentido presente no adjetivo shraddhāvant, que denota as pessoas possuidoras de śraddhā.  Deste modo, Krishna indica a relação de śraddhā com a determinação de atender à Vontade Suprema, o Espírito (Ātman). As ocorrências de śraddhā no capítulo quatro mostram a importância de se manter os órgãos dos sentidos sob controle (samyatendriyah).  Krishna espera conseguir que Arjuna alcance o funcionamento ātman-para. O melhor treino é procurar sempre reagir aos estímulos do mundo exterior com os sentidos controlados, para que a luz do Espírito possa se manifestar (BhG 4.39). De outro modo, o resultado é o estado de confusão, que leva à destruição (BhG 4.40). A premissa implícita neste capítulo (BhG 4.1-9) é a validade do princípio de lokasamgraha, ou princípio do bem estar e equilíbrio universal, definido anteriormente (BhG 3.20 e BhG 3.25) e que garante a coerência do processo do mundo. De acordo com BhG 4.39-40, śraddhā surge como resultado de se colocar o ego (ahamkāra) sob a jurisdição e controle do Espírito (Ātman).  Isto fica ainda mais claro nos versos BhG 6.37 e BhG 9.3, onde śraddhā representa uma espécie de ascetismo sereno da mente. Śraddhā conduz à verdade porque nos liberta dos véus de ilusão (BhG 7.22) que nos envolvem desde o nascimento (BhG 7.27-9). As ocorrências do termo śraddhā no capítulo dezessete deixam evidente que śraddhā não pode ser traduzida como a mera fé religiosa. Traduzir a ocorrência de śraddhā em BhG 17.1 por fé geraria uma contradição, uma vez que é impossível conciliar a fé com a negligência em relação às Escrituras. Śraddhā não se define como “fé nas Escrituras”, ou seja, não representa algo imposto de fora. Pelo contrário, as ocorrências de BhG 17.2-3 mostram que śraddhā define a natureza essencial de cada um. E é por isto que a medida de śraddhā representa o critério para a execução de qualquer atividade, conforme sugerem as demais ocorrências deste capítulo: qualquer coisa feita com śraddhā tem uma parcela de verdade, mas se feita sem śraddhā torna-se nula.  Desse modo, a última ocorrência de śraddhā na Bhagavad Gītā (BhG 18.71) apenas confirma o que vimos: śraddhā é a condição sine qua non para se alcançar a verdade.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (IV) Śraddhā

Rio de Janeiro, 23.10.20
(Atualizado em 20.09.22)

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