Śraddhā, conforme vimos nas seções anteriores, emana de nós em conformidade com o nosso entusiasmo, a nossa energia vital e os distintos padrões de comportamento e estados mentais que nos definem a cada momento em função dos três guṇas. Para ilustrar como os três guṇas modulam a intensidade e a qualidade da nossa śraddhā, tomemos um exemplo emprestado da linguagem musical. Se considerarmos o corpo humano como um violão onde o coração representa as suas cordas, os três guṇas, tamas, rajas e sattva seriam, respectivamente, o ritmo, a melodia e a harmonia. A linguagem musical, a linguagem poética, a linguagem científica e a língua falada podem ser entendidas como expressões da energia cósmica (brahma-śakti), que o espírito imprime na matéria sob a forma de śraddhā. A música, a literatura e mesmo os diálogos têm o poder de nos tocar, fazendo-nos vibrar em sintonia com eles, atualizando a nossa śraddhā e regulando, inclusive, o ritmo da nossa respiração. O ritmo da respiração, conforme já observado pela ciência, influencia o próprio ritmo cardíaco, contribuindo para gerar estados de mais ou menos calma e paz. Deste modo, pode-se dizer que as distintas composições de cada linguagem representam os mais variados modos de predominância tamásica, rajásica, ou sáttvica, segundo os quais a śraddhā reverbera em nossos corações.
Decorre do texto da Bhagavad Gītā, em suma, o entendimento de que as três modalidades de śraddhā (sáttvica, rajásica e tamásica) abarcam todas as nuances das verdades menores e provisórias, estabelecidas a partir de modelos da ciência, ou segundo as distintas crenças religiosas. De acordo com a Bhagavad Gītā, a verdade relativa de cada pessoa expressa a sua śraddhā. E é por isto que se pode dizer que a razão, sem o auxílio do coração, não é capaz de nos conduzir às verdades superiores. Embora o nível mais inorgânico da realidade possa ser conhecido por meio dos sentidos e do raciocínio lógico, o mundo orgânico contém segredos acessíveis apenas ao sentimento intuitivo sintrópico, que surge quando se alcança, em estado de contemplação ou meditação profunda, os níveis mais elevados da śraddhā sáttvica. A espiritualidade pura define-se por esta modalidade de śraddhā, que ilumina e maximiza o funcionamento da razão. É o amoroso sentimento sintrópico, que brota do coração, e não da razão, que traz a perspectiva holística e sistêmica da vida como um todo. Ele pode ser percebido, ou definido, como a capacidade de perceber a verdade antes de que se apresentem as razões para tal. A ausência deste sentimento de amor e compaixão, contudo, revela a natureza rajásica ou tamásica, da śraddhā que se traduz, então, na fé cega, no fundamentalismo, no ódio e no dogmatismo exacerbado.
É um fato bem conhecido que a separação radical, ocorrida no ocidente, entre as esferas da teologia e da filosofia teve por objetivo principal salvaguardar os dogmas de fé Igreja Católica. O surgimento da ciência moderna representou uma séria ameaça às crenças bíblicas. Esta ameaça levou os doutores da Igreja a promoverem uma separação artificial entre as verdades oriundas da luz natural da razão e aquelas que eles entendiam como oriundas da fé, da luz do coração. Desse modo, como consequência direta da refutação científica de alguns dogmas, estabeleceram-se estes dois domínios distintos: o domínio das verdades científicas e o domínio das crenças, ou das “meias verdades” postuladas pelo clero. A disciplina da mente estabelecida na Bhagavad Gītā há mais de dois mil anos trata desta mesma dicotomia e contempla uma solução que elimina esta falsa dicotomia criada no ocidente. Como veremos a seguir, a separação traumática e artificial entre as esferas do sagrado e da ciência, pode ser alcançada por meio da compreensão do sentido profundo de śraddhā na Bhagavad Gītā.
O texto da Bhagavad Gītā vale-se de Arjuna para mostrar como a śraddhā nasce daquela certeza sensível e fé em si mesmo que, na filosofia ocidental, é expressa pelo cogito cartesiano – a certeza indubitável. O termo “śraddhā” ocorre vinte e uma vezes ao longo da Bhagavad Gītā, oito vezes no capítulo dezessete, onde śraddhā aparece como a propriedade constitutiva e definidora dos seres e, em sua modalidade sáttvica, como a condição sine qua non do critério universal de verdade. As ocorrências de śraddhā são as seguintes:
Para a Bhagavad Gītā, o motivo propulsor (prayojana) da busca da verdade é o desejo sincero para alcançá-la e aceitá-la, mesmo quando ela contraria todas as nossas crenças e expectativas anteriores. O enfrentamento sincero das dúvidas nos aproxima da verdade. Promove o desenvolvimento de śraddhā, que se inicia como uma inclinação forte, fruto da harmonia entre a razão (mente) e o coração (intuição), que, invariavelmente, nos conduz aos estados de confiança e certeza interior.
A primeira ocorrência do termo śraddhā aparece em BhG 3.31, relacionada ao processo de aprimoramento da ação. A ênfase é na ação, conforme o sentido presente no adjetivo shraddhāvant, que denota as pessoas possuidoras de śraddhā. Deste modo, Krishna indica a relação de śraddhā com a determinação de atender à Vontade Suprema, o Espírito (Ātman). As ocorrências de śraddhā no capítulo quatro mostram a importância de se manter os órgãos dos sentidos sob controle (samyatendriyah). Krishna espera conseguir que Arjuna alcance o funcionamento ātman-para. O melhor treino é procurar sempre reagir aos estímulos do mundo exterior com os sentidos controlados, para que a luz do Espírito possa se manifestar (BhG 4.39). De outro modo, o resultado é o estado de confusão, que leva à destruição (BhG 4.40). A premissa implícita neste capítulo (BhG 4.1-9) é a validade do princípio de lokasamgraha, ou princípio do bem estar e equilíbrio universal, definido anteriormente (BhG 3.20 e BhG 3.25) e que garante a coerência do processo do mundo. De acordo com BhG 4.39-40, śraddhā surge como resultado de se colocar o ego (ahamkāra) sob a jurisdição e controle do Espírito (Ātman). Isto fica ainda mais claro nos versos BhG 6.37 e BhG 9.3, onde śraddhā representa uma espécie de ascetismo sereno da mente. Śraddhā conduz à verdade porque nos liberta dos véus de ilusão (BhG 7.22) que nos envolvem desde o nascimento (BhG 7.27-9). As ocorrências do termo śraddhā no capítulo dezessete deixam evidente que śraddhā não pode ser traduzida como a mera fé religiosa. Traduzir a ocorrência de śraddhā em BhG 17.1 por fé geraria uma contradição, uma vez que é impossível conciliar a fé com a negligência em relação às Escrituras. Śraddhā não se define como “fé nas Escrituras”, ou seja, não representa algo imposto de fora. Pelo contrário, as ocorrências de BhG 17.2-3 mostram que śraddhā define a natureza essencial de cada um. E é por isto que a medida de śraddhā representa o critério para a execução de qualquer atividade, conforme sugerem as demais ocorrências deste capítulo: qualquer coisa feita com śraddhā tem uma parcela de verdade, mas se feita sem śraddhā torna-se nula. Desse modo, a última ocorrência de śraddhā na Bhagavad Gītā (BhG 18.71) apenas confirma o que vimos: śraddhā é a condição sine qua non para se alcançar a verdade.
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