2021-07-06

A essência do Mahābhārata e da Bhagavad Gītā em 108 proposições

Mahābhārata1 estabelece a filosofia do coração em torno de quatro Puruṣārthas, ou poderes do coração, explicitados no próprio corpo do texto (MBh 1.2.83). No episódio da Bhagavad Gītā Arjuna mostra-se, inicialmente confuso, sem ânimo, motivação e coragem (śraddhā). Ele não sabe como resolver o seu dilema, elucidado por Krishna ao longo do texto. Krishna argumenta que, em cada instante, somos constituídos em conformidade com a nossa śraddhā (o sentimento sintrópico, a certeza interior e o altruísmo biológico, frutos do amor em ação), a bússola que orienta o desenvolvimento da nossa capacidade sintrópica de convergir, agindo com conhecimento e amor, para o coração. Como se dá este processo? Esta questão, introduzida no vídeo abaixo, está respondida nas 108 proposições discutidas a seguir. Dramatizada ao longo de todo o Mahābhārata, e conceituada no diálogo da Bhagavad Gītā, a Filosofia do Coração funda-se na escuta amorosa do sentimento sintrópico que expressa o nosso altruísmo biológico, ou  śraddhā. Este revela-se a partir do esforço de harmonizar as vias, contrárias e mutuamente excludentes, da ação e do conhecimento (jñānakarmasamuccaya-vāda). 


I. Uma breve apresentação do Mahābhārata

I.1. Itihāsa: A epopeia indiana

01. O que é a epopeia indiana? Os Itihāsas indianos são compostos, fundamentalmente, pelo Rāmāyaṇa (24.000 versos duplos) e pelo Mahābhārata (100.000 versos duplos). O que os distingue? Diferentemente do Rāmāyaṇa, um texto devocional do hinduísmo, o Mahābhārata é filosófico e coloca em xeque o entendimento dogmático do varṇāśrama-dharma (sistema moral fundado no sistema de castas). Propõe, em seu lugar, o Krishna-dharma, que é revelado e discutido na Bhagavad Gītā.

02. A marca característica dos Itihāsas (iti-ha-āsa: literalmente, "assim, de fato, se deu") é o fato destas narrativas de caráter histórico mitológico representarem relatos testemunhados diretamente pelo autor, presente na trama como personagem. Itihāsa representa um estilo de narrativa em versos, semelhante, em certo sentido, ao Os Lusíadas, de Camões. Neste grande poema épico (8.816 versos simples) sobre o povo Luso, Camões narra a viagem às Índias, por "mares nunca dantes navegados", dos argonautas portugueses liderados por Vasco da Gama, mesclando elementos de história, religião e mitologia. 

I.2. Quais são os principais tópicos do Mahābhārata? Qual o seu tema principal?
03. Qual o tema principal do Mahābhārata? O Mahābhārata pode ser compreendido como um grande jogo de xadrez político entre dois dos maiores estrategistas políticos da história da humanidade: Krishna, o príncipe negro que promove a revolução do altruísmo e movimenta as peças do lado dos virtuosos Pāṇḍavas; e Shakuni, o mestre da trapaça, que movimenta as peças com igual maestria do lado dos Kauravas. No capítulo do Mahābhārata intitulado Bhagavad Gītā, Krishna transmite a Arjuna a arte e a ciência da meditação, bem como a estratégia e a tática da arte psicopolítica de fundo altruísta, representada pela precedência dos anseios superiores (Śreyas) do sagrado coração sobre aqueles de natureza passional e inferior (Preyas) da mente emocional. 

04. Krishna atua no Mahābhārata como um embaixador da paz, sem tomar parte na batalha, mesmo após ter utilizado as quatro vias sugeridas pela tática diplomática, presentes no Código de Manu: conciliação (śāman), persuasão (bheda), oferecimento de compensações (dāna) e ameaça de punição (daṇḍa). 

05. O Mahābhārata apresenta o contexto geral do varṇāśrama-dharma (estruturação social fundada no sistema de castas), aponta as contradições destes costumes e inicia, na Bhagavad Gītā, uma reflexão crítica que inaugura uma filosofia moral fundada nos valores do coração, onde se oculta a essência (śuddha) do sagrado (dharma). 

06. Quatro grandes capítulos, incluindo-se aí o próprio Bhīṣma-parva (capítulo sobre Bhīṣma) onde a Bhagavad Gītā está inserida, se centram, respectivamente, nas mortes ritualísticas dos generais de guerra Bhīṣma, Droṇa, Karṇa e Śalya. Após o episódio da Bhagavad Gītā e com o fim da guerra, a questão prática da paz será objeto de estudo do décimo segundo capítulo, "O Livro da Paz". Se antes Bhisma não dera ouvidos a Krishna, agora, ferido num leito de flechas, ele apresenta uma interessante reflexão, em sintonia com a mensagem de Krishna, sobre a conduta ética do regente, as leis do Estado e a disciplina para a salvação espiritual. A reflexão de Bhisma continua no capítulo seguinte, "O Livro das Instruções", que trata da arte política de governar com justiça. 

07. No capítulo 14, chamado "Anu-Gītā" (literalmente, "Depois da Gītā"), o próprio Krishna repassa os seus ensinamentos ao longo do Mahābhārata. Explica também à Arjuna a impossibilidade de reconstituir, em sua plenitude, os ensinamentos da Bhagavad Gītā, possíveis de serem revelados, unicamente, naquelas circunstâncias sublimes de renúncia e entrega em que Arjuna se encontrava, no limiar da grande batalha.

08. As dezoito seções do Mahābhārata apresentam um tratamento enciclopédico acerca do conhecimento humano, a partir, unicamente, da interação da natureza imperfeita e finita dos seres vivos com a natureza sagrada, perfeita e infinita, que envolve todo o universo. Considerado a quintessência dos Vedas, ou o quinto Veda, o Mahābhārata desenvolve-se em torno de quatro propósitos humanos, ou eixos principais de reflexão, conhecidos como Puruṣārthas (MBh 1.2.83):
  1. Dharma, que representa o princípio universal de sustentação do universo e o sentimento de sagrado, que nos faz aspirar pela proteção de todas as formas de vida e preservação de seu ambiente;
  2. Artha, que representa a arte de governar a si mesmo e de relacionar-se em grupo e, também, a capacidade de prosperar até se alcançar o poder de ser livre;
  3. Kāma, que expressa a satisfação do desejo que promove o sentimento de felicidade;
  4. Mokṣa, a capacidade de compreensão plena da ciência do sagrado e do profano, que nos liberta de todas as amarras do mundo (Yoga-Brahma-Vidyā).
09. Em conjunto, a realização desses quatro propósitos humanos representa a via para a realização divina, a Brahma-Prāpti, ou como preferem chamar alguns, a “salvação”. E por isto se diz que eles compõem a essência mais pura (śuddha) e eterna (sanātana) do dharma. A seção do Mahābhārata conhecida como Bhagavad Gītā enfatiza que devemos transcender tudo aquilo que impeça a manifestação em nosso ser dos Puruṣārthas. A Bhagavad Gītā introduz o entendimento de "Brahma-Prāpti" como este puruṣārtha que harmoniza e sintetiza os demais.

I.3. A Atualidade do Mahābhārata

10. Os exemplos de valores às avessas do Mahābhārata, onde muitos papéis se invertem (Arjuna se traveste de mulher; os Pāṇḍavas vão para a floresta, mas depois retornam para a vida da cidade etc.), deslocam a vida do seu curso habitual, alterando as normas e o que é geralmente aceito.

11. A princesa Draupadī surge do fogo! Não conheceu a infância, nem se recorda de sua origem divina. Assim como o príncipe Arjuna, seu primeiro esposo, ela também encontra em Krishna um sacerdote e mentor espiritual. No desenrolar da trama do Mahābhārata as circunstâncias da vida de Draupadī a obrigam a escolher entre realizar o ato imoral de se casar com cinco irmãos, ou permitir que todos eles sejam exilados e o reino fique entregue aos corruptos e usurpadores membros do clã dos Kauravas. 

12. Draupadī está angustiada e, enquanto reflete sobre o melhor caminho a seguir, ouve de Krishna que o seu casamento com os cinco irmãos, embora contrarie os costumes, as convenções sociais e morais (varṇāśrama-dharma), adéqua-se à essência mais pura (śuddha) do sagrado (dharma). O seu casamento apenas contraria os interesses dos representantes de uma tradição decadente, incapaz de reconhecer os cinco pilares onde se assenta o eterno dharma: jñāna (conhecimento), dhairya (compostura e paciência), prema (amor e consideração), samarpaṇa (dedicação) e nyaya (justiça). 

13. A Crítica e a Superação da Tradição e do Entendimento do Sistema de Castas:
  • Karṇa – é primogênito da família real, mas desconhece a sua identidade;
  • Bhārata – escolhe como seu sucessor, não um dos filhos, mas um cidadão comum.
  • Krishna – é um príncipe que constitui família; não é um líder religioso (Espiritualidade x Religião)
I.4. A Bhagavad Gītā e a Anu-Gītā

14. O que é a Anu-Gītā? Ela corresponde aos capítulos 16 a 51 do Livro 14, o Aśvamedha-parvan (Sacrifício do Cavalo), e constitui o diálogo entre Krishna e Arjuna posterior (anu) ao episódio da Bhagavad Gītā. A Bhagavad Gītā é parte do sexto capítulo do épico Mahābhārata, intitulada Bhīṣma Parvan, ou seção relativa ao grande sábio Bhīṣma. 

15. A Anu-Gītā representa uma verdadeira defesa da legitimidade e consistência da mensagem da Bhagavad Gītā, bem como do sentido espiritualista de superação do todo o sectarismo religioso, estruturado de forma rígida e normativa. 

16. Na Anu-Gītā, Arjuna afirma que não consegue se lembrar da maioria dos ensinamentos da Bhagavad Gītā e pede a Krishna que os repita uma vez mais. Krishna o repreende por não ter preservado a memória dos sagrados princípios da espiritualidade pura (ātma-dharma) que lhe haviam sido revelados (MBh 14.16.10). 

17. Afirma que Arjuna encontra-se então em outro estado mental, desprovido da śraddhā necessária para assimilar a essência do ātma-dharma. Krishna recorre a estórias da religiosidade popular para referir-se, agora apenas de forma indireta, aos ensinamentos universalistas da Bhagavad Gītā

18. A Anu-Gītā deixa claro, portanto, que a Bhagavad Gītā descreve uma situação única, impossível de ser cem por cento repetida na realidade e, consequentemente, de ser subsumida por qualquer sistema religioso. Daí, inclusive, o caráter assistemático dos seus ensinamentos espiritualistas, transmitidos sob a forma livre e poética dos versos.

II. Uma breve apresentação da Bhagavad Gītā

II.1. Qual o tema principal da Bhagavad Gītā?
Como a Gītā trata do Yoga e da arte e da ciência da meditação?

19. A Bhagavad Gītā representa a reportagem feita ao rei no palácio, em tempo real, dos fatos que estavam se passando no campo de batalha, instantes antes do início da batalha final do Mahābhārata. Sintetiza, em 700 versos, sob a forma de um pequeno diálogo de coração-a-coração (saṃvāda), toda a CIÊNCIA PRÁTICA sobre o Yoga e a meditação.

20. A Bhagavad Gītā pode ser compreendida como a mais perfeita representação da meditação (dhyāna; termo derivado das raízes verbais "dhī" – refletir – e "dhyai" – contemplar, imaginar) sobre o Ser e a relação dialética de identidade e de diferença com o não-Ser. O verso de abertura da Bhagavad Gītā já é parte da ambientação adequada para a devida revelação e materialização de toda a arte e ciência da meditação: 

BhG 1.1. Dhṛtarāṣṭra disse: Ó Sañjaya, reunidos e desejosos de lutar, o que fizeram os filhos de Pāṇḍu e os meus no campo dos Kurus, o campo do dharma?

Análise sintática (Anvaya) do verso de abertura :
dhṛtarāṣṭraḥ (Dhṛtarāṣṭra) uvāca (falou): he saṁjaya (Oh Saṁjaya!), dharma-kṣetre (no campo do dharma) kuru-kṣetre eva (precisamente no campo dos Kurus) samavetāḥ (reunidos) yuyutsavaḥ (e desejosos de lutar) māmakāḥ (os meus) pāṇḍavāḥ ca (e os filhos de Pāṇḍu) kim akurvata (o que eles fizeram?)

21. A oposição das expressões dharma-kṣetre (no campo do dharma) e kuru-kṣetre (no campo dos Kurus) expressa a relação universal entre as nossas experiências subjetiva e objetiva do mundo. É esta relação que será elaborada ao longo do texto e irá modular as práticas de meditação em três níveis distintos: objetivo, subjetivo e transcendente. 

22. O método implícito que a Bhagavad Gītā ensina é que toda e qualquer opinião ou crença religiosa é um ponto de partida para a busca da verdade. Para iniciar qualquer estudo, devemos pelo menos ter ouvido falar do assunto em questão. Ninguém pode voltar a sua atenção para aquilo sobre o que nada sabe. Na Bhagavad Gītā, Arjuna questiona Krishna porque já tem um conhecimento inicial. A visão inicial, o ponto de partida do conhecimento, varia de pessoa para pessoa, cada uma inicia a sua jornada com um ângulo de visão diferente.

23. O primeiro capítulo da Bhagavad Gītā descreve o estado de confusão mental e depressão de Arjuna, fruto da sua indecisão sobre a melhor forma de agir. Os demais capítulos mostram Krishna orientando Arjuna para que ele execute toda e qualquer atividade no mundo como uma forma de meditação – a meditação na ação.

24. Krishna convida Arjuna a vencer, inicialmente, os seus verdadeiros inimigos: as paixões inferiores. Krishna prescreve a Arjuna a renúncia (saṃnyāsa) ao funcionamento de base material e egoísta, regulado pela natureza inferior do ser (ahaṃkāra), e a gradual entrega (tyāga) ao funcionamento sintrópico, de base espiritual e altruísta, regulado pela sua natureza superior (Ātman).

BhG 18.66: Transcendendo todos os dogmas e crenças religiosas busca unicamente o Ser no Interior do coração. Este “Self” que reside no coração liberar-te-á de todo o mal. Não sucumbas oprimido pela tristeza!

25. Gandhi afirmava ter realizado tudo inspirado no ensinamento de Krishna na Bhagavad Gītā para seguir a voz deste “Self” que reside no coração. Contudo, é igualmente verdade que o assassino de Gandhi também dizia estar seguindo a voz do seu próprio coração. Como, portanto, senão pela meditação, discernir entre estas duas vozes dissonantes que, em princípio, parecem ter a mesma procedência? 

26. Segundo o Ṛgveda, a lei geral da necessidade, Ṛta (ordem cósmica, lei sintrópica, verdade), regula a operação do cosmos e de todas as coisas e é o seu entendimento que possibilita o avanço das ciências particulares. Os conceitos de dharma (lei, sagrado, espiritualidade) e karma (o princípio espiritual de causa e efeito que rege as ações), discutidos na Bhagavad Gītā, derivam de Ṛta, o axioma fundamental do conhecimento védico (Brahmavidyā). 

27. Direcionar a atenção para perceber Ṛta leva-nos a compreender e atender as necessidades reais de todos os seres. A sintonia com Ṛta conduz aos distintos “dheyas”, ou objetos de reflexão de cada ciência. E logo, o hábito de operar (karma) no mundo cultivando (bhāvana) esta sintonia, nos conduz aos estados contemplativos de meditação (dhyāna), culminando no êxtase da realização espiritual (Brahma-Prāpti).

28. A Bhagavad Gītā, em suma, representa uma síntese de toda a literatura sânscrita, constituindo-se como uma exposição assistemática e alegórica da arte e da ciência da meditação.

II.3. O que significa na prática “agir renunciando ao desejo pelos frutos da ação”?

29. Na Bhagavad Gītā tudo começa pela escuta do sagrado coração. O texto desenvolve-se entre a recusa inicial e o aceite final de Arjuna ao convite de Krishna para que ele renunciasse, tão somente, ao fruto das ações necessárias e jamais à ação ela mesma.

30. Devemos ter cuidado para não sermos enganados pela palavra “desejo”, pois é claro que este nunca pode ser totalmente erradicado de si mesmo. A ausência de desejo, ou niṣkāma, é o que se exige de nossas ações do ponto de vista do nosso interesse de lucrar com o resultado. Devemos agir em função do bem envolvido na ação em si, e não por qualquer motivo particular. 

31. Tilak afirma que a Gītā reconcilia “o ativismo da doutrina védica com o quietismo das Upaniṣades” por meio de niṣkāmakarma, a ação isenta de desejo, ou de interesse pessoal. Niṣkāmakarma representa a ação altruísta ou sem desejo, realizada sem qualquer expectativa de frutos ou resultados. Representa o engajamento na práxis em prol do bem-estar social, sem levar em conta os motivos pessoais. Cortamos, deste modo, a conexão com os frutos das ações.

32. Arjuna manifestara, no início do segundo capítulo da Bhagavad Gītā, seu desejo de abandonar a vida em sociedade e viver como um asceta (saṁnyāsin). Krishna esclarece que Yoga é maestria nas ações (yogah karmasu kauśalam), não se confundindo, portanto, com escapismo. O verdadeiro sentido de renúncia (saṁnyāsa) não contempla a omissão às ações necessárias (como entendia Arjuna), mas apenas o desapego em relação aos seus frutos.

33. A Bhagavad Gītā desenvolve a sua fenomenologia da consciência em torno do conceito de śraddhā, o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis, e de sua relação com três conceitos fundamentais: kārpaṇya doṣa, saṁnyāsa e tyāga.

34. Arjuna afirma em BhG 2.7: “Meu entendimento pessoal se desvia pelo corruptor apego pessoal ao fruto da ação, causado pela ignorância do supremo dharma”. Kārpaṇya doṣa designa a este comportamento faltoso (doṣa) devido ao apego, à fraqueza interior (kārpaṇya), que afeta o ser como um todo. 

35. Kārpaṇya doṣa representa o elemento viciante no motivo para a execução ou abstenção de qualquer ação. Cair vítima deste doṣa (falta, erro, mal, transgressão, doença, vício, engano) é tornar-se presa da infelicidade e de toda a sorte de misérias.

36. O segundo conceito fundamental para se compreender a fenomenologia da consciência da Bhagavad Gītā é saṁnyāsa. Krishna atualiza, ao longo do texto, o seu antigo significado védico, redefinindo saṁnyāsa como a renúncia, não à ação, quando esta é necessária e legítima, mas aos seus frutos, ou resultados. 

37. Trata-se de um conceito que, embora associado às nossas motivações interiores, é voltado para a realidade externa, para o plano da multiplicidade e a nossa interação com ele. Para acessar o coração basta ter coragem para ser impessoal, o que significa ter coragem para renunciar a si mesmo. E isto se alcança renunciando ao fruto de nossas ações. 

38. O terceiro conceito, tyāga, relaciona-se diretamente com o nosso estado mental, com os nossos sentimentos e as nossas emoções. O nosso regozijo tem que ser, unicamente, por termos nos tornado instrumentos para a manifestação da vontade de Deus, pois quando alcançamos perfeição nas obras, o autor é Deus.

39. O sentido de tyāga fica claro no capítulo final do texto, no paradigmático verso BhG 18.66, visto mais acima, onde Krishna pede a Arjuna que abandone o seu entendimento das normas que regulam a vida social e se entregue, unicamente, à direção da consciência universal, presente no coração de todos os seres e que dirige todo o cosmos. 

40. Esta forma de consagração de si mesmo, ou tyāga, dá-se pelo modo conforme nos relacionamos com as ações. Tyāga simboliza a renúncia ao fruto da ação legítima e necessária, bem como a ausência de desejo pela execução da ação com motivação pessoal. Tyāga está totalmente voltada para a consciência interior.

41. Tyāga representa uma disposição da mente e uma forma de disciplina interior com relação às emoções e comportamentos que alcança toda a esfera de ações, fazendo de nós um instrumento e canal da consciência universal. A partir desse momento, já não somos nós que agimos, senão que esta consciência que age por meio de nós. Esse é o grande tema da Bhagavad Gītā.

42. Este é o sentido de dedicar o fruto de nossas ações ao Supremo, conforme ensina a Bhagavad Gītā. Devemos agir com vistas a revelar a presença de Deus. Acima de qualquer coisa, o mais importante é que nos transformemos numa obra de Deus. 

43. Há uma frase atribuída a Francisco de Assis que diz assim: o homem não se salva pelas suas obras ainda que elas sejam boas; o homem só se salva quando ele próprio se transforma em uma obra de Deus.

II.4. Qual é a novidade no ensinamento da Gītā?

44. A Bhagavad Gītā é a Escritura Sagrada que mais tem sido objeto de admiração e de espanto. O texto discute como podemos conciliar, em nome do bem-estar universal (loka-saṁgraha), o nosso engajamento no mundo (saṁsāra) com o ideal de alcançar a transcendência (nirvāṇa).

45. Krishna revela a Arjuna na Bhagavad Gītā o ancestral Yoga, síntese dos demais, chamados, conjuntamente, de yoga-garbhatva, ou seja, yogas em fase de gestação. Diferentemente destes que representavam apenas sistemas acessórios (upacāra), o puro Krishna Yoga tem como marca característica o exercício da liberdade. 

46. Esta liberdade, característica do Krishna Yoga, contraria a disciplina rígida e inflexível dos sistemas que postulavam a sujeição absoluta a um guru, segundo um código de etiqueta que regulava como cada um deveria se comportar. Em muitos casos, os iogues de tais sistemas submetiam-se a várias torturas e sacrifícios inúteis, permanecendo totalmente incapazes de apreciar a ampla liberdade que caracteriza o puro e autêntico Yoga.

47. O que é novo na Bhagavad Gītā? Segundo a maioria dos estudiosos, quatro pontos: Primeiro, a tensão entre o deus pessoal x princípio impessoal. O texto busca encontrar o equilíbrio do deus pessoal e da realidade impessoal. Segundo, a internalização do ritual e a reinterpretação das ações que se constituem como dever. Terceiro, a agenda multicultural. O multiculturalismo que vemos hoje está retratado na Bhagavad Gītā, que concilia o ascetismo em busca de mokṣa (salvação) com o dharma (doutrina religiosa e os seus deveres sociais) dos mais variados grupos.

48. Por fim, o quarto ponto novo na Bhagavad Gītā (cap. 4) é a referência, pela primeira vez na literatura, à teoria dos Avatāras: Krishna se apresenta como a divindade que desce em forma humana para mostrar o amor sendo vivido em termos práticos para proteger o bem. Tem um propósito que é pessoal e universal. Deus é criador, mantenedor e destruidor dos mundos. Tudo é parte de Deus. E nós temos um papel aí.

49. Para muitos, em suma, a Bhagavad Gītā representa a vitória da religiosidade popular, por meio da devoção (bhakti).

50. E o que eu, particularmente, vejo como novidade na Bhagavad Gītā? O entendimento do texto como uma representação alegórica e simbiótica sobre a arte e a ciência da meditação.

51. Apesar da extensa literatura disponível sobre o tema da meditação, quase nada existe sobre esta abordagem. Quase nada existe sobre o caráter universalista, não sectário e não dogmático desta alegoria que revela a meditação como uma prática que não pertence, exclusivamente, a nenhuma denominação religiosa em particular.

52. A novidade e originalidade do argumento da Bhagavad Gītā está no fato de que o texto representa a alegoria mais perfeita e bem-acabada da arte e da ciência da meditação. 

53. O texto descreve o movimento da consciência de Arjuna nos campos de atuação objetivo (kuru-kṣetra) e subjetivo (dharma-kṣetra) da vida. 

54. No campo objetivo da ação concreta (kuru-kṣetra), Arjuna busca o conselho e a unificação com Krishna, que representa o observador (Dṛg), a testemunha (Sākṣī) do Espírito Supremo (Ātman), que não toma parte nas lutas efêmeras do mundo das aparências (saṃsāra). 

55. No campo subjetivo do diálogo da consciência de Arjuna (dharma-kṣetra), ele se torna tanto o observador (Dṛg) de si mesmo observando o mundo, como o próprio objeto observado (Dṛśya). E é a isto, que se denomina como Meditação, conforme argumenta o pequeno texto medieval Dṛg-Dṛśya-Viveka, atribuído por alguns a Śaṅkarācārya, onde se lê:

56. Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então o Espírito, a Testemunha (Sākṣī), se revela o verdadeiro observador.

57. O diálogo de Krishna e Arjuna, em suma, pode ser compreendido como uma representação da metáfora dos dois pássaros, que inaugura a arte e a ciência da meditação, relacionando a Pessoa Humana e o Espírito Universal que a anima do seguinte modo: “Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser. Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.” (Ṛgveda 1.164.20; Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1; e o oitavo verso da Māntrika Upaniṣad).  

58. Está aí o segredo da Meditação. A Bhagavad Gītā constitui-se como um resgate da história da arte e da ciência da meditação. 

59. Símbolos e alegorias constituem uma parte essencial da disciplina da mente da Bhagavad Gītā. A Bhagavad Gītā, não se deve esquecer, é reconhecida como uma alegoria poética da luta interior que se passa no ser humano. 

II.5. O dilema de Arjuna e os três argumentos de Krishna, ou
Como a Bhagavad Gītā busca realizar a síntese multiculturalista
entre as distintas doutrinas?

60. Se a narrativa maior do Mahābhārata apreende o campo do concreto, simbolizado no campo de batalha (Kuru-kṣetra) dos descendentes de Kuru, a Bhagavad Gītā, logo em seu verso de abertura, representa esse campo como o próprio cenário do sagrado (Dharma-kṣetra), ou seja, como o espaço da consciência universal, presente no coração de cada indivíduo, onde a ação é refletida, tornando-se substância para a filosofia moral.

61. A essência do Sanātana Dharma é o tema principal tanto do Mahābhārata como da Bhagavad Gītā. Esta essência tem um conteúdo descritivo e outro prescritivo – dharma ksetre kuruksetre: como estar no mundo sem ser do mundo? Como renunciar sem deixar de cumprir o seu dever? Este o dilema de Arjuna: tornar-se Yogi ou um bom político?

62. O dharma dos representantes da classe político-militar (kṣatriyas) é a proteção da nação. É assim que as coisas deveriam ser. Este é o aspecto descritivo do dharma. Em seu sentido prescritivo, o dharma envolve uma reflexão crítica adequada às circunstâncias de tempo e lugar: como eu devo agir, especificamente, nesta dada situação?

63. A tensão entre esses dois aspectos do dharma, o prescritivo e o descritivo, definem o dilema de Arjuna na Bhagavad Gītā. Esta mesma tensão irá, no século XX, definir a práxis de Gandhi, que procura se adequar à essência mais sagrada do sanātana dharma a partir daquilo que ele é e do contexto em que está inserido.

64. A Bhagavad Gītā não se identifica exclusivamente com nenhuma comunidade religiosa do hinduísmo. Combina três argumentos distintos para convencer a Arjuna a sair do seu estado de paralisia: o primeiro ligado à via do asceticismo, o segundo à via da ação e o terceiro à via da devoção.

65. Primeiro argumento (jñāna): o que vemos como constituindo o mundo é a superfície. O Ātman é a verdadeira realidade. Quando agimos, agimos apenas na superfície. Quando compreendemos o Ātman, compreendemos a dualidade da vida e a realidade que nunca muda.

66. Segundo argumento (karma): Cumprir o seu dever, conforme o que você é neste mundo. Você harmoniza a disciplina do renunciante com aquela do guerreiro. A opção não é seguir o exemplo de Buda, mas renunciar ao desejo pelo fruto da ação.

67. Terceiro argumento (bhakti): Krishna se revela como a divindade, daí bhakti. Devoção pessoal a uma divindade pessoal. Daí o hinduísmo popular e devocional. Esse é o entendimento clássico. 

68. Se a crise de Arjuna tem uma base ética (o que é o certo?) e psicológica (a dor envolvida a ação que ele tem que realizar), a solução surge da práxis da filosofia do coração, que envolve vairagya (desapaixonamento), uma conduta moral (karma yoga), orientada pelo conhecimento (jñāna yoga) e pela devoção (bhakti yoga). 

69. A Bhagavad Gītā é multicultural numa época em que nem se sabia o que era isto. Têm influências da tradição védica, e das crenças heterodoxas etc. A Bhagavad Gītā concilia todas as divindades. Surge num contexto em que coexistiam Vedānta, Yoga, Jainismo, Sāṁkhya, Budismo etc. e procura harmonizar os modos de vida ascéticos que conduzem a mokṣa, com aqueles da vida em sociedade. 

70. A Bhagavad Gītā modifica o sentido vigente de Yoga como a busca da unidade por meio de yajñas. Yoga torna-se disciplina mental, como no sentido budista. Yoga não é simplesmente algo que você faz com o seu corpo, mas é algo que acontece dentro, tal como se dá com Krishna, que age no mundo, criando-o, etc. e ainda assim mantendo a sua natureza essencial intocável.

II. 6. Qual a relevância de bhakti no contexto da Bhagavad Gītā?

71. Tem uma passagem no Rāmāyana, em que Rāma, com um olhar arteiro, pergunta à Hanuman: "Você é um homem ou um macaco?" Com as mãos unidas e cheio de reverência, Hanuman respondeu: "Senhor, quando eu não sei quem sou, eu me devoto a Ti. Quando eu sei quem sou, eu e você somos Um.”

72. Então, quero discutir a relevância relativa de bhakti a partir de uma reflexão sobre esses dois estados do Ser, ou seja, “quando não sei quem sou” e “quando sei quem sou”. Para considerar a primeira, pensemos nesses pares: bhakti no hinduísmo e a devoção no cristianismo: Jesus/Bíblia x Krishna/Gītā

73. A Índia não tinha o par Credo/Fundador até reagir à dominação do ocidente e escolher o par Gītā/Krishna para representar a unidade do hinduísmo.

74. A ênfase de bhakti vai para a “pessoa” que representa o divino, o sagrado, antes que para os princípios que esta representa. E a prática que decorre desta ênfase é a que se verifica, por exemplo, entre os membros do movimento para a consciência de Krishna, os Hare Krishnas e outras classes de devotos.

75. Vamos considerar a abordagem que envolve a segunda parte da fala de Hanuman, “Quando eu sei quem sou, eu e você somos Um.” Quando a ênfase vai para os princípios, temos um outro tipo de devoção, que é aquela designada pelo termo śraddhā, que denota o ardor do coração, o fervor com que cultivamos a verdade e os princípios universais.

76. No Mahābhārata, na seção 23 do sexto capítulo, no momento que antecede o início da Bhagavad Gītā, Krishna pede a Arjuna que entoe o Hino a Durgā. “Dur-gā” nomeia aquele aspecto do sagrado feminino que nos auxilia a transpor (gā) as dificuldades (dur) aparentemente intransponíveis. Durgā se manifesta e abençoa Arjuna.

77. Durgā corresponde à deusa Śraddhā do Ṛg Veda (X, 151). É neste aspecto que ela reside no coração de todos os seres, simbolizando o despertar do entendimento de que somos um com a divindade e que nos faz pensar: “é por Obra da Inteligência e do Poder de DEUS que caminho e é por Obra de sua Inteligência que sei aonde “EU” vou.

78. Em cada movimento que fazemos, portanto, podemos revelar este “Eu profundo”, que representa Deus em Ação. Yoga é a maestria sobre todas as ações (BG 2.50). Este é o verdadeiro ritual, buscar a realização perfeita, de forma ritualística de todas as ações.

79. Tomemos, como exemplo, a figura paradigmática de Mahatma Gandhi. Gandhi identifica a sua práxis política com a sua práxis espiritualista, conforme a proposta da Bhagavad Gītā

80. Ele faz de toda ação uma oportunidade de meditação, a meditação na ação, que nos torna instrumentos de Deus. Gandhi não sai cantando e dançando pelas ruas como o fazem os devotos.  Ele não lê a Bhagavad Gītā como um texto que pertence a qualquer denominação religiosa, mas o faz percebendo como a Bhagavad Gītā explica e harmoniza as demais Escrituras da tradição védica, que o leva a afirmar:

 “Religião é uma árvore com muitos galhos. Enquanto galhos, você pode dizer que as religiões são muitas; mas enquanto uma árvore, a religião é uma só.”

III. A atualidade da Filosofia do Coração

III.1. Duzentos anos de debates em torno da Bhagavad Gītā no ocidente:
as perspectivas romântica e transcendentalista

81. Até o oitavo século, não se discutia muito a Bhagavad Gītā. O texto somente se torna central com Shankara, que tenta reconciliar as visões da divindade pessoal e impessoal. A partir daí, surge uma tradição de comentadores da Bhagavad Gītā.

82. No ocidente, são pouco mais de duzentos anos de pesquisas e debates em torno da Bhagavad Gītā.

83. A Bhagavad Gītā é o primeiro texto sânscrito a ser traduzido para o inglês (1785). Esta tradução, de Charles Wilkins, é bastante acurada. Foi um sucesso imediato entre os intelectuais europeus e provocou uma série de novas traduções, em alemão, francês etc.

84. A Bhagavad Gītā logo chega aos EUA tornando-se um importante texto para o transcendentalismo americano de Emerson e Thoreau. A partir do século XIX começam também as reinterpretações da Bhagavad Gītā, que aproximam o texto do cristianismo. A tradução de Juan Mascaro, por exemplo, é um sucesso em função da sua leitura ser influenciada pela sua ligação com a Bíblia de King James.

85. Já os românticos se valem da possibilidade de leitura da Bhagavad Gītā conforme a epistemologia monista, que lhes permite romper com a visão de mundo dualista do monoteísmo ocidental.

86. Ainda assim, em função das críticas de Hegel (1770-1831) à Bhagavad Gītā perdeu-se a possibilidade de se resgatar a ponte romântica que pretendia uma aproximação mais natural com a sabedoria do oriente. O entendimento “romântico” da Bhagavad Gītā aparece, por exemplo, nos trabalhos de Tilak (1971), Gandhi (1930) e Aurobindo (1950), considerados os principais representantes do pensamento da Índia do século XX.

87. Como a Bhagavad Gītā foi recebida por Emerson, T. S. Eliot, Wilhelm von Humboldt, Henry David Thoreau, Aldous Huxley, Herman Hesse, Albert Einstein, etc.?

88. A Bhagavad Gītā é o mais belo e, provavelmente, o único poema verdadeiramente filosófico existente em qualquer língua conhecida... é talvez a suprema e mais profunda obra desse mundo. (Wilhelm von Humboldt)

89. Pela manhã eu banho o meu intelecto na estupenda filosofia da Bhagavad Gītā, a qual faz o mundo moderno e a sua literatura parecerem insignificantes. (Henry David Thoreau)

90. [A Bhagavad Gītā] é uma das mais claras e compreensivas exposições já realizadas da filosofia perene. Essa fonte de inesgotável valor, portanto, pertence, não apenas à Índia, mas a toda a humanidade. (Aldous Huxley)

91. [A Bhagavad Gītā] É sublime como a noite e de tirar o fôlego como o oceano. Contém todos os sentimentos religiosos, todos os grandes sistemas de ética que influenciaram as pessoas nobres e de mente poética. (Ralph Waldo Emerson)

92. Verdadeiramente, o esplendor da Bhagavad Gītā está na beleza da sua revelação dessa sabedoria de vida capaz de fazer a filosofia florescer no âmbito da religião. (Herman Hesse)

93. A condição para se compreender plenamente uma obra tão sublime como a Bhagavad Gītā é o estabelecimento de uma sintonia fina do nosso espírito com o texto. (Rudolph Steiner)

94. Quando eu leio a Bhagavad Gītā e reflito sobre como Deus criou este universo tudo o mais parece supérfluo. (Albert Einstein)

95. Ralph Waldo Emerson que exprime com maestria esse sentido de superação da tradição que o texto da Bhagavad Gītā apresenta. Ele diz: "Todo o homem que encontro me é superior em alguma coisa. E, nesse particular, aprendo com ele."

96. São de Emerson também os seguintes aforismos, inspirados no milenar texto da Bhagavad Gītā:
• "As religiões que chamamos de falsas já foram verdadeiras um dia".
• "Deus constrói o seu templo no nosso coração sobre as ruínas das igrejas e das religiões."
• "Não siga por onde os caminhos nos conduzem; caminhe por onde ainda não há caminhos, deixando assim uma nova trilha."
• "Crê em ti mesmo; o coração vibra sempre ao som desta corda."
• "Confiança em si é o primeiro segredo do sucesso."
• "Sem entusiasmo nunca se realizou nada de grandioso."
• "O que fica atrás de nós e o que jaz à nossa frente tem muito pouca importância, comparado com o que há dentro de nós."
• "O pensamento é a semente da atividade."
• "Toda a revolução foi primeiro uma ideia na mente de uma pessoa."

97. Beethoven (1770 – 1827) também era fã da Bhagavad Gītā e escreveu em seu diário passagens da Bhagavad Gītā, associadas ao domínio das paixões e ao desapego ao fruto das ações.

98. O poema Four Quartets de T. S. Eliot tem a influência da Bhagavad Gītā. Mais recentemente a Bhagavad Gītā alcançou o universo corporativo e a sua filosofia é utilizada na elaboração das estratégias de gestão.

III.2. Em que sentido pode-se dizer que a Bhagavad Gītā está associada com a contracultura?

99. As práticas de meditação e o yoga chegaram ao ocidente de forma significativa no início dos anos sessenta, sob o estigma do rótulo de "contracultura" – termo então utilizado para designar as manifestações inimigas da cultura dominante, nos planos da política, do comportamento, da moral, da expressão artística, da filosofia e da religião.

100. Com o lema de "Paz e Amor", formaram-se as primeiras comunidades de praticantes de meditação. Representavam o Poder da Flor (Flower Power) contra o poder das armas. Durante as manifestações, não reagiam à repressão policial, a não ser colocando flores nos canos das armas dos soldados.

101. Cabe destacar, por fim, o sentido de "cultura" já presente na própria definição de meditação oferecida pelo Senhor Buda. Ele fez uso dos conceitos de "bhāvana" (adjetivo) e "bhāvanā" (substantivo feminino) para explicar como "cultivar" a meditação. 

102. Empregados originalmente no campo da agricultura, para designar o cultivo da terra, ambos os termos (bhāvana e bhāvanā)  passaram a indicar a ideia de desenvolvimento mental e contemplação.

III. 3. Como a Bhagavad Gītā influenciou líderes como Mahatma Gandhi?

“Uma vez que as guerras se iniciam na mente humana, é na mente que devemos construir os mecanismos de defesa da paz.” (UNESCO)

103. Mahatma Gandhi refere-se à Bhagavad Gītā como a mãe universal. Gandhi faz uma interpretação alegórica do texto, como um "upākhyāna". O sânscrito não tem uma palavra para "mito" e "upākhyāna é a que mais se aproxima.

104. Embora a batalha narrada no Mahābhārata se passe nas planícies de Kurukṣetra, uma localidade não muito distante de Nova Deli, a batalha real é a que se passa na mente de Arjuna, durante o episódio da Bhagavad Gītā, com todo o episódio do Mahābhārata servindo-lhe de estória metafórica, ou "upākhyāna".

105. O campo de batalha está dentro de nós. Daí a Marcha do Sal de 1930: Agarrando-se à verdade do sal (“Salt Satyāgraha”). Gandhi cunha a expressão “satyāgraha” para expressar, basicamente, este sentimento impessoal de amor à verdade.

106. Gandhi prega a não-cooperação fundada na desobediência civil (expressão cunhada por Thoreau). O seu pragmatismo unifica as vias de realização interior e exterior, materializando no mundo os valores do espírito – ahiṁsā (não-violência), svarāj (disciplinada autonomia do sujeito e fé em si mesmo), satyāgraha etc.

III.4. Como a Bhagavad Gītā serve de fundamento teórico para o Eco-dharma e, consequentemente, para o despertar da contemporânea consciência socioambiental?

107. Em "O Ponto de Mutação" (1980), Capra dá forma a uma "visão sistêmica da vida", baseado nas ideias de Arne Naess, criador da "ecologia profunda", do valor intrínseco de todos os seres vivos. Este seu ponto de vista é enfatizado em AS CONEXÕES OCULTAS – The Hidden Connections (2002).

108. Em seu Ecology, Community and Lifestyle (Cambridge University Press, 1989), Naess vale-se dos versos BhG 2.48, 2.71, 3.19, 3.27, 3.30, 4.17-4.23. 5.7, 5.18, 5.24-5.25, 6.29-6.32 para construir a sua filosofia monista, que tem como princípio norteador o conceito de Ātman conforme definido no verso 29 do sexto capítulo da Bhagavad Gītā: Quem se harmoniza por meio do yoga percebe a presença de Ātman em todos os seres e de todos os seres em Ātman.

***

(1) Playlist com a serie completa do Mahābhārata (B. R. Chopra) que passou como novela na Índia, nos anos noventa e foi lançada no ocidente em 2002: https://www.youtube.com/playlist?list=PLa6CHPhFNfadNcnVZRXa6csHL5sFdkwmV

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: A Jornada do saṃsāra ao nirvāṇa em quarenta movimentos

Rio de Janeiro, 06 de julho de 2021.
(Atualizado em 01.09.23)

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