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Dois exemplos de "pombinhos" unidos pelos laços do matrimônio |
Quando o foco se torna amor,
a hipnose se transfigura em escuta.
Este artigo propõe uma reflexão sobre o foco espiritual a partir da metáfora do casamento: o foco técnico, entendido como uma união por interesse, e o foco absoluto, concebido como um matrimônio do coração. Passamos do casamento por interesse — realizado a partir da mente egóica e calculista — ao casamento por amor, que nasce do coração. Quando o foco se transforma em amor, a hipnose deixa de ser mera sugestão para se transfigurar em escuta verdadeira. Navegamos, assim, pelo delicado fio entre a sugestão que cega e a escuta que liberta, explorando referências que vão de Moreira da Silva à Bhagavad Gītā, de The Corporation (2003) ao What the Bleep Do We Know!? (2004). A auto-hipnose, quando alicerçada em śraddhā — o fervor lúcido que atua como bússola do foco absoluto, guiando a mente ao coração e à verdade — pode deixar de ser repetição mecânica para tornar-se uma invocação profunda.
I. O Foco como Ato de Amor
Foco é mais do que concentração. Foco é enlace, sintonia, casamento. É o instante em que sujeito e objeto deixam de lutar e se entregam a um só ritmo — como dois pássaros que, antes inquietos, pousam no mesmo galho e respiram em silêncio. Na tradição do yoga, esse gesto é chamado de dhāraṇā, e se realiza quando a atenção já não depende de esforço. O arco está retesado, o olho vê através do invisível, e apenas um coração, como o de Arjuna, pode dizer: “vejo apenas os olhos do pássaro”. O foco verdadeiro não é tensão, mas entrega. É o casamento por amor — e não por interesse.
II. A Hipnose como Estágio Intermediário
Vivemos, em grande parte, sob hipnose. Não a hipnose clínica, mas uma forma mais sutil: a da sugestão contínua, da repetição vazia, da atenção raptada por forças que não compreendemos.
A auto-hipnose, nesse contexto, pode ser vista como o esforço de reconduzir o foco para dentro — como ensina a Bhagavad Gītā (2.58), comparando o sábio à tartaruga que recolhe seus membros ao menor sinal de perturbação. Essa imagem traduz o movimento de pratyāhāra, o recolhimento dos sentidos na direção do coração. Quando os olhos se voltam para dentro, a voz interior começa a emergir — e com ela um novo tipo de escuta: o saṃvāda, o diálogo sagrado entre eu e o outro de mim mesmo.
III. Mindfulness, Compromisso e Casamento por Interesse
O mindfulness, em sua versão ocidentalizada, representa um passo importante: é a técnica do foco sustentado. Mas ainda é técnica. Ainda é um casamento por interesse. O praticante busca reduzir o estresse, aumentar a produtividade, melhorar a saúde. Tudo legítimo, mas ainda calculado. Só quando o foco se converte em paixão lúcida — em amor incondicional pela experiência presente — ele floresce em heartfulness. A respiração deixa de ser um objeto de atenção para tornar-se uma expressão da arte e da ciência da meditação, conforme a metáfora dos dois pássaros do Ṛg Veda e do cisne Haṃsa das Upaniṣades. É nesse ponto que o mindfulness cede lugar ao mistério.
Há um tipo de foco que é como dois pombinhos atados por um dos pés: estão unidos, mas não conseguem voar. Esse é o casamento por interesse — a união forçada da mente com um objeto. Essa é a experiência de muito do que hoje se chama de mindfulness: um esforço técnico, funcional, disciplinado — mas ainda desconectado do coração. Foco sem śraddhā é foco sem leveza. E onde não há leveza, não há voo.
IV. A Ilusão da Sugestão e a Fé Cega
Quando a hipnose se torna coletiva, ela pode operar como uma religião de massas, um marketing da fé, um teatro da credulidade. É a hipnose dos cultos, dos slogans, da política do medo. Nessa forma degradada, a sugestão hipnótica já não conduz à interiorização, mas à alienação. A voz interior é substituída pela voz do malandro — aquele que promete milagres em troca de submissão. A espiritualidade se transforma em comércio, a fé vira mercadoria, e a alma, mera espectadora. Como dizia Moreira da Silva, “malandro é malandro, mané é mané” — e enquanto houver quem se deixe levar por narrativas persuasivas, promessas emocionais e manipulações simbólicas, haverá quem se aproveite dessa boa-fé. Nesse contexto, o “mané” representa aquele que, por confiança ou vulnerabilidade, se vincula a essas histórias, enquanto o “malandro” é quem se beneficia dessa dinâmica da fé.
V. Hipnose de Massa e Ilusão Corporativa
O documentário The Corporation escancara esse jogo. Nele, as grandes empresas são tratadas como pessoas jurídicas com perfil psicopático — indiferentes ao sofrimento que causam, contanto que mantenham o lucro. O marketing, nesse contexto, atua como um ilusionista sofisticado. Não empunha pêndulos, mas jingles, logotipos, influenciadores, storytelling. Ele nos hipnotiza com promessas de felicidade, liberdade e sucesso — tudo condicionado ao consumo. É uma forma de auto-hipnose induzida, na qual não mais precisamos de gurus ou templos: bastam um celular e uma timeline. E assim, como espectadores encantados, aplaudimos o espetáculo da nossa própria distração.
VI. A Superação pela Consciência Observadora
Do lado oposto dessa lógica, o filme What the Bleep Do We Know!? (2004) propõe uma virada: o observador modifica o observado. Na famosa cena da quadra de basquete, a protagonista se dá conta de que a realidade muda conforme o ponto de vista. A lição é clara: ver é participar. A consciência não apenas testemunha; ela colapsa possibilidades, ela cria. E quando isso é compreendido, a auto-hipnose se transfigura. Ela deixa de ser repetição e se torna invocação: um chamado à presença, ao aqui-agora que pulsa com infinitas probabilidades. A respiração torna-se âncora. O coração, radar. E o foco, um gesto de transfiguração da realidade.
VII. O Coração como Equação do Foco
O foco verdadeiro não se mede pelo tempo de atenção, mas pela energia que nasce do coração. Em linguagem sintrópica, poderíamos expressar essa ideia assim: Eficiência do Foco = śraddhā / śakti.
Aqui, śakti representa a energia cósmica universal — a Brahma śakti que criou e moldou o universo — enquanto śraddhā é a energia humana que irradia do coração quando nos permitimos respirar e viver em conexão com essa força. A eficiência do foco, portanto, é a medida de quanto da energia recebida (śakti) retornamos com integridade e conexão (śraddhā), refletindo nossa sintonia com a ordem cósmica.
Em termos práticos, essa eficiência expressa a relação entre a qualidade do trabalho produzido (karma) e a capacidade ideal de funcionamento de cada indivíduo (svadharma). A alta performance espiritual não é privilégio dos cérebros mais potentes, mas da capacidade de fazer render ao máximo aquilo que nos foi dado. Assim, um fusquinha operando a 100% é mais admirável que uma Ferrari a 50%. O que realmente nos comove é o esforço que se converte em graça.
VIII. O Mistério dos Saltos Quânticos
A mente de foco absoluto — de conexão com o coração — realiza o impossível: rompe a lógica linear e entra no domínio dos sentimentos de conexão do coração.
Como nos átomos, o coração que vibra intensamente pode saltar de um nível de energia a outro, ativando camadas do ser antes adormecidas. A śraddhā é a catalisadora desses saltos. Não é apenas o esforço que nos leva até lá, mas a qualidade do gesto. E é assim que o aparentemente “sem foco”, quando movido pela chama do coração, pode se tornar canal de conexão e foco, que conduz a epifanias, revelações e claridades que superam qualquer manual de técnicas. Essa conexão, em sânscrito, é chamada sambandha — a união viva entre dois princípios que se reconhecem em sua interdependência. Meditar é descobrir o sambandha entre o observador e o observado, entre a respiração e o mistério, entre a śraddhā e a śakti que sustentam o mundo. Essa tríade é a cartografia do foco: o que começa como atenção sensorial se transforma em meditação consciente e culmina na pura presença. O foco verdadeiro não é tensão, mas entrega. Não é dominação, é conexão. É o casamento por amor — e não por interesse.
IX. Foco como Conexão
Foco não é apenas concentração. Concentração pode ser esforço, mas foco — em seu sentido sintrópico — é ligação viva, relação vibrante: conexão. E é exatamente essa noção que o pequeno tratado Dṛg-Dṛśya-Viveka, atribuído a Śaṅkara, ilumina de forma lapidar:
Quando os olhos veem, eles estão conectados ao objeto. Quando a mente observa os olhos, ela se conecta com os dados sensoriais. Quando a consciência observa a mente, ela se conecta com a própria fonte da experiência.
Cada camada do foco corresponde a uma profundidade de conexão. Em termos do Śraddhā Yoga, poderíamos dizer que:
- A primeira conexão é entre o objeto e os sentidos (pratyakṣa).
- A segunda, entre os sentidos e a mente (manas–buddhi).
- A terceira, entre a mente e o sākṣin, o Coração Testemunha — e essa é a conexão libertadora, o coração do foco absoluto.
Conclusão
Foco é mais do que concentração. Foco é conexão, especie de auto-hipnose que, em sua plenitude, revela dois mundos que, ao se tocarem, deixam de ser dois. É o momento em que sujeito e objeto se reconhecem em uma vibração comum. Conectar é unir por dentro, não apenas mirar de fora.
SUMÁRIO GERAL
Rio de Janeiro, 28 de junho 2025.
(Atualizado em 29.06.2025)
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