2018-12-04

Ṛṣi-nyāsa: a perfeita alegria de ser, antes de fazer e dizer

Ṛṣi-nyāsa: primeiro ser; depois fazer; e só então, dizer
Arjuna
A Invocação e a internalização de uma divindade arquetípica é conhecida na literatura sagrada como Ṛṣi-nyāsa1O termo "Ṛṣi" costuma ser traduzido como "sábio, vidente, aquele que vê a verdade". "Nyāsa", em geral, significa "entrega, confiança, colocação, depósito". A compreensão completa de nyāsa vem por meio da experiência pessoal e da prática espiritual. "Ṛṣi-nyāsa" costuma ser traduzido como "a invocação de bençãos aos sábios", ou "a confiança nos sábios", de uma dada tradição espiritual de mestre para discípulo (Guruśiṣyaparamparā). Contudo, Ṛṣi-nyāsa significa mais do que um ato de reverência e reconhecimento da autoridade espiritual dos preceptores espirituais de uma dada tradição. Não se trata, simplesmente, de fazer invocações para entrar em contato com a sabedoria e as bençãos acumuladas ao longo das eras, ou de recitar mantras e  realizar rituais (yajñas). No contexto do Śuddha Yoga, conforme ensina a tradição (Paramparā) de aprendizagem (Praśiṣya) dos discípulos (Ṡiṣya) dos grandes mestres da hierarquia espiritual (Śiṣya-Praśiṣya-Ṛṣi-Paramparā), somente aqueles que se dedicam ao aprendizado de ver em todos os seres  um instrutor2 (guru) podem, de fato, experimentar, para além da realidade objetiva, de Ṛṣi-nyāsa.
 
Ṛṣi-nyāsa está paradigmaticamente representado pelo movimento da consciência de Arjuna de unificar-se à consciência de Krishna, enquanto expressão do Intangível, do Ātman. O diálogo da Bhagavad Gītā nasce como consequência e expressão de Ṛṣi-nyāsa, em função da firme resolução (Saṃkalpa) de Arjuna de não se afastar da via espiritual, que conduz à visão da unidade cósmica, conforme ilustra o episódio do Mahābhārata imediatamente anterior à  Bhagavad Gītā, onde Arjuna3 invoca (veja aqui) Durgā (Invencível), que simboliza a energia sintrópica universal (brahma-śakti). Ṛṣi-nyāsa nos torna aprendizes e instrumentos da vontade sintrópica universal, expressa pelos grandes mestres da hierarquia espiritual.

No Mahābhārata, há uma correspondência biunívoca entre os cinco pilares do dharma, simbolizados pelos cinco príncipes Pāṇḍavas, com os cinco fundamentos (Saṃkalpa, Ṛṣi-nyāsa, Viniyoga, Satya Tyāga e Upasthāna) da práxis sintrópica do Śuddha Yoga. Arjuna simboliza o prema (amor), pressuposto fundamental do processo de unificação com a consciência de Krishna (Ṛṣi-nyāsa). De igual modo, os seus irmãos representam os demais pilares:
  1. Yudhiṣṭhira, simboliza a dhairya (determinação, coragem, compostura e paciência), pressuposta em sua firme resolução de convergir para a essência do dharma (Saṃkalpa);
  2. Nakula, o grande astrólogo e especialista em Ayurveda, simboliza nyāya (regra, lei, justiça, juízo, lógica, sistema, plano, adequação, método, modelo), pressuposto em sua capacidade de desenvolver métodos específicos adaptados à cada nova situação (Viniyoga);
  3. Sahadeva, aquele que convive com (saha) os deuses (deva-s), simboliza samarpaṇa (oferecimento, entrega), pressuposto em sua dedicação e entrega ao sagrado (Satya Tyāga); e
  4. Bhīma, que também representa força, humildade, obediência e gratidão, simboliza o jñāna (conhecimento), pressuposto do seu contínuo estado de gratidão pelos resultados alcançados (Upasthāna).
Aprendendo com Francisco Barreto em dezembro de 2006:
"Primeiro ser; depois fazer; e só então, dizer..
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Na Bhagavad Gītā śraddhā (a espiritualidade pura e o ardor do amor em ação) do príncipe Arjuna representa a síntese desses cinco pilaresO texto apresenta o Senhor Krishna e Arjuna sentados na quadriga puxada por quatro corcéis brancos. A quadriga simboliza a mente e o corpo humano; Arjuna, a consciência individual (o “si mesmo”, o ser individual, o jīva) condicionada pelo processo objetivo do mundo (saṁsāra); e Krishna, o Espírito que exerce o controle das rédeas, ou da mente emocional (com jurisdição sobre os sentidos). Quando o ser individual (Arjuna, Nara) se deixa dirigir pelo Supremo Espírito (Krishna, Nārāyaṇa), presente em si mesmo, avança pelo caminho que nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, tal como expressa o mantra OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA.

OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA 

O mantra OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA nos prepara para Ṛṣi-nyāsa. Ao pronunciar a primeira sílaba, OṂ, devemos imaginar que estamos dentro do Espírito Cósmico que, por sua vez, está dentro e fora de nós, compenetrando o Universo Infinito. NAMO indica rendição e a expressão NĀRĀYANĀYA indica a NĀRĀYANA, o Ser Imutável, como o objeto de nossa rendição plena de felicidade. OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA, deste modo, refere-se à atitude mental de entrega ao aspecto de ĀTMAN, que representa o Ser Imutável, presente em nós e simbolizado na pessoa de todos os grandes Ṛṣis que elegemos como objeto de nossa devoção.

O sentido de Ṛṣi-nyāsa no Śuddha Yoga, em suma, relaciona-se com a nossa capacidade de nos identificar com os mestres invisíveis a olho nu, presentes em nosso próprio interior, e que nos possibilita identificar a figura familiar do nosso próprio mestre exterior em todos os seres visíveis. O grande admirador da Bhagavad Gītā e ensaísta Ralph Waldo Emerson expressa esta verdade do seguinte modo: "Todo o homem que encontro me é superior em alguma coisa. E, nesse particular, aprendo com ele." Somente aqueles que, libertos de quaisquer vínculos externos, experimentaram de Ṛṣi-nyāsa podem comungar da perfeita alegria, ou Ānanda, dos Ṛṣis.

N O T A S

​(1) Ṛṣi-nyāsa e Vi-nyāsa. No contexto do yoga, vinyāsa se refere à sequência fluida de movimentos entre as posturas (āsanas), sincronizados com a respiração, que visa cultivar a concentração, a consciência corporal e a conexão entre corpo e mente. Assim como vinyāsa conecta as posturas em uma coreografia harmoniosa, ṛṣi-nyāsa estabelece uma conexão com a hierarquia de mestres espirituais (Ṛṣis) que transmitiram os ensinamentos espirituais ao longo dos séculos.

(2) Ṛṣi-nyāsa e ĀnandaAconteceu certa vez entre São Francisco e Frei Leão um diálogo que expressa a alegria espiritual oriunda de Ṛṣi-nyāsa. No século XIV, um frade franciscano adaptou um texto sobre a vida de São Francisco, que passou a correr mundo com o nome de Fioretti. Esse texto contempla um diálogo entre São Francisco e Frei Leão, transformado por Frei Luiz Carlos Susin no hino de louvor "Perfeita Alegria", mostrado no vídeo abaixo

(3) Arjuna-kṛta-Durgā-stuti, o hino de exaltação (stuti) a Durgā entoado (kṛta) por Arjuna (veja aqui). O Hino à Durgā (Durgāstava) entoado por Arjuna, por orientação de Krishna, consta da seção 23 do livro sexto do Mahābhārata. Durgā se manifesta e abençoa Arjuna. Este hino aparece também como parte da recensão da Bhagavad Gītā extraída da ​Bhāṣya de Hamsa Yogi e editada pela organização religiosa Śuddha Dharma Maṇḍala (capítulo 1, versos 14 a 26).


Rio de Janeiro, 04.12.18.
(Atualizado em 13.08.25)