2023-06-06

O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (I)

I. Mapeando o surgimento da Cultura Sintrópica no Brasil

Gostaria que este ensaio fosse lido apenas como um capítulo de um diário antropológico, ou seja, como um registro pessoal de observações, reflexões e análises oriundas do convívio de mais de quarenta anos com Francisco Barreto, o fundador e Instrutor do antigo Ashram Ātma. Ele se destina, tão somente, a oferecer o contexto e os processos culturais envolvidos no desenvolvimento da práxis sintrópica, definida anteriormente, que nos animava. A sua relevância está, precisamente, no fato dele mapear o nascimento e o desenvolvimento de alguns elementos da cultura sintrópica no interior de uma pequena comunidade, localizada em Aracaju – SE e dedicada à prática do Śuddha Yoga. Este ensaio reflete, basicamente, sobre as discussões que tínhamos no Ashram, no final dos anos setenta e início dos oitenta, e que fizeram despertar o interesse do grupo sobre o papel do conhecimento da realidade material para o progresso espiritual do indivíduo e da sociedade. Ele dá sequência ao texto anterior do presente capítulo e discorre sobre o contexto em que a práxis sintrópica do Śuddha Yoga fora ali vivenciada. Ilustra também como o Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) se relaciona com a Razão (Buddhi e Manas) na produção da boa ciência.

Conforme mencionei, conheci Francisco Barreto em 1979, quando passei a experimentar da forma de viver que integra e unifica as experiências do universo fenomenológico, dando igual peso à Matéria e ao Espírito. Fundados nas investigações de Jean Emile Charon sobre a neguentropia e as origens da consciência, buscávamos a compreensão “espiritual” da ciência e dos fundamentos da nossa práxis. As linhas que se seguem procuram mostrar como as nossas reflexões sobre o texto de Charon haviam decorrido de discussões prévias, tão ou mais importantes que estas, em torno do pensamento do Prof. Artur Barthelmess (? - 13.07.2015), autor da serie em seis volumes Química para Vestibular (Edição do Autor, 2ª. Ed., 1964). Francisco era fascinado pela pedagogia do Prof. Barthelmess, fundada no método que chamara de “Ancoragem”. Ele elaborara esse procedimento metodológico inspirado no educador Alfred North Whitehead e sua crítica ao “dead knowledge”, caracterizado pelas “informações inertes”. A sua proposta era de ensinar convencendo e estimulando o desenvolvimento do sentimento intuitivo e não apenas sobrecarregando o espírito do estudante com informações estéreis.

Alguns anos mais tarde, por volta de 2009, após o meu retorno do Canadá, Francisco me presenteou com a sua coleção de seis volumes do Prof. Artur Barthelmess, que ele havia estudado com afinco durante a sua preparação para o vestibular da UnB. Eu tive, então, a oportunidade de relembrar e retomar alguns dos tópicos sobre os quais costumávamos discutir, tendo ficado bastante impactado por aquela leitura. Pouco antes de falecer, já muito doente, Francisco comentou sobre a importância daquela coleção na sua formação intelectual. Perguntou-me se eu ainda me lembrava das nossas conversas no Ashram Ātma. Disse-lhe que sim e que, inclusive, mantinha em minha biblioteca, conservado com muito zelo, aqueles volumes de autoria do Prof. Barthelmess, que ele deixara sob a minha guarda. Percebi que Francisco nutria certo carinho nostálgico pela obra. Ele lamentou que ela tivesse caído no esquecimento e que não era mais possível obter, com facilidade, qualquer exemplar dela. Perguntei-lhe, então, se gostaria de tê-los de volta. Ele sorriu e aceitou. Esse material tivera uma importância imensa na constituição da sua práxis sintrópica, a qual, por vezes, se referia, de forma indireta, exclamando “Bhāvana Namaḥ!”. Imagino que hoje a coleção faça parte do acervo da biblioteca da Grande Síntese. A práxis sintrópica, segundo Francisco, estava implícita no método pedagógico empregado pelo Prof. Barthelmess para descrever os fenômenos físicos e químicos da matéria. Ela não nos convida a adotar uma postura teísta ou ateísta em relação ao universo, mas sim a compreender o equilíbrio que nos possibilita estabelecer a harmonia entre os campos material e espiritual, de modo que o mundo externo seja percebido como uma escola para o nosso progresso interior. Na medida em que íamos desenvolvendo um pouco do Sentimento Sintrópico, íamos compreendendo, por exemplo, que a ecologia é, sobretudo, uma ecologia da mente, pois é na mente que se alinham todos e quaisquer ideais multiculturalistas e ecológicos que promovem um estilo de vida sustentável.

O ancestral e mitológico Śuddha Yoga, que orientava a vida no Ashram, conforme já descrito em outros artigos, promove o desenvolvimento do Sentimento Sintrópico. Ele ainda não faz parte do vocabulário da ciência, embora o seu sentido, gradualmente, esteja adentrando todos os campos do saber. O Sentimento Sintrópico (expressão do amor; śraddhā) é intrínseco aos seres vivos e desempenha um papel fundamental na ampliação da compreensão humana. Enquanto as máquinas possuem a mesma capacidade lógica (tarka) da razão concreta (buddhi, manas), os sentimentos intuitivos, presentes no Espírito humano (Ātman) são únicos e conferem ao homem uma perspectiva que o possibilita ir muito além do alcance da visão mecanicista e meramente lógica da realidade. A razão lógica é míope, mecânica. Pode ser reproduzida pelas máquinas e os seus algoritmos e ganha importância somente quando disciplinada e subordinada ao Sentimento Sintrópico, inerente aos seres vivos. Os sentimentos intuitivos e sintrópicos, em geral, funcionam como filtros, capazes de eliminar as soluções racionalmente defensáveis, mas inadequadas. Funcionam também como lentes que nos possibilitam ver e estabelecer conexões novas, que desafiam, inclusive, os paradigmas vigentes.

Somente após se assumir alguma posição com relação à visão de mundo que nos orienta podemos definir os axiomas fundamentais dos nossos modelos teóricos. Com relação ao universo, por exemplo, a ciência ocidental ainda mantém como axioma implícito no seu ponto de vista o entendimento lógico de que não existe uma conexão do sujeito com os objetos. Assume-se, simplesmente, que as partes constituintes do todo seriam independentes entre si. De outro lado, diversos saberes do oriente partem do sentimento intuitivo de que o universo apresenta uma interconexão holística, ou seja, uma relação sistêmica das partes com o todo. Enquanto o ocidente privilegia e dá primazia à razão em relação ao sentimento, o oriente faz o inverso: contempla o universo como um corpo vivo, onde o todo é maior que a soma das partes, e a partir daí elabora, esteticamente, os seus distintos saberes. Este entendimento orgânico e sintrópico nos possibilita explorar questões complexas como a ética, a sustentabilidade e o bem-estar humano com vantagens em relação à exploração meramente racional, inorgânica e lógica. A subordinação da lógica, presente também nas máquinas inanimadas, ao sentimento, próprio dos seres vivos, promove o surgimento de soluções holísticas, capazes de atender melhor o desenvolvimento da ciência e da sociedade como um todo. Quando, à moda dos místicos, o Sentimento Sintrópico promove a “iluminação” da razão alcança-se aquele modo de ser e estar no mundo que nos capacita a interagir com ele com ciência, verdadeiramente, de forma holística e promotora do bem comum e do avanço da sociedade, conforme argumentamos a seguir.

No ocidente, até onde conheço, a especulação em torno de uma perspectiva sintrópica sobre a realidade começa com Empédocles de Agrigento (483-424 a.C.). Ele antecipa algumas das hipóteses que a Física viria a equacionar somente em meados do século XIX. Empédocles aplica ao mundo empírico a doutrina do tempo cíclico de Anaximandro de Mileto (610-547 a.C.), que, séculos mais tarde, seria tomada emprestada por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900), em sua teoria do Eterno Retorno. A teoria do tempo cíclico, também presente na filosofia indiana e no Egito antigo, e adotada pelos pitagóricos e estoicos, afirma que o universo e toda a existência e energia são recorrentes e continuarão a ocorrer, de forma repetitiva, infinitamente no tempo e no espaço. Empédocles lida com o determinismo cíclico subdividindo cada ciclo cósmico em duas fases: uma delas entrópica, de promiscuidade crescente; e outra sintrópica, de ordem crescente. A partir daí ele estabelece dois princípios contrários: o “amor”, que tudo harmoniza e ordena; e o “ódio”, que segrega e desarmoniza. Quando o amor alcança a sua plenitude, o universo alcança o estado indiferenciado de que trata Anaximandro. Quando o ódio reflui, a matéria se diferencia e se especializa até atingir o nível máximo de desordem e segregação. E assim estas duas fases se sucedem, de forma repetida, infinitamente. Estão aí as duas premissas segundo as quais o universo e os seres vivos se desenvolveriam: onde reina a entropia, surge a necessidade da sintropia e vice-versa.


Rio de Janeiro, 06.06.23.

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