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Do "bom senso" ao "bom-senso" |
Em uma era marcada pelo excesso de informações, pela polarização e por crises interligadas, o bom senso emerge como um farol a nos guiar por entre as brumas da incerteza. Mais do que nunca, a capacidade de ponderar, discernir e agir com equilíbrio se torna crucial para navegarmos pelas complexidades do mundo contemporâneo. É nesse contexto que a reflexão sobre o bom senso se faz urgente, impelindo-nos a revisitar suas raízes e a vislumbrar suas novas nuances.
Bom Senso: Uma Definição em Constante Evolução
O bom senso, em sua acepção mais básica, reside na capacidade de julgar e agir de forma sensata diante das situações do dia a dia. É a voz da razão que nos impede de sucumbir a impulsos e tomar decisões imprudentes. Contudo, essa definição, embora funcional em um nível prático, se mostra insuficiente para abarcar a totalidade da experiência humana. A vida, em sua riqueza e imprevisibilidade, exige mais do que a mera aplicação de regras e lógica.
Ao longo da história, o conceito de bom senso se metamorfoseou, incorporando novas camadas de significado. Na Grécia Antiga, era associado à phronesis, a sabedoria prática que orientava a ação virtuosa. O Iluminismo, por sua vez, enfatizou a razão como pilar do bom senso, moldando a visão moderna dessa qualidade. Em minhas próprias reflexões, tenho percebido que o bom senso transcende o cálculo racional, manifestando-se também na intuição, na empatia e na capacidade de "sentir" as situações para além das aparências.
Do Senso Comum ao "Bom Senso" (sem hífen): Uma Distinção Fundamental
É crucial distinguir "bom senso" de "senso comum". Enquanto o senso comum se baseia em ideias pré-concebidas e percepções generalizadas, o bom senso exige reflexão crítica e ponderação individual. O bom senso nos convida a questionar o senso comum, a buscar informações e perspectivas diversas antes de tomarmos decisões.
O "Bom-Senso" (com hífen) do Coração: Uma Nova Perspectiva
É nesse ponto que vislumbro a emergência do que denomino "bom-senso do coração". Inspirado pela filosofia oriental, que enfatiza a interconexão entre todos os seres, esse conceito se ancora na compaixão, na sensibilidade e na capacidade de se conectar com o outro em um nível mais profundo. É um bom-senso que se nutre do sentimento, expresso pela sabedoria ancestral, que reconhece a importância do equilíbrio entre razão e emoção, intuição e lógica. Assim como o Zen Budismo nos convida a cultivar a "mente de principiante", o "bom-senso do coração" nos convida a confiar em nossa bússola interior, questionando certezas, acolhendo novas perspectivas e evitando o dogmatismo.
Śraddhā: A Bússola Sintrópica do "Bom-Senso" do Coração
No cerne do "bom-senso do coração", ou simplesmente do "bom-senso" (com hífen), reside o conceito de śraddhā, um termo sânscrito que pode ser traduzido como o fogo e o ardor do coração e o poder de colocar o amor em ação. Śraddhā, portanto, não se refere à mera fé, ou a uma crença cega ou dogmática, mas sim a uma confiança profunda no sentimento intuitivo, que ausculta a ordem natural do universo e nos guia em direção à verdade e à harmonia.
Śraddhā opera como uma "bússola sintrópica" para a razão, tal qual se depreende da Bhagavad Gītā. A palavra "sintropia" significa a tendência natural dos sistemas para a organização, a complexidade e a harmonia. Em contraposição à entropia, que representa a desordem e a degeneração, a sintropia é a força que impulsiona a evolução e o florescimento da vida. No comportamento humano, a sintropia se manifesta como uma tendência inata para buscar equilíbrio, crescimento e conexão com o todo. Śraddhā, como bússola sintrópica, orienta a razão na direção da sabedoria e do bem. Ela nos permite discernir o que é essencial do que é secundário, o que é justo do que é injusto, o que é belo do que é disforme. Śraddhā não anula a razão, mas a ilumina, oferecendo-lhe a base sólida de valores e princípios que se coadunam com o sagrado coração, a sede do Espírito.
Sentimento Intuitivo: A Voz do "Bom-Senso" do Coração
A intuição, frequentemente descrita como um "palpite" ou um "saber sem saber", desempenha um papel crucial no bom-senso do coração. É uma forma de conhecimento que surge de dentro, muitas vezes ignorando a necessidade de raciocínio consciente. Enquanto a razão nos fornece análises lógicas e conclusões baseadas em evidências, a intuição oferece uma compreensão mais holística, levando em consideração emoções, experiências e pistas sutis que podem não ser prontamente aparentes para a mente racional. Esse bom-senso reconhece o valor da intuição como instância legitimadora da própria razão. Ele nos encoraja a prestar atenção à nossa voz interior, a confiar em nosso sentimento intuitivo e sintrópico e a permitir que eles informem nossas decisões. Do mesmo modo, também nos adverte contra seguir cegamente, sem reflexão crítica, as intuições infundadas. O "bom-senso" (com hífen) busca um equilíbrio entre intuição e razão, reconhecendo que ambos são essenciais para navegar pelas complexidades da vida.
Neurociência e Psicologia: A Base do "Bom-Senso" do Coração
A neurociência moderna oferece insights valiosos sobre como o cérebro processa informações e toma decisões, corroborando a importância da integração entre razão e emoção. Estudos demonstram que as emoções desempenham um papel fundamental no processo decisório, influenciando nossa percepção e moldando nossas escolhas. O "bom-senso", nesse contexto, pode ser compreendido como a capacidade de integrar os impulsos emocionais com a análise racional, em respeito à Grande Lei que organiza a vida, rege o movimento dos astros, sustentando o equilíbrio do próprio universo.
A psicologia, por sua vez, nos alerta para os "vieses cognitivos", distorções que podem afetar nossa percepção da realidade e comprometer o exercício do bom senso. O autoconhecimento e a consciência desses vieses são ferramentas essenciais para cultivarmos uma mente mais aberta e receptiva, capaz de nos fazer avançar do mero "bom senso" racional para o "bom-senso" do coração.
Conclusões: Semeando o Bom-Senso
O bom senso, como vimos, longe de ser um conceito estático ou um conjunto de regras prontas, se transforma e se adapta aos desafios de cada época, assim como uma semente se transforma em árvore, adaptando-se às intempéries e crescendo em direção à luz. Em nosso mundo, marcado pela complexidade e pela incerteza, o "bom-senso do coração" emerge como um guia essencial nessa jornada, um mapa que nos ajuda a navegar por entre as adversidades e a construir um futuro mais harmonioso.
Assim como o jardineiro cultiva com cuidado uma planta, o bom-senso do coração precisa ser nutrido e desenvolvido continuamente. Ele exige meditação, reflexão e abertura para o novo, como raízes que se aprofundam na terra em busca de alimento e sustentação. É um convite constante a questionarmos nossas crenças, a acolhermos diferentes perspectivas e a buscarmos a maestria sobre as ações, fazendo de cada ação, uma meditação. Que possamos, então, inspirados pela sabedoria ancestral e pelos conhecimentos da ciência moderna, dedicar-nos a essa semeadura do bom-senso em nossos corações e em nossas vidas.
Próximo texto: O "Bom-Senso", a Bhagavad Gītā e o contexto do Mahābhārata
Rio de Janeiro, 12.02.25
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