2018-10-17

Bhagavad Gītā: a meditação sintrópica em seus três estágios

I. Introdução

A novidade e a originalidade do argumento que pretendo desenvolver a seguir decorrem da tese de que o texto da Bhagavad Gītā1 representa a alegoria mais perfeita e bem acabada da arte e da ciência da meditação. Apesar da extensa literatura disponível, quase nada existe a esse respeito. O caráter universalista, não sectário e não dogmático do texto revela a meditação como uma prática sintrópica que não pertence, exclusivamente, a nenhuma denominação religiosa em particular. A Bhagavad Gītā é uma alegoria poética da luta interior que se passa no ser humano. Mostra o percurso de Arjuna, saindo de um estado inicial onde ele aparece como um devoto (bhakta) sem śraddhā, até o momento onde ele se encontra pleno de śraddhā. Quem escuta e faz as coisas de coração, tem crédito – do latim, credere (acreditar, confiar), que também origina o termo “credo” em português.  “Credere” deriva de “śrad-dhā”, a certeza interior e a convicção íntima. Quando a mente do aspirante funciona a partir do coração este desenvolve uma “sintonia fina” que lhe permite perceber a vida e o universo de forma sintrópica, como uma espécie de poema cósmico, onde o solo, os rios, a água, o ar que respiramos e a própria vida aparecem como partes de um todo sagrado e em perfeito equilíbrio.

Conforme já discutimos em outros textos, as primeiras referências que nos remetem ao desenvolvimento da arte e da ciência da meditação estão contidas na seguinte metáfora, que relaciona a mente humana e a Consciência Universal que a anima: “Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser. Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.” (Ṛigveda 1.164.20; Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1; e o oitavo verso da Māntrika Upaniṣad).  Surge desta alegoria a ideia, presente em quase todas as modalidades de meditação, do “estado de Testemunha” – Sākṣī (sa, “com”; e akṣa, “centro da roda, olho”). Sākṣī significa, “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (akṣa) permanece imóvel. O estado de Testemunha, Sākṣī, expressa a capacidade de observar, impassivelmente, os eventos que fazem o mundo girar. Na figura, a árvore representa o nosso corpo, enquanto os dois pássaros, referindo-se à nossa dupla identidade, material e espiritual, simbolizam o processo de meditação. Os dois pássaros representam, respectivamente: (1) a mente emocional, racional e lógica, que envolve o consciente, o subconsciente e o inconsciente; e  (2) o coração espiritual, que representa a sede da Consciência Universal em nós. É a este processo de  unificação da mente com o coração espiritual que se chama, originalmente, de meditação.

Desde as primeiras Upaniṣads a concepção de Haṃsa (cisne, símbolo do Espírito) é utilizada pelos yogues em sentido místico para designar o casamento do “eu” (haṃ), que no oriente representa a terceira pessoa, com o espírito universal “ele/ela” (saḥ), que representa a primeira pessoa. Esses dois aspectos também estão relacionados com o Prāṇāyāma, conforme os movimentos de puraka (inspiração) e rechaka (expiração). O cisne Haṃsa simboliza o supremo som seminal (nāda), presente no coração, onde o princípio consciente de Ātman atua em estado de separação (vi-yoga) e união (saṃ-yoga).

A Māntrika Upaniṣad (Upaniṣad do praticante de mantras) apresenta em seu verso de abertura o cisne Haṃsa como o ser humano realizado, que alcançou o contato e a unificação com a essência do sagrado em si mesmo (Ātman).  Haṃsa banha-se no lago pertencente à mente (Manas). O texto descreve os dois aspectos deste cisne: um visível e outro invisível. O aspecto visível representa o ser humano, que se alimenta do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O aspecto invisível representa a imagem e semelhança do Espírito Puro e Universal (Ātman), eternamente sem mácula, que reside no interior de cada um de nós. Quando ingressamos em estado de saṃnyāsa (renúncia ao egoísmo) e tyāga (entrega ao sagrado) no lago da consciência cósmica do Eu Sou (Haṃ, eu sou; saḥ, isto – o Ser), os dois pássaros que habitam na mesma árvore unificam-se no cisne, que em sânscrito se chama "haṃsa". "Haṃ-sa, haṃ-sa" ("Eu Sou Ele, Eu Sou Ele"), é uma onomatopeia do processo de respiração que corresponde, respectivamente, aos sons de inspirar – "haṃ" – e expirar – "sa".

O pequeno texto medieval, atribuído a Adi Sankaracarya, intitulado Dṛg-Dṛśya-Viveka, também discute esta distinção entre estes dois pássaros que habitam a mesma árvore, o “observador” (Dṛg) e a “coisa observada” (Dṛśya).  Cabe aqui destacar a seguinte passagem:
Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então Sākṣī se revela o verdadeiro observador. 
Está aí o segredo da meditação. Sākṣī representa aquela instância em nós indicativa de que não somos este corpo corruptível e sujeito à morte, mas a testemunha de tudo que se passa no corpo e fora dele. Representa o Ātman, o Espírito Puro, ou aquela Consciência Superior presente em nós que experimenta a existência do mundo sem ser afetado por ela, tal como descrito, por exemplo, no Śvetāśvatara Upaniṣad 6.11: “Oculto em todos os seres e representando o “Ser”, ele é a Testemunha, o dispensador de vida e inteligência...” Sākṣī conota o próprio Iśvara (o regente interno), presente como a Consciência (cetā) em todos os seres humanos.

Na Bhagavad Gītā, Arjuna e Krishna representam os dois pássaros que compartilham da mesma quadriga, do mesmo corpo. Krishna é a testemunha, não toma parte na batalha. Arjuna simboliza o pássaro que se alimenta dos frutos do mundo.  A marca distintiva da Bhagavad Gītā, em relação aos demais textos dos vários darśanas, ou sistemas, é o fato dela se apresentar na forma de um poema.  A Bhagavad Gītā não estrutura, nem engessa, o ancestral yoga (reintroduzido no texto por Krishna), como o fazem as diferentes escolas, cada uma delas com os seus rígidos e, por vezes, contraditórios Sūtras. O texto apresenta, de forma implícita, uma síntese assistemática, universalista, não sectária, não dogmática e unificadora de todas as formas de meditação presentes nas distintas Upaniṣades e que, mais tarde, foram compilados em textos como os Yoga Sūtra de Patanjali (Aṣṭāṅga Yoga) e outros tantos, de distintas escolas, inclusive da tradição budista.

II. A Bhagavad Gītā no contexto do Mahābhārata

A Bhagavad Gītā é parte do Mahābhārata. Diferentemente do Rāmāyaṇa, um texto devocional do hinduísmo, o Mahābhārata é filosófico e coloca em xeque o entendimento dogmático do varṇāśrama-dharma (sistema moral fundado no sistema de castas). Propõe, em seu lugar, o Krishna-dharma, que é revelado e discutido na Bhagavad Gītā.  O Mahābhārata desenvolve-se em torno de quatro (ou cinco) propósitos humanos, ou eixos principais de reflexão, conhecidos como Puruṣārthas e explicitados no próprio corpo do texto (MBh 1.2.83):
1. o princípio universal de sustentação do universo: dharma;
2. a arte de governar a si mesmo e de relacionar-se em grupo: artha;
3. a natureza do desejo: kāma; e
4. a via da realização humana: mokṣa e brahma-prāpti.

Sanjaya narra a Dhritarashtra
o que se passa no campo de batalha.
O tratamento destes eixos culmina na Bhagavad Gītā com o estabelecimento, de forma paradigmática, da Arte e da Ciência da Meditação. A Bhagavad Gītā representa a reportagem feita ao rei no palácio, em tempo real, dos fatos que haviam se passado no campo de batalha, instantes antes do início da batalha final do Mahābhārata.  Sintetiza em 700 versos, sob a forma de um pequeno diálogo de coração-a-coração (saṃvāda), toda a CIÊNCIA PRÁTICA sobre o Yoga, modernamente classificado em três grandes pilares:

Bhakti-yoga, cuja essência é Bhāvana, ou a contemplação do sentimento da unidade;
Karma-yoga, cuja essência é o entendimento de Karma como meditação na ação e, consequentemente, como a busca da maestria sobre todas as ações; e
Jñāna-yoga, entendida como expressão da meditação silenciosa, ou Dhyāna. 

Na Bhagavad Gītā, o protagonista Arjuna (paradigma da condição humana) escuta de Krishna (paradigma da condição divina: “aquele que desce” a este mundo, de tempos em tempos, para restabelecer a essência pura do dharma) como desenvolver a śraddhā (o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto), necessária para sair do seu “estado de ilusão e confusão mental” e alcançar, em meditação, o encontro com o sagrado. Śraddhā revela-se no texto, portanto, como a chave-mestra do Yoga revelado por Krishna e, consequentemente, da arte e da ciência da meditação. 

No Mahābhārata como um todo e, em especial, na Bhagavad Gītā, Krishna é bastante claro ao definir a sua missão neste mundo: veio para restaurar a pureza do dharma. Arjuna apresenta-se a ele como a oportunidade e a ocasião para transmitir o seu ensinamento e obter êxito em sua missão. Krishna argumenta que somos definidos, em cada instante, em conformidade com a nossa capacidade de manifestar śraddhā, ou seja, em conformidade com a nossa capacidade sintrópica de convergir para o coração, fazendo de nossa vida toda uma meditação. 

Quando a Bhagavad Gītā se inicia, Arjuna encontra-se na condição de um devoto (bhakta) que se mostra confuso; sem ânimo, motivação e coragem (sem śraddhā) para empreender a sagrada ação, que o conduzirá à meta suprema.  Embora Arjuna fosse um devoto do mais elevado grau, as circunstâncias especiais que enfrenta nublam, inicialmente, o seu entendimento, impedindo a sua razão de receber a luz oriunda do Espírito que reside no coração. Ao longo do diálogo com Krishna, entretanto, a razão de Arjuna, vai, aos poucos, se iluminando, até que ele se percebe totalmente preenchido de śraddhā, ou seja, do mais pleno e puro fervor e ardor oriundo do amor que se irradia do seu coração. Estando Arjuna, desse modo, recuperado e pleno de śraddhā, o diálogo da Bhagavad Gītā se encerra e a narrativa principal do Mahābhārata pode então ter sequência.  Na Bhagavad Gītā, em suma, Krishna, a um só tempo, antecipa e confirma as críticas que logo seriam adotadas e sugeridas também pelo Senhor Buda, quando este rejeita o sistema de castas (varṇāśrama-dharma) e o brahmanismo.

Gītopadeśa
III. Gītopadeśa: A Meditação como a A Escuta do Coração que conduz do saṁsāra ao nirvāṇa

Conta a lenda que interrogado sobre o que ensinava ao seu povo, um pajé americano teria respondido: primeiro, a escutar o coração; segundo, que tudo está ligado com tudo; terceiro, que tudo está em transformação; e quarto, que a Terra não é nossa, nós é que somos da Terra. Este sentido de “escutar o coração” também está presente na seguinte passagem bíblica: “Onde estiver o seu tesouro, lá estará também o seu coração” (Mateus 6:21 e Lucas 12:34).  E ainda: I Cor 6:19 e 3:16: Você não sabe que o corpo é o templo do Espírito Santo, que está em você? Somos o templo de Deus. 

A escuta do coração representa a essência do ensinamento da Bhagavad Gītā. Conforme retratada na imagem da Gītā-Upadeśa, a quadriga representa o corpo humano;  o Senhor Krishna, a consciência universal, o Espírito; e Arjuna, a consciência individual (o “si mesmo”, o ser individual, o jīva), condicionada pelo processo objetivo do mundo (saṁsāra). Na Gītopadeśa, o quadrigueiro indica o estágio em que o Espírito (Krishna, Narāyaṇa), antes mera testemunha, passa a exercer o controle da mente emocional, para que esta, livre das obstruções da multiplicidade, possa dirigir o veículo corporal pelo caminho eterno e sem faltas, que conduz o ser individual (Arjuna, Nara) do saṁsāra ao nirvāṇa. A Gītopadeśa mostra a Bhagavad Gītā como expressão da metáfora da unificação dos dois pássaros descritos no Ṛigveda (1.164.20), na Muṇḍaka Upaniṣad (3.3.1) e na Māntrika Upaniṣad. Expressa, portanto, como desenvolver o discernimento, ou a visão espiritual (Divyacakṣus), por meio da arte e da ciência da meditação.

A Bhagavad Gītā afirma que educar a mente para a prática da meditação significa guiar-se no mundo pela bússola do coração, ou seja:

a. significa conseguir que a mente abandone o seu funcionamento guṇa-para (fundado nos estímulos materiais) e representado na metáfora do barco presente no verso 67, capítulo 2 da Bhagavad Gītā (a mente que se influencia pelos sentidos é como um barco sem rumo, ao sabor dos ventos); e 
b. passe a se orientar pelo funcionamento sintrópico, não egoísta, designado tecnicamente de ātma-para (fundado nas intuições superiores e sentimento holístico de base espiritual), representado na metáfora da tartaruga no verso 58 do mesmo capítulo (assim como uma tartaruga recolhe todos os seus membros para dentro do casco, assim também o aspirante é capaz de recolher os seus sentidos para dentro de seu coração, livre da escravidão imposta pelos estímulos da realidade externa). Não é por outra razão que alguns templos indianos contêm em sua entrada a representação de uma tartaruga.

IV. A arte da meditação

O verso de abertura da Bhagavad Gītā já é parte da ambientação adequada, programada pelo próprio Senhor Krishna, para a devida revelação e materialização de toda a arte e ciência da meditação. É importantíssimo destacar que a experiência mística vivida por Saṁjaya o leva a descrever, já neste primeiro verso, a oposição das expressões dharma-kṣetre (no campo do dharma) kuru-kṣetre (no campo dos Kurus), oposição esta que também expressa a relação universal entre as nossas experiências subjetiva e objetiva do mundo. É esta relação que será elaborada ao longo do texto e que irá modular as práticas de meditação em três níveis distintos: objetivo, subjetivo e transcendente. Aí neste verso inicial já está posto o problema: 

BhG 1.1. Dhṛtarāṣṭra disse: Ó Sañjaya, reunidos e desejosos de lutar, o que fizeram os filhos de Pāṇḍu e os meus no campo dos Kurus, o campo do dharma?

Este capítulo inicial da Bhagavad Gītā apresenta Arjuna, como um devoto religioso em crise, sem śraddhā, perdido, mas em busca de si mesmo, ou seja, procurando despertar para o ancestral yoga, que havia se perdido e que tem por objeto a arte e a ciência da meditação. O capítulo 2, explicitado mais acima por meio dos versos BhG 2.58 e BhG 2.67, apresenta a grande síntese realizada por Krishna de toda a arte e ciência da meditação. A exposição realizada por Krishna, contudo, é incompreensível para Arjuna. Os capítulos que se seguem, apresentam, então, Krishna explorando as dúvidas e questionamentos de Arjuna, para que este possa experimentar dos estados de meditação e alcançar o nível de certeza interior (fé-em-si-mesmo, ou śraddhā) necessário para a sua tomada de decisão, tendo em vista os seus compromissos com o mundo e com a sua própria realização espiritual. O terceiro capítulo já se abre com Arjuna questionando:

BhG 3.1. Arjuna disse: Oh Janārdana! Oh Keśava! Se você considera a via do conhecimento superior à via da ação, como então sugere que eu me engaje nesta ação terrível?

Krishna passa a elaborar, gradativamente, o que sintetizara no segundo capítulo: a verdadeira via espiritual, representada, em geral, pela meditação silenciosa (via subjetiva), inclui, necessariamente, a meditação-na-ação (via objetiva). Krishna afirma logo na abertura do quarto capítulo que este seu ensinamento corresponde ao ancestral Yoga transmitido originariamente aos Grandes Rishis e que acabou por se perder com o passar do tempo:

BhG 4.1. O Glorioso Senhor disse: eu ensinei este imperecível Yoga [que inclui a maestria sobre todas as ações] a Visvavat. Visvavat o transmitiu a Manu e este a Ikṣvāku.

E no capítulo seguinte, Krishna afirma:

BhG 5.4. Os ignorantes, não os sábios, afirmam que sāṁkhya (via subjetiva) e yoga (via objetiva) são distintas. Seguir propriamente um desses caminhos é, na verdade, atender e obter os frutos também do outro.

BhG 5.27-8. Com os olhos fixos entre as sobrancelhas, e a inspiração e expiração harmonizadas, o aspirante harmoniza todos os seus contatos pelos sentidos. Com os sentidos, a mente e o intelecto disciplinados e objetivando alcançar mokṣa, livre do desejo, do medo e das paixões, verdadeiramente, alcança a realização espiritual.

A explanação de Krishna, respondendo as questões de Arjuna o leva a experimentar, no capítulo 11, do estado de meditação e comunhão mística. Daí a síntese final, elaborada pelo Senhor Krishna em um único verso do último capítulo:

BhG 18.66. Renunciando a todos os dogmas e crenças externas (religiões) busca unicamente o Ser. O Ser Sagrado, o Supremo, que reside no coração liberar-te-á de todo o mal. Não sucumbas oprimido pela tristeza [em decorrência da falta de śraddhā, o entusiasmo e o ardor do coração].

V. A Meditação do Coração em seus Três Estágios

Como vimos, o coração de toda a cultura védica e Upaniṣádica está representado na ancestral arte e ciência da meditação de que trata a Bhagavad Gītā. Os versos 23 a 28 do capítulo 17 da Bhagavad Gītā exprimem bem esta síntese de todo o conhecimento da védico, realizada por Krishna. No verso 23, por exemplo, a expressão triádica "OM TAT SAT", tanto significa "OM, isto é a verdade!", como também representa os três níveis da prática de meditação discutida por Krishna ao longo da Bhagavad Gītā: Meditação Transcendental, ou Śuddha Dhyāna (OM), Meditação Objetiva, ou Saguṇa Dhyāna (TAT); e Meditação Subjetiva, ou Nirguṇa Dhyāna (SAT).  Os versos 27 e 28 definem as condições necessárias para a prática de meditação (firmeza na internalização dos rituais, na postura austera e no cultivo da compaixão, bem como no desempenho de todas as atividades relacionadas com a meta suprema) e também apresentam como condição sine qua non o desenvolvimento de śraddhā.

O São Coração em mim saúda o São Coração em você!
Namastê!
Meditação é, antes de tudo, um estado de silêncio interior. Nesse sentido, não é algo totalmente estranho à cultura ocidental. O conceito de meditação aproxima-se do conceito de contemplação amorosa de uma "pessoa" divina, tal como formulado no ocidente. É a esta forma de contemplação, ou meditação em algo “fora” de nós mesmos que se denomina Saguṇa Dhyāna. Esta modalidade de meditação contempla o foco na ideia de algo relativamente concreto (sa-guṇa; com características materiais capazes de serem percebidas pelos sentidos), como a ideia de uma “pessoa” divina, por exemplo, tal como se vê no “mistério” das três “pessoas” que formam a Santíssima Trindade. Quando estas “pessoas” são despidas da “materialidade” que lhes dão a “forma” pessoal, alcança-se o segundo nível da meditação, denominado, tecnicamente, de Nirguṇa Dhyāna. Neste caso, o foco passa para aquilo que escapa a toda “forma” (nir-guṇa; sem características materiais) e, consequentemente, à própria noção de “pessoa”. A Bhagavad Gītā ensina que o Espírito Puro (Ātman) que reside no imo do Sagrado Coração não é uma “pessoa”. A contemplação da imanência desta centelha divina constituída como amor puro e presente em nós caracteriza, portanto, a Nirguṇa Dhyāna. Por fim, a contemplação deste mesmo Ātman enquanto princípio transcendente e que expressa o Supremo Brilho da Consciência Cósmica (Brahman), caracteriza a Śuddha Dhyāna.  Como um todo, a Bhagavad Gītā ainda ensina que este triplo esforço de conexão e unificação com o sagrado pode e deve ser empreendido o dia todo, o tempo todo.

A Śuddha Dhyāna, portanto, contém, em si mesma, a Saguṇa Dhyāna e a Nirguṇa Dhyāna. Expressa a meditação sintrópica, que se inicia pura e silenciosa no recolhimento das madrugadas e se prolonga pelo dia como expressão de uma contínua meditação na ação, com atenção plena e foco no sagrado de cada minúscula experiência que a vida nos reserva. Ela expressa, igualmente, o silêncio interior, conhecido no zen budismo como Zazen (za=sentar; zen=meditação). O Senhor Buda alcançou a iluminação praticando esse silêncio interior que elimina todos os ruídos externos e faz tudo desaparecer para que reste apenas o sentimento sintrópico de amor puro que nos conecta à todas as formas de vida.

A Śuddha Dhyāna envolve em seus três estágios, portanto, as formas budistas de meditação que privilegiam, tanto o foco e a concentração em um objeto escolhido, como a monitoração aberta dos conteúdos da experiência, conforme difundido, por exemplo, pelos grupos de mindfulness. A mente prende-se a uma e outra coisa. O segredo é fazer com que ela se prenda, UNICAMENTE, ao sagrado, afirmam os textos religiosos das mais distintas tradições. Deixe a mente executar todas as ações como um instrumento desse Sagrado e entregue ao Sagrado também o êxito ou o fracasso, a perda e ou ganho, o júbilo e mesmo o eventual desânimo. Deste modo, com o tempo e a prática, chega o momento em que o recolhimento dos sentidos dos objetos exteriores para o único foco, que é a essência sintrópica do Ser, passa a revelar, em tudo, a presença do sagrado. A partir daí, todas as técnicas iniciais e os distintos tipos de meditação tornam-se uma mesma coisa.  E é somente então que se pode dizer, de fato, que se desenvolveu a capacidade de entrar em estado de meditação. Podemos começar pelas pequenas coisas, por exemplo, evitando as palavras néscias. Todos os grandes seres nos ensinaram sobre esta forma de jejum. Sim, há o jejum de alimentos, há o jejum de palavras desnecessárias (silêncio) e, por fim, o jejum de pensamentos. O jejum de pensamentos leva ao esvaziamento e à harmonização da caixa preta que é a nossa mente e, logo, à aproximação de nós mesmos e aos três aspectos, ou fases, da meditação sintrópica: Saguṇa Dhyāna (contemplação objetiva do Ser; da "pessoa divina"), Nirguṇa Dhyāna (contemplação subjetiva do Ser; "o princípio interior de "não-pessoa" do Ser) e Śuddha Dhyāna (a contemplação da realidade transcendental, que dissolve as dicotomias sujeito-objeto, interno-externo, etc.).

Esta prática assenta-se no princípio da unidade essencial (śuddha) de todo o fenômeno religioso   (dharma), conforme descrito por Hamsa Yogi no Sanātana Dharma Dīpikā e também no seguinte grupo de cinco shlokas do seu estudo introdutório da Bhagavad Gtīā (Upodhgāta, p. 72), conhecido como MANIFESTO ŚUDDHA.
Bhagavān Das: profundo estudioso do Śuddha Dharma.
Autor do seminal Essential Unity of All Religions (1932).
Pioneiro nas discussões sobre a unidade essencial das religiões.

A Śuddha Dhyāna é uma atividade individual, por excelência. As meditações guiadas e as práticas coletivas atendem melhor aos iniciantes e àqueles com dificuldades para encontrar tempo e motivação para a meditação individual. Daí a importância do Sangha (comunidade), uma das três jóias do budismo, dos Ashrams indianos e dos Núcleos de Estudos ocidentais que, ao estimularem as práticas coletivas, motivam e fortalecem os seus membros.

Meditação é um estado de silêncio interior muito próximo daquilo que o ocidente entende por contemplação amorosa de uma "pessoa" divina. Tanto a meditação como a contemplação implicam no desenvolvimento do sentimento sintrópico que atende à máxima "amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si próprio". O amor é a expressão primordial da sintonia com o Sopro Universal, a fonte de onipotente poder de onde procedem todas as formas de Vida, e que levou Jesus a dizer, "eu e o Pai somos Um". Este é o segredo último contido na Bíblia, na Torah hebraica, no Corão, nos Jatakas do budismo, na Bhagavad Gītā e também em vários textos e rituais, tanto de nossos ancestrais como das mais distintas culturas e tradições. Daí o ensinamento, tantas vezes repetido, de que devemos cuidar de “Orar e Vigiar”. O grande Bhagavān Das argumenta nesta mesma direção em seu seminal Essential Unity of All Religions (1932), que trata da espiritualidade pura. Seu texto, em suma, é uma ilustração dos cinco seguintes ślokas (versos) utilizados pelo mestre espiritual Bhagavān Nārada (Sanātana Dharma Sūtras, p. 64; e "Upodhgāta" da Bhāṣyopetā, p. 72) para caracterizar a universalidade da arte e da ciência da meditação segundo a Bhagavad Gītā:
1. आजन्माऽमरणं यच्च शास्त्रं वै मनुजान्पुनः।यथादेशं यथाकालं यथावस्थं च शिक्षयेत्॥ājanmā'maraṇaṁ yacca śāstraṁ vai manujānpunaḥ.
yathādeśaṁ yathākālaṁ yathāvasthaṁ ca śikṣayet.
Aquela Ciência Sagrada que deve ser disponibilizada para todas as pessoas desde o nascimento até a morte, de acordo com as vicissitudes de lugar, tempo e circunstâncias.
2. धर्मं सनातनं शुद्धं प्रथ्यक्षं सार्वलौकिकम्।समभावैक्यफलदमिहाऽमुत्र च शङ्करम्॥dharmaṁ sanātanaṁ śuddhaṁ prathyakṣaṁ sārvalaukikam.
samabhāvaikya-phaladam-ihā'mutra ca śaṅkaram.
Cujo princípio regente (dharma) é eterno (sanātana), puro (śuddha), realizável, universal, frutífero e auspicioso, aqui, agora, e sempre, outorgando a suprema paz da fraternidade.
3. तद्धि शास्त्रं महात्मानो गीतेत्याहुर्विचक्षणाः।न वैष्णवमिदं शास्त्रं न शक्तं न च शांभवम्॥taddhi śāstraṁ mahātmāno gītetyāhurvicakṣaṇāḥ.
na vaiṣṇavam-idam śāstraṁ na śaktaṁ na ca śāṁbhavam.
É aclamada pelos Mahatmas como a ciência de que trata a Bhagavad Gītā [a Ciência da Meditação].
Esta Ciência Sagrada não é exclusivamente vaishnava, nem shakta, nem shambava3.
4. न बौद्धं न च काणादं न साम्ख्यं न च यौगिकम्।न तन्त्रं नैव वेदान्तं विशेषसमयं न च॥na bauddhaṁ na ca kāṇādaṁ na sāmkhyaṁ na ca yaugikam.
na tantraṁ naiva vedāntaṁ viśeṣasamayaṁ na Ca.
Nem budista, kanada, samkhya, ou yóguica,
Nem tantra, vedanta, ou qualquer outro credo em particular.
5. शुद्धं च तदिदं शास्त्रं स्तुवन्ति पूर्वसूरिणः।तस्मात्संसारिभिर्नित्यं संसेव्यं तदिदं भुवि॥śuddhaṁ ca tadidaṁ śāstraṁ stuvanti pūrvasūriṇaḥ|
tasmātsaṁsāribhirnityaṁ saṁsevyaṁ tadidaṁ bhuvi||
Os antigos Videntes exaltam esta Ciência Sagrada como universalista e pura. Portanto, ela pode ser cultivada e praticada por todos aqueles que almejam a libertação do ciclo de nascimento e morte.. (Bhagavān Nārada) 

N O T A S

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.
(2) São Teófono, o Recluso alcançou os mais elevados graus da esfera contemplativa e meditativa tendo formulado, inclusive, o seguinte “mantra”, que ficou conhecido na Igreja Ortodoxa com o nome de “oração de Jesus”: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, pecador.”
(3) Śiva é conhecido como Śāṃbhu (aquele que existe como felicidade e bem-estar);  sua esposa, Śāṃbhavī. Os devotos de Śiva são chamados śambhavās (shambavas).

Rio de Janeiro, 17.10.18.
(Atualizado em 11.11.23.) 

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