![]() |
1. Introdução — Entre o Divã e o Assento da Consciência
O surgimento da psicanálise, ao final do século XIX, marca um ponto de inflexão na história da relação do Ocidente com o sofrimento humano. Em um contexto de crescente secularização, onde o questionamento da fé e a ênfase na razão individual ganhavam força, Freud, neurologista e homem de seu tempo, transformou o antigo confessionário religioso no novo divã secular, transferindo o espaço da busca pela redenção para o espaço da análise do desejo reprimido.
Neste contexto, propõe-se uma reflexão radical: a psicanálise, apesar de sua agudeza diagnóstica, permanece prisioneira do AUM — o som das formas transitórias — sem jamais tocar o OM, o silêncio da Essência, a vibração primordial da realidade.
Em contraposição, a Bhagavad Gītā, um texto milenar de profunda sabedoria espiritual, muito antes de Freud, apresenta um manual de anti-psicanálise espiritual: o Śraddhā Yoga. Ali, não se busca interpretar os sintomas da carência; busca-se reconduzir a consciência ao seu assento sagrado, à sua origem sintrópica.
Este ensaio visa, portanto, estabelecer um diálogo crítico e criativo entre esses dois paradigmas: o divã da memória e o assento da consciência.
2. Freud, Lacan e o Ateísmo Subjacente
Freud constrói a psicanálise a partir de uma convicção inabalável, ecoando uma visão materialista que emerge de um contexto cultural pós-religioso: não existe alma imortal, não existe Ser transcendente. Existe apenas o jogo tenso entre as pulsões, o ego e a cultura. Assim, o sofrimento humano é reduzido a uma equação biográfico-biólogica, onde desejo e repressão explicam tudo. Essa perspectiva, paradoxalmente, reflete a influência de um mundo onde a fé tradicional perdeu espaço para uma ênfase na razão e na experiência individual.
Lacan, por sua vez, radicaliza essa ruptura. Para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem — linguagem que nunca toca o real do Ser, mas apenas gira em torno da falta, uma ausência fundamental que ecoa a perda de uma conexão primordial. Seu "sujeito do inconsciente" é, última instância, um ser carente, eternamente exilado de si.
Ambos, Freud e Lacan, recusam a experiência da Presença. Ambos herdam a lógica do mundo do pós-deus bíblico, marcada pelo trauma do surgimento do cogito e pela falência da fé medieval. Assim, ante a dificuldade do ocidente em contemplar o sagrado de forma laica e não dogmática, optou-se pela substituição da fé, oração e reverência, pela interpretação e resignação. A psicanálise, nesse sentido, torna-se o estoicismo do inconsciente: uma prática de ajustamento às pulsões e à realidade, sem transcendência, sem Ātman, embora busque, dentro de suas limitações ontológicas, aliviar o sofrimento humano.
Enquanto a Bhagavad Gītā ensina que o Ser verdadeiro está para além da mente e dos desejos, a psicanálise afirma que não há nada além das tramas do desejo. Esta é a sua grande cegueira metafísica.
3. A Psicanálise como Estoicismo do Inconsciente
A psicanálise, como o estoicismo antigo, busca a reconciliação do ser humano com sua condição limitada. Ambos aceitam o sofrimento como dado inexorável, e propõem uma adaptação racional ou simbólica à sua inevitabilidade. Contudo, ambos parecem ausentar-se da percepção intuitiva da interconexão fundamental da existência.
O estoico esforça-se para alinhar sua vontade à ordem imanente do Logos; o paciente psicanalítico é convidado a reconhecer a estrutura inconsciente que atravessa seus desejos, resignando-se ao jogo da falta. Nenhum dos dois, porém, ousa ultrapassar a própria moldura: a razão para o estoico, o inconsciente para o psicanalista. Ambos ajustam a consciência à razão da existência fenomênica, mas não vislumbram o amoroso sentimento intuitivo que dá vida e percepção corporal à unidade da natureza, da qual somos parte.
O Śraddhā Yoga propõe outra via: não se trata de aceitar o inconsciente como destino, mas de educar a mente, para que ela se torne nossa serva e não o nosso Senhor. Conforme afirmam as tradições do oriente, a mente pode ser tanto a sua melhor amiga como a maior inimiga. É a diferença entre ajustar-se à luz do Espírito amoroso que reside no coração, por meio da confiança sintropicamente orientada ao Ser e a prisão de quem se encontra alienado e vê em sua cegueira o seu sentido de liberdade. O Śraddhā Yoga busca transformar a mente de inimiga em amiga através de práticas que cultivam a confiança e a conexão com a Essência. A psicanálise, como o estoicismo do inconsciente, é uma arte de sobreviver no samsāra. O Śraddhā Yoga é a arte de despertar para o que sempre esteve além dele, a genuína liberdade.
4. A Limitação Fundamental: O Ausente Ātman
No coração da psicanálise repousa uma ausência estrutural: a do Ātman. O ser profundo, a centelha da consciência absoluta, é silenciado desde o início. Essa ausência impacta profundamente a compreensão do ser e do sofrimento dentro da teoria psicanalítica, limitando a visão da potencialidade humana para além das dinâmicas psíquicas. O inconsciente, para Freud, é apenas o repositório dos desejos reprimidos; para Lacan, é o efeito da linguagem. Nenhum vislumbra o Ser como presença imanente e transcendente.
A psicanálise gira em torno da falta: falta de objeto, falta de ser, falta de completude. Toda sua arquitetura repousa na suposição de que somos, essencialmente, carência. Em contraste, a Bhagavad Gītā afirma: "O Ser nunca nasce nem morre; Ele é eterno, permanente e imutável" (BhG 2.20). Essa visão oferece uma perspectiva radicalmente diferente sobre a natureza do ser e do sofrimento.
A anti-psicanálise do Śraddhā Yoga reconhece o sofrimento, mas não o absolutiza. Em vez de girar em torno do vazio, ela orienta a consciência para a plenitude sempre presente no fundo do ser, através de práticas contemplativas e de entrega à busca de maestria sobre todas as ações como a forma mais bem acabada de meditação. A superação do sofrimento não é mera adaptação, mas realização: é a lembrança do que fomos, somos e seremos, além de toda história pessoal, uma reconexão com a nossa verdadeira natureza, onde nos reconhecemos instrumentos da práxis divina.
Enquanto a psicanálise se ocupa de decifrar a história do sofrimento, o Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā propõe transcender essa história pelo reconhecimento da Presença eterna.
Na Bhagavad Gītā, a consciência não é produto da matéria, mas expressão do Ser, contrastando com a visão materialista muitas vezes subjacente à psicanálise. A verdadeira cura não consiste em ajustar-se ao inconsciente, mas em superá-lo pela subordinação da mente à luz do Espírito, que é puro Amor, o Ātman, cujo símbolo é o coração.
O divã investiga os sintomas. O assento da consciência medita na Essência, buscando o silêncio do ego, a quietude além do turbilhão mental. A psicanálise trata a dor como um mistério insolúvel. A Bhagavad Gītā revela a dor como sintoma da separação ilusória entre o jīva (alma individual) e o Ātman (Ser Supremo).
Por isso, o caminho proposto pela Bhagavad Gītā é prático e iluminador: cultivar Śraddhā — a confiança ardente — através do Saṅkalpa (voto ou intenção firme), de Ṛṣinyāsa (posse da luz dos Ṛṣis, a internalização da sabedoria dos sábios), de Viniyoga (adaptação ativa e aplicação dos princípios), de Satya Tyāga (abandono do falso) e de Upasthāna (gratidão reverente ou presença consciente). O Śraddhā Yoga não interpreta sonhos. Ele desperta a consciência para a realidade última.
6. Vedānta, Budismo e Estoicismo: Um Quadro Comparativo
Para compreender melhor a singularidade do Śraddhā Yoga em relação à psicanálise e ao estoicismo, é necessário contrastá-lo também com outras tradições espirituais, como o Vedānta e o Budismo.
O Vedānta proclama que o Ātman é idêntico ao Brahman: não somos corpos errantes, mas expressões da Consciência Suprema. O Budismo, especialmente em sua forma Theravāda e inicial, reconhece o sofrimento (dukkha), mas propõe sua cessão através da realização da impermanência e da vacuidade, uma abordagem que difere da busca pela plenitude inerente ao Śraddhā Yoga. O estoicismo, por outro lado, compartilha com o Budismo a ênfase no desapego e na aceitação do destino, mas carece de uma transcendência plena: para o estoico, o Logos é imanente ao cosmos, não transcendental.
A psicanálise, à sua maneira, compartilha algo com o estoicismo: ambos aceitam a condição humana como limitada e ajustável, mas não transformável em sua essência.
O Śraddhā Yoga, contudo, almeja mais: não apenas resignação ou compreensão simbólica do sofrimento, mas transcendência real da condição fenomênica através da redescoberta do Ser. Essa transcendência vai além da mera aceitação ou análise intelectual.
Assim, enquanto o estoicismo e a psicanálise são terapias do samsāra, o Śraddhā Yoga é o caminho para sua ultrapassagem.
A psicanálise ensinou a humanidade moderna a escutar suas dores. Mas ao restringir o horizonte às tramas do inconsciente, permaneceu girando no ciclo do samsāra, sem revelar a existência da porta aberta para o jardim da transcendência, um espaço de paz e plenitude que reside além das limitações da mente.
A Bhagavad Gītā, através do Śraddhā Yoga, ensina algo mais: não apenas a escutar o sofrimento, mas a ultrapassá-lo pela escuta do Ātman, a centelha divina que jamais foi ferida. Enquanto a psicanálise navega nos mares da angústia, a Bhagavad Gītā convida a cruzar o oceano da existência fenomênica e a repousar no Ser. É a diferença entre diagnosticar as ondas e reconhecer o oceano.
A verdadeira anti-psicanálise é, pois, o cultivo da Śraddhā: a confiança ativa na inteligência sintrópica do universo, que guia o ser humano da carência para a plenitude, da história pessoal para a presença eterna.
O Śraddhā Yoga Svatantra é a arte de atravessar o AUM (o universo manifesto) e repousar no OM (a realidade última e silenciosa). Não como crença, mas como experiência viva. Assim, onde a psicanálise vê sintomas a serem analisados, o Śraddhā Yoga vê sementes prontas para florescer no jardim da Essência. Esse jardim além do divã não é um sonho; é a realidade silenciosa que nos espera, sempre que, em humildade e coragem, repousamos a mente no coração.
Próximo texto: Entre Édipo e Arjuna: A Tragédia Grega e o Épico Indiano como Caminhos da Consciência
Rio de Janeiro, 27.04.25
Nenhum comentário:
Postar um comentário