2023-04-03

AS BASES DA ARTE E DA CIÊNCIA DA MEDITAÇÃO: do conceito védico de Ṛta ao contemporâneo conceito de Sintropia

A arte e a ciência da meditação desenvolvem-se em torno da compreensão da relação entre o observador e a coisa observada. No pequeno texto medieval Dṛg-Dṛśya-Viveka, atribuído por alguns a Adi Śaṅkarācārya, temos a seguinte descrição do observador e da coisa observada:

Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então o Espírito, a Testemunha (Sākṣī), se revela o verdadeiro observador.

A espinha dorsal que constituiu a arte e a ciência da meditação, desde as suas origens védicas, estabelecidas a partir do conceito de Ṛta, até o seu entendimento contemporâneo, fundado no conceito de sintropia, tem como base o conceito de sākṣī (sa, “com”; e akṣa, “centro da roda, olho”), “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (akṣa) permanece imóvel. O estado de Testemunha, Sākṣī, está expresso em três metáforas e três mantras principais, discutidos anteriormente, que expressam a capacidade meditativa de observar, impassivelmente, os eventos que fazem o mundo girar (veja aqui): (1) a metáfora dos dois pássaros; (2) a metáfora do cisne; (3) a metáfora da quadriga; (4) o mantra AUṂ (OṂ); (5) o Dhyāna Mantra Haṃsa; e (6) o mantra OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA. Em última análise, como veremos a seguir, o Dhyāna Mantra Haṃsa, por si só, nos possibilita compreender o desenvolvimento da arte e da ciência da meditação desde as suas origens védicas até o presente.

O Dhyāna Mantra Haṃsa

As Escrituras Sagradas afirmam que a chave para a harmonização da mente está na compreensão profunda da inspiração (pūraka) e da expiração (rechaca). A mente e o processo de respiração representam dois aspectos da Consciência, estreitamente relacionados entre si. A respiração irregular, típica da mente inquieta, é também fonte de inquietação. O foco na observação da respiração, no início das práticas de meditação, nos leva a acalmar a mente.

Segundo as Escrituras védicas, a inspiração faz o som “haṃ” e a expiração, o som “sa”. "Haṃ-sa" representa, desta forma, o mantra natural do processo de respiração. O tempo zero entre a inspiração e a expiração caracteriza o espaço interior conhecido como a morada do Ser em nós. Entre os movimentos contrários de inspiração e expiração ocorre uma fração de segundo, de não-movimento, como nos pêndulos, que antes de mudarem de sentido, param completamente por um instante. É nesse instante de quietude, entre os sons produzidos na inspiração (haṃ) e na expiração (sa), que ocorre a unificação dos campos interno e externo do ser. Nesse momento em que a respiração permanece suspensa, antes de cada inspiração, o Ser se manifesta no silêncio. Esse lugar de repouso entre a inspiração e a expiração simboliza o mesmo espaço interior que se revela entre dois pensamentos. É a morada da Consciência, o instante entre o pensamento que termina e o novo que surge.

Desde as primeiras Upaniṣades a concepção de Haṃsa (cisne, símbolo do Espírito) é utilizada pelos yogis em sentido místico para designar o casamento do “eu” (ahaṃ) com o espírito universal “ele/ela” (saḥ). Em função das regras gramaticais do sânscrito (sandhi: saḥ + ahaṃ = so 'haṃ), quando a expressão “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)” é repetida em sequência, o que ouvimos é “... haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ...” tal qual temos no processo da respiração. Com a prática consciente da respiração, como expressão do Dhyāna Mantra Haṃsa, o ritmo da respiração desacelera, acalmando naturalmente a mente e fazendo com que ela se volte para o Ser, fazendo surgir a consciência de que “Eu sou Espirito” – “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)”.

Muitos místicos relacionam o Dhyāna Mantra Haṃsa com a região do corpo caloso do cérebro, que tem a forma de um cisne e se diz ser a área responsável pelas intuições e o desenvolvimento espiritual de uma pessoa. Da região do corpo caloso flui o líquido cérebro-espinhal por onde ascenderia, quando estimulada pelas práticas de meditação, a energia kuṇḍalinī, que conduz aos estados de êxtase, ou samādhi. 

Ṛta e Sintropia

O que surge primeiro, o sentimento ou o pensamento? A arte e a ciência da meditação partem do princípio de que o sentimento intuitivo está na origem do processo de formação de uma ideia. Quando alinhamos a razão com o coração, o conhecimento com a boa prática, fazemos emergir o sentimento intuitivo, que se apresenta como uma espécie de convicção interior e, logo, como uma certeza inquestionável.  Segundo o Ṛgveda, a expressão maior do sentimento intuitivo da verdade é Ṛta (ordem cósmica, sintropia, lei, verdade), a lei geral da necessidade, que regula a operação do cosmos e de todas as coisas. Os conceitos de dharma (lei, sagrado, espiritualidade) e karma (o princípio espiritual de causa e efeito que rege as ações), discutidos na Bhagavad Gītā, derivam de Ṛta, o axioma fundamental do conhecimento védico (Brahmavidyā). A sintonia com Ṛta conduz aos distintos “dheyas”, ou objetos de reflexão de cada ciência. O hábito de operar no mundo cultivando (bhāvana) esta sintonia, nos conduz aos estados contemplativos de meditação (dhyāna), culminando no êxtase da realização espiritual (Brahma-Prāpti).

Nós não somos movidos pelas ideias, mas sim pelos sentimentos. A vida é uma sucessão de sentimentos. Os conceitos podem ser apreendidos pelas máquinas. As pessoas pensam porque sentem, e não o contrário. São os sentimentos que acionam os pensamentos e as ações. O ser humano contém, em si mesmo, o potencial e as chaves para superar os limites da razão tecnicista e lidar, satisfatoriamente, com as contradições da modernidade e da pós-modernidade.

As emoções (ou paixões) surgem dos estímulos do universo material, que nos chegam pelos cinco sentidos e provocam prazer e dor. O fogo queima, um insulto ofende etc. O amor e os sentimentos intuitivos superiores, de outro lado, surgem do nosso próprio espírito e expressam a essência do que realmente somos. A sede dos sentimentos e das intuições superiores parece ficar em um espaço mais sutil da mente, ao qual se costuma referir, metaforicamente, como o coração. Deste coração viria, portanto, a força criativa que aciona o pensamento. Ou seja, toda a ação seria motivada por uma emoção ou por um sentimento que, após aflorar e ser experimentado, ficaria registrado na mente sob a forma de pensamento. É sob esta perspectiva sintrópica, que respeita os ciclos da natureza, que reconhecemos o Planeta Terra como um ser vivo, regido pelas relações baseadas no altruísmo biológico e na cooperação. A sintropia expressa esta tendência de superação e, consequentemente, de convergência em direção à unidade e síntese, presente no movimento (tropos) dos ciclos naturais da vida. A ação sintrópica parte do princípio de que as instituições humanas e o próprio Planeta Terra se constituem como seres vivos e sagrados. Segundo esta consciência sintrópica, a saúde de qualquer organismo não depende unicamente do tratamento dado a ele como indivíduo e sim como parte de um ecossistema maior e suas relações ecológicas intraespecíficas (entre membros de grupos que cooperam entre si e/ou disputam pelos mesmos recursos e oportunidades, formando colônias e sociedades) e interespecíficas (entre membros de diferentes grupos, capazes de trabalhar de forma não predatória, não parasitária, ou seja, de forma que uns tragam benefícios aos outros).

Tanto na ciência como nas artes de um modo geral, a intuição superior não é uma coisa que surge do nada, sem esforço, estudo e dedicação. Pelo contrário, ela está diretamente relacionada com uma mente alinhada e iluminada pela luz natural do coração. Quando a mente silencia, tudo se ilumina, conforme sugere a célebre frase de Einstein "penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho no silêncio e eis que a verdade me aparece". Quando a razão se deixa iluminar pela luz natural do coração, o sentimento intuitivo sintrópico preenche a alma e faz surgir na mente o pensamento, ou o plano que necessita ser executado.

A sintropia, em suma, expressa, em linguagem contemporânea aquela tendência de convergência em direção à unidade e síntese (syn), descritas na literatura védica a partir de Ṛta, e que estão presentes no movimento (tropos) dos ciclos naturais da vida. Agir de forma sintrópica significa estar atento aos sentimentos superiores, que promovem a prosperidade, a paz e a harmonia do ambiente onde nos inserimos e do seu entorno. E é exatamente esta capacidade que se visa desenvolver e otimizar com as práticas de meditação.

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima

O Dhyāna Mantra Haṃsa nos remete à consciência de que o alento vital é a alma do universo. Ele desperta em nós a consciência de que quando vemos o mundo como sagrado, o mundo se revela o nosso maior guru. Essa visão centra-se na precedência do sentimento sobre o pensamento e no poder do sentimento para iluminar os ditames da razão. O Dhyāna Mantra Haṃsa nos lembra do processo natural de escuta do coração, reconectando-nos com o aspecto de sagrado (bhāvana), oculto em todas as experiências do mundo. Ele nos revela que o processo natural de meditação é sintrópico e tem a capacidade de induzir, ou favorecer, o florescimento de novos organismos sintrópicos. A sua perspectiva sintrópica nos ensina que primeiro temos que nos comprometer com as mudanças interiores. Quando a consciência sintrópica se instala, passamos a agir segundo a máxima da ética espiritualista: “primeiro ser, depois fazer e, só então, dizer”. E é a partir de então que a nossa meditação, verdadeiramente, floresce. 

O praticante de meditação não trabalha para ninguém a não ser para silenciar o ego e realizar a si próprio. O seu objetivo é trazer à mente o amoroso sentimento sintrópico (Bhāvana), capaz de nos conduzir do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica. E, neste processo de renúncia interior, ele termina por beneficiar a todos à sua volta, pois, antes de dizer, ele faz; e antes de fazer, ele se torna aquela mudança para melhor que deseja, verdadeiramente, para si e para o mundo. Quando meditamos desenvolvemos a capacidade regenerativa de agir pelo coração, segundo os sentimentos intuitivos sintrópicos, e mantendo a razão egoica inativa. Desenvolvemos, em síntese, a capacidade de agir, de forma sincrônica e sinergética, segundo a consciência sintrópica que rege, ocultamente, a vida do universo.

Sob as aparências da caótica e entrópica realidade do universo material, escondem-se as leis da realidade sintrópica, que faz do mundo uma grande universidade – a universidade onde aprimoramos os valores que nos conduzem ao coração do mundo e ao encontro com nós mesmos. Desde a revolução ecológica dos anos sessenta vários esforços têm sido feitos no campo das ciências e da filosofia para equacionar esta escuta sintrópica do coração. Os resultados destes esforços já começam a ser materializados em distintas áreas do saber. O amor, por exemplo, aparece em Humberto Maturana como o fundamento do ser social. Maturana (Biología del fenómeno social, 1985). 

Maturana define um sistema social como aquele onde a vida dos membros do sistema é conservada a partir do comportamento individual de cada membro, fundado na cooperação. O amor seria o responsável pelo processo de socialização humana e a sua ausência representaria a desintegração total da sociedade. O sentimento, portanto, serviria de luz, guia e inspiração para que a razão pudesse manter a sua direção cooperativa, conforme afirmam também as ancestrais Escrituras Sagradas. Sem essa luz do coração, a razão fica desprovida de vida, a sua lógica torna-se presa dos mecanismos e estratégias, fundados no entendimento da vida como um mero espaço para a sobrevivência e a competição. Torna-se inorgânica e incapaz, portanto, de lidar adequadamente com o poético, o simbólico e com toda a sabedoria dos mitos e das suas teogonias. 

Desta forma, em suma, as ancestrais práticas de meditação mostram-se cada vez mais atuais, levando-nos a compreender que é o coração, e não a razão, que nos permite perceber a vida e o universo como uma espécie de poema cósmico, onde o solo, os rios, a água, o ar que respiramos e a própria vida aparecem como partes de um todo sagrado e em perfeito equilíbrio.


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