2016-10-15

A Meditação segundo a Bhagavad Gītā

Bhagavad1 Gītā2 desenvolve a arte e a ciência da meditação sob a forma de um diálogo que tem como espinha dorsal o conceito de śraddhā – o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Śraddhā representa o Princípio da Confiança e da Prudência expresso no cogito cartesiano. Representa a razão esclarecida pelo coração tranquilo e pelo sorriso interior que orientam e aferem a conduta do herói em sua jornada. Denota, portanto, o processo racional e dialético para se alcançar o "estado de testemunha", este entendido como o resultado do encontro com as verdades últimas e o sagrado revelado nas Escrituras, fruto da superação da vontade e da fé exterior.

Há sete virtudes principais segundo os teólogos da Igreja Católica: Prudência, Justiça, Temperança, Coragem, Fé, Esperança e Compaixão. Como nos alerta o Senhor Buda3, a fé sem prudência não conduz à realização final. Do mesmo modo, nos alerta a ciência moderna, a fé sem prudência está em contradição com a razão. A única fé digna deste nome, portanto, é a fé da razão esclarecida, ou seja, aquela fé interior, ou fé-em-si-mesmo, que se traduz como um sentimento e que contém como subprodutos todas as sete virtudes principais definidas pela Igreja. Esta fé-em-si-mesmo, que está em consonância com os requisitos do Senhor Buda, corresponde ao que, na  Bhagavad Gītā4, se denomina como śraddhā – aquele poder que empodera tudo mais, possibilitando-nos compreender a vida toda como sagrada.

Śraddhā opera como o termômetro espiritual da faculdade da vontade. Marca característica daqueles que já experimentam daquilo que antes era mero objeto de crença, śraddhā representa não a espera, mas o estado de encontro, ou descoberta da essência do real, de onde se origina a certeza interior. Enquanto a fé caracteriza os devotos (bhaktas) que, embora creiam no sagrado, o ignoram; śraddhā, a o sentimento de convicção interior, ou fé em si mesmo, ao se constituir como fonte de certeza, caracteriza aqueles (bhaktas ou não) cujo saber funda-se tanto na ciência, como na experiência mística com o sagrado. Não é por outra razão que é incorreto traduzir śraddhā no texto da Bhagavad Gītā conforme o sentido teológico designado pelo termo “fé”, embora esta continue sendo a opção utilizada pelos tradutores desavisados.

Shankara, Hegel, Marx e a Bhagavad Gītā

Bhagavad Gītā vale-se do conceito de śraddhā como meio para expressar a síntese da tese védica da via da ação (karma-mārga) e da antítese das Upaniṣades da via da não-ação (jñāna-mārga, ou a via EXCLUSIVA do conhecimento). A novidade da Bhagavad Gītā, em relação à tradição védica, está precisamente neste argumento em torno da via da síntese do yoga (BhG 4.1). O nome em sânscrito para esta síntese dos opostos, que permite à Arjuna superar a sua ilusão inicial e compreender distintos pontos de vista sobre a filosofia do SER, é jñāna-karma-samuccaya-vāda, ou seja, a teoria sobre a síntese (sam-uccaya) dialética (vāda) entre a via da não-ação (ou do conhecimento, jñāna) e a via da ação (karma). Esta teoria admite como axioma fundamental, ou premissa metafísica, a Unidade do Absoluto, simbolizada nos três componentes do Praṇava OM:  A-U-M. Esta trindade deixa-se representar por distintos ternos, como:  (1) Ser, (2) não-Ser e (3) relação de vir-a-Ser; (1) Espírito, (2) Matéria e (3) Vida; (1) Tese, (2) Antítese, e (3) Síntese; (1) Nascimento, (2) Morte e (3) Vida; (1) Positivo, (2) Negativo e (3) Neutro; (1) Presente, (2) Passado e (3) Futuro; (1) Rajas (natureza explosiva), (2) Tamas (natureza inerte) e (3) Sattva (natureza harmoniosa); (1) Kriya (atividade), (2) Icchā  (vontade), e (3) Jñāna (conhecimento) e assim por diante.

O método dialético de Hegel, leitor e crítico ferrenho da Bhagavad Gītā, expressa algo da tese jñāna-karma-samuccaya-vāda. A relação de interdependência entre os três constituintes da Trindade A-U-M se dá em torno da ideia de que cada um deles representa a negação da diferença entre os outros dois, em sentido bem próximo ao pretendido pela dialética hegeliana.  O exemplo clássico que traduz a dialética hegeliana pode ser colocado nos seguintes termos: a (1) semente é a negação da (2) planta que desabrocha e, ainda assim, ambos (3) se relacionam e se identificam, pois a planta surge da semente tanto quanto a semente, da planta. Isto significa dizer que todas as oposições existem apenas de forma relativa. A Terra pode ser considerada grande, se comparada à Lua, e pequena, se comparada ao sol. Do mesmo modo, o Praṇava AUM, símbolo por excelência do sagrado, representa a negação da diferença entre o múltiplo, percebido em Saṁsāra (universo fenomenológico) e o absoluto experimentado em Nirvāṇa. A Fenomenologia do Espírito (1807) de Hegel segue um esquema próximo a este presente na Bhagavad Gītā, texto que ele desqualifica, embora pareça imitar. A diferença é que, enquanto a Bhagavad Gītā sustenta a realidade e concretude do mundo, Hegel privilegia um entendimento de um tipo de subjetividade que dissolve a concretude do mundo. Mais tarde, Marx, ao se dar conta deste abandono da matéria por parte de Hegel, inverte os termos da fenomenologia hegeliana, corrigindo, deste modo o seu "erro epistemológico" e dando ênfase à concretude e realidade do mundo objetivo.  Marx reinaugura, deste modo, a dialética do concreto, introduzida originariamente por Krishna  na Bhagavad Gītā, quando este introduz Arjuna a via de síntese dos opostos, o yoga que se expressa como jñāna-karma-samuccaya-vāda.

A jñāna-karma-samuccaya-vāda, uma das teses centrais da Bhagavad Gītā, é quase ignorada pelos especialistas contemporâneos em função das críticas de Shankara (séc. VIII), como se sabe, um ardoroso defensor da tese rival, conhecida como “Kevala-Sāṁkhya” – a via exclusiva do conhecimento.  O comentário de Shankara à Bhagavad Gītā nada mais representa que uma estratégia desesperada de desqualificar o “Śuddha Sāṁkhya”, representado pela jñāna-karma-samuccaya-vāda. Esta discussão aparece, em especial, nos argumentos que Shankara apresenta na glosa ao verso BhG 18.17, quando procura minimizar o fato de Krishna estar pedindo à Arjuna para não renunciar à via da ação. Séculos se passaram e nem mesmo a crítica de Ramanuja (séc. XII) ao Kevala-Sāṁkhya de Shankara conseguiu resgatar plenamente o Śuddha Sāṁkhya. Somente nas últimas décadas, com os primeiros autores do incipiente neo-Vedanta, como Yogananda, Vivekananda, Aurobindo, Tilak, Gandhi, S. Radhakrishnan e, principalmente, Bhagavan Das, surgiram os primeiros movimentos nesse sentido. Como se sabe, Shankara rejeitava a jñāna-karma-samuccaya-vāda porque se filiava ao Kevala Sāṁkhya, que vê o mundo como ilusório (māyā). A ação no campo do ilusório, obviamente, não pode ter valor. O Śuddha Samkhya, entretanto, embora admita que as nossas percepções sejam enganosas, insiste na realidade do mundo e, consequentemente, na importância da práxis.

Se a Bhagavad Gītā tem início com Arjuna insistindo em renunciar à via da ação e afirmando o seu desejo de seguir o Kevala Sāṁkhya, ao longo do diálogo, Krishna o convence da superioridade do Suddha Sāṁkhya, expresso na jñāna-karma-samuccaya-vāda. Ilusão (māyā), ensina a Bhagavad Gītā, é acreditar que os opostos sejam mutuamente exclusivos, quando, em verdade, são complementares. Daí a convocação de Krishna para que Arjuna se engaje na luta dialética do concreto, com o ego (ahaṅkāra) sob o domínio e controle do coração (Ātman).

Quando executada a partir do coração (Ātman), desapegadamente e com ardoroso amor (śraddhā), toda ação torna-se, de certa forma, não-ação, pois quem se consagra (tyāga) ao Ser, deixa de ser agente, torna-se instrumento. Logo, submeter-se ao Ser que reside no coração (Ātman, Krishna, etc.) é o que nos libera para agir, pois nesse caso, agimos como se não estivéssemos agindo, livres dos impulsos da nossa personalidade egoica.

Arjuna, o príncipe guerreiro em seu processo externo (pravṛtti), e Arjuna, o discípulo em busca de auto-realização (nivṛtti), alcançam a unificação por meio da disciplina de síntese (yoga), que nada mais significa que estabelecer-se no coração (Ātman) para, a partir daí, agir pleno de amor. E é a revelação de Krishna para Arjuna deste puro (śuddha) yoga que se entende como jñāna-karma-samuccaya-vāda na Bhagavad Gītā.

Svatantra5: a genuína liberdade dos verdadeiros mestres

Krishna revela a Arjuna na Bhagavad Gītā o ancestral Śraddhā Yoga, superior aos demais yogas, chamados, conjuntamente, de yoga-garbhatva, ou seja, yogas em fase de gestação. Diferentemente destes, que representavam apenas sistemas acessórios (upacāra), o puro Krishna Yoga tem como marca característica o exercício da liberdade em todas as suas etapas, conforme a natureza e idiossincrasia (svabhāva) de cada praticante. Esta liberdade, característica do Śraddhā Yoga, contraria a disciplina rígida e inflexível dos sistemas que postulavam a sujeição absoluta a um guru. Estes orientavam os discípulos a cada passo, segundo um código de etiqueta que regulava como cada um deveria se comportar. Denomina-se a este tipo de relação e dependência absoluta a um guru externo como paratantra. O diálogo de Krishna com Arjuna é uma crítica a esses sistemas de yoga. De um lado, pode-se dizer que a maioria dos gurus e instrutores ainda desconhecem o sentido e a essência do ensinamento de Krishna acerca da genuína liberdade (svatantra), característica de todo o diálogo de coração a coração (saṃvāda). Por outro lado, contudo, também é verdade que o svatantra de Krishna influenciou os ensinamentos das mais distintas escolas de yoga, suavizando, consequentemente, o rigor autocrático, característico dos Instrutores Espirituais e dos seus respectivos códigos de etiqueta (veja aqui um exemplo). Em muitos casos, os iogues de tais sistemas submetiam-se a várias torturas e sacrifícios inúteis, permanecendo totalmente incapazes de apreciar a ampla liberdade que caracteriza o puro e autêntico Yoga. O Śraddhā Yoga revelado por Krishna na Bhagavad Gītā só pode ser plenamente compreendido por aquelas pessoas que cultivam a escuta do Serbhāvana, libertando-se de  toda a ideia de separatividade.

Política Brasileira e o Sonho Profético de Dom Bosco
Dom Bosco (1815-1888), Co-Patrono de Brasília.
Aclamado por João Paulo II o "Pai e Mestre da Juventude"

Ācārya-paramparā-vandanam:

Saudação (vandanam) aos mestres espirituais (Ācārya) das distintas tradições religiosas (paramparā)

***

अस्मत् गुरुभ्यो नमः।
Asmat gurubhyo namaḥ.

अस्मत् परमगुरुभ्यो नमः।
Asmat parama-gurubhyo namaḥ.

अस्मत् सर्वगुरुभ्यो नमः॥
Asmat sarva-gurubhyo namaḥ.

Saudações aos mestres,
Saudações aos mestres dos mestres,
Saudações a todos os mestres.

***

Em celebração ao Dia do Professor, hoje (15.10.16), publico as primeiras reflexões que irão dar forma ao compêndio sobre a arte e a ciência da meditação segundo a Bhagavad Gītā". Pretendo utilizar este instrumento para refletir sobre o desenvolvimento: (1) da pedagogia maiêutica, oposta às atuais tecnologias da deseducação; e (2) da arte e da ciência da meditação, as duas vigas mestras da nascente Cultura Sintrópica da qual somos colaboradores. Nossa missão é contribuir para materializar o plano revelado a Dom Bosco em seu famoso Sonho Profético e fazer florescer no coração do Brasil o berço da civilização sintrópica.

Foi  em um 15 de outubro que D. Pedro I baixou o Decreto Imperial que criou o Ensino Elementar no Brasil (1827). Cento e vinte anos mais tarde, em 1947, aconteceu o primeiro encontro de docentes. Nascia então a ideia de se reservar o dia 15 de outubro para o estabelecimento de encontros anuais de professores, estudantes e pais, com o intuito de se discutir os rumos da educação no Brasil. Em 1948 um projeto de lei da educadora Antonieta de Barros institui o Dia do Professor e o feriado nesta data no Estado de Santa Catarina. Alguns anos mais tarde, em 14 de outubro de 1963, o presidente João Goulart assinaria o Decreto Federal 52.682, que oficializa o dia 15 de outubro como feriado escolar com a seguinte justificativa: "Para comemorar condignamente o Dia do Professor, os estabelecimentos de ensino farão promover solenidades, em que se enalteça a função do mestre na sociedade moderna, fazendo participar os alunos e as famílias".

Quando chegamos ao Rio, em janeiro de 1991, Cássia e eu ainda não sabíamos exatamente porque estávamos vindo para cá e não para São Paulo, de onde partíramos para nos juntar ao projeto pioneiro desenvolvido por Francisco Barreto, em Sergipe. Pouco tempo depois, entre 3 e 14 de junho de 1992, aconteceria aqui, vinte anos após a realização da primeira conferência sobre o meio ambiente, em Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a ECO 92. Representantes de cento e setenta e oito países reuniram-se para refletir sobre as medidas que deveriam ser tomadas para se reverter o processo de degradação ambiental e garantir às gerações a possibilidade de uma existência digna. Soube naquele momento que não fora acidental a nossa vinda para o Rio de Janeiro. O vídeo abaixo, com o discurso ainda tão atual de Severn Cullis-Suzuki, de 12 anos de idade, durante a ECO 92, ilustra este nosso ideal de materializar a Filosofia Sintrópica na práxis. Alguns anos mais tarde,  durante o período em que residi no Canadá, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o pai dela, David Suzuki, que mantinha um programa de grande audiência no Canadá sobre o tema "The Nature of Things". Cássia e eu ficamos, inclusive, de divulgar os seus vídeos educativos aqui no Brasil. Mas naquela época era tudo mais difícil e não conseguimos aprovar, junto à universidade, o projeto para  legendar os vídeos. Este estudo, de qualquer modo, nasce como uma forma de trabalhar por estes mesmos ideais universalistas, presentes nos mestres espirituais das distintas tradições religiosas.


N O T A S

(1) Para conhecer melhor como a Bhagavad Gītā está sendo interpretada aqui, veja também:  


(2) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

(3) "Não acredite em nada;
não importa onde você tenha lido,
ou quem tenha dito, nem mesmo se eu tiver dito,
a não ser que esteja de acordo com o que lhe revela
a sua própria razão quando iluminada pelo coração".
Esta é uma tradução livre de uma passagem do Kalama Sutta, onde se discutem as limitações da razão que não se deixa iluminar pelo coração.

Bhagavad Gītā editada pela organização externa Śuddha Dharma Maṇḍalam
Bhagavad Gītā editada pela organização religiosa

Śuddha Dharma Maṇḍalam

(4) Não fiz menção na tese à Bhagavad Gītā editada pela organização externa Śuddha Dharma Maṇḍalam senão indiretamente, em notas de rodapé, visto que o seu conteúdo é praticamente equivalente ao da Bhagavad Gītā de 700 versos. Além do mais, há um extenso debate na academia onde se questiona a autenticidade (veja aqui) da edição com 745 versos e vinte e seis capítulos. É o meu entendimento, de qualquer modo, que os dois textos da Bhagavad Gītā se complementam e que é impossível desqualificar qualquer um deles. Um tem valor histórico e foi utilizado por inúmeros sábios e santos de todos os séculos; o outro tem valor pedagógico – a sua metodologia elucida a essência mesma do texto. É também o meu entendimento que toda a controvérsia com a Bhagavad Gītā editada pelo Śuddha Dharma Maṇḍalam teria sido evitada se o texto tivesse sido apresentado como o que de fato é, um extrato da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā de Haṁsa YogiAs críticas que a Bhagavad Gītā de 745 versos, do Śuddha Dharma Maṇḍalam, tem recebido podem ser resumidas em dois pontos principais: (1) não foi encontrado um único manuscrito considerado autêntico sobre esta recensão; e (2) o texto nada mais faz que rearranjar os versos, renomear os capítulos e acrescentar outros versos do ​Mahābhārata. Trata-se, basicamente, do mesmo texto acrescido de algumas passagens do Mahābhārata (Hino a Durgā, etc.).


(5) O Instrutor Espiritual Sri Janardana trata deste assunto em diversas de suas cartas a Sri Vajra Yogi Dasa, seu discípulo, e em especial, daquela datada de 03.09.1959 e de posse da seção chilena da organização externa do Suddha Dharma Mandalam.


SUMÁRIO GERAL

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2016.

(Atualizado em 21.01.25)

2016-10-13

O que é a Ação (Karma) no contexto dos Seis Deveres Diários?

Krishna explica a Arjuna na Bhagavad Gītā como a prática fervorosa do conhecimento adquirido conduz à realização suprema.
Os Seis Componentes da Atividade Diária do Yogi
Krishna explica a Arjuna na Bhagavad Gītā como a prática fervorosa do conhecimento adquirido conduz à realização suprema. Tal disciplina, que pressupõe a renúncia (samnyāsa) ao fruto das ações e  o desligamento de todas as coisas que impedem a consagração de si mesmo à manifestação da Vontade Suprema, está representada no paradigmático verso BhG 18.66, que trata da genuína dedicação e entrega (satya tyāga) de si mesmo e, consequentemente, de todas as ações (karma), ao Supremo. Esta entrega ao Supremo tem sido expressa ao longo dos séculos dos mais variados modos pelas distintas religiões e sistemas de filosofia. Um exemplo clássico do hinduísmo é o que ocorre na passagem X.75 do Mānava Dharma Śāstra,  onde se descreve o Ṣaṭkarman – os seis componentes da atividade diária do discípulo:

अध्यापनमध्ययनं यजनं याजनं तथा।
दानं प्रतिग्रहश्चैव षटूकर्माण्यग्रजन्मनः॥
adhyāpanam/adhyayanaṁ yajanaṁ yājanaṁ tathā.
dānaṁ pratigrahaś/caiva ṣaṭūkarmāṇyagrajanmanaḥ.
(1) Estudo e (2) ensino; (3) realização de sacrifícios e
(4) condução de rituais; e a (5) realização e
(6) aceitação de doações são as seis principais atribuições das pessoas
de nascimento brâhmane.  (Mānava Dharma Śāstra X.75)

Satya Tyāga: a arte de despertar para a consciência sintrópica

Satya Tyāga representa, tanto a renúncia (samnyāsa) de todas as coisas que impedem a consagração (tyāga) de si mesmo à Vontade Suprema, como a dedicação plena às verdades (satya) experimentadas nesta relação de aproximação à Consciência Sintrópica Universal.

Conforme exposto no puro e ancestral Śraddhā Yoga de que trata a Bhagavad Gītā1, devemos nos consagrar (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúscula ação uma oportunidade de disciplina interior (tapas), sacrifício (yajña), e doação (dāna) de si mesmo. Este puro yoga, que quita as três dívidas espirituais (débito com a esfera das deidades das quais herdamos a nossa própria identidade espiritual; débito com os sacerdotes, gurus, sábios e santos que nos deixaram como herança cultural o conhecimento espiritual; e débito com os nossos ancestrais, que possibilitaram o nosso nascimento neste mundo), funda-se nas cinco formas do pensamento sintrópico, derivadas de śraddhā (a bússola do processo de meditação): Saṃkalpa, Ṛṣi-nyāsa, Viniyoga, Satya Tyāga e Upasthāna. Esta base quíntupla de śraddhā, que expressa os cinco pilares do dharma, orienta a disciplina quíntupla do pensamento  (cintā; pronuncia-se “tchintaa”):

2016-10-08

Prefácio: Uma obra em constante evolução ("A perennial work in progress")

Śraddhā-Yoga Dhyāna-Bindu Śrīmad Bhagavad-Gītā
O Sublime Canto do Senhor sobre o Śraddhā Yoga e a Ciência e a Arte do Amor em Ação

Śrī Kṛṣṇa Dvaipāyana Veda Vyāsa, compilador do Mahābhārata.
Natural de uma ilha do rio Yamuna, em Kalpi, é neto do
Rishi Vashistha e filho do asceta Parashara e Satyavati.

Em memória de todos os ancestrais da família.
Em memória de meu avô materno, Edison Barretto.
Em memória de minha avó paterna, Angelina Medicci.
Ele ensina aos filhos o amor às coisas do espírito.
Ela, a coragem para recomeçar no novo mundo.

Aos filhos que refletem sobre a obra dos pais.
Aos que não julgam, mas apenas mudam.
Aos que não mudam, mas apenas são.

E aos que sabem deixar de ser.
Enfim, a todos deste jardim,
Embaixo e acima dos
Edens da ilusão.
(10.12.2003)


***
Dedico este trabalho, com amor e  reverência,
a todos os grandes mestres da humanidade,
em especial, aos Gurudevas
Śrī Kṛṣṇa Dvaipāyana Veda Vyāsa, 
compilador do Mahābhārata, e
Śrī Haṁsa Yogi, o seu mais misterioso
e enigmático comentador.

Mentalizo em meu coração a imagem
de puro resplendor dos pés de lótus dos Mestres
 e me curvo, invocando a sua orientação para cruzar o 
oceano da ilusão e alcançar a intuição da verdade.

***
OM, Saudações aos Grandes Sábios e Santos.
Que haja bem estar em todos os mundos e planos.

औं नमः श्रीपरमर्षिभ्यो योगिभ्यः।
auṁ namaḥ śrī-parama-rṣibhyo yogibhyaḥ.
शुभमस्तु सर्वजगताम्॥
śubhamastu sarva-jagatām.

Saudações aos gurus,
Saudações aos gurus dos gurus,
Saudações a todos os gurus.

अस्मत् गुरुभ्यो नमः।
Asmat gurubhyo namaḥ.
अस्मत् परमगुरुभ्यो नमः।
Asmat parama-gurubhyo namaḥ.
अस्मत् सर्वगुरुभ्यो नमः॥
Asmat sarva-gurubhyo namaḥ.

OM     HRIM     ŚRIM     KLIM     AIM     SAUḤ
(OM ŚRĪ) YOGA DEVYAI NAMAḤ


OM TAT SAT
NAMASTÊ

***

2016-10-03

Ensaio Autobiográfico

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
Ashram Ātma
Até onde consigo me recordar, foi em 1972, após completar quinze anos de idade, que despertei para a espiritualidade pura e os valores do sagrado coração. Nesse ano, se não me falha a memória, assisti Siddhartha e, em seguida, li o livro homônimo de Hermann Hesse, que deu origem ao filme. A partir de Hermann Hesse, descobri Krishnamurti, Vivekananda e vários outros expoentes da Teosofia e do neo-Vedanta então em voga. Foi, contudo, por intermédio do meu falecido tio Sérgio Barretto, que vim a conhecer as práticas de meditação. Costumava passar as férias escolares em Ribeirão Preto e gostava de conversar sobre espiritualidade com ele. Percebendo o meu interesse crescente no assunto, ele logo me indicou o antigo Ashram Sarva Mangalam, dirigido pela Marinês Peçanha de Figueiredo e que funcionava em um casarão, na esquina da rua Aurélia com as ruas Heitor Penteado e Cerro Corá, no bairro da Pompéia, em São Paulo. Ali conheci o saudoso Sri Vajera, que estava de passagem pelo Brasil. Algumas semanas depois, mais precisamente em 25 de agosto de 1974, fui iniciado por ele no Śuddha Rāja Yoga. A partir desta data as práticas de meditação passaram a ocupar um lugar central em minha vida pessoal e acadêmica. É desta simbiose entre a teoria, entendida em seu sentido original, e a experiência pessoal com as práticas de meditação que pretendo tratar, brevemente, nas linhas que se seguem. O entendimento mais superficial e raso, que persiste até hoje, opondo de forma radical a teoria e a práxis, surge apenas com ​a filosofia do hilemorfismo,​ proposta por Aristóteles, segundo a qual todas as coisas ​seriam compostas, exclusivamente, de matéria (hyle) e forma (morphe)​.​ ​Para Aristóteles, a teoria representa a busca de conhecimento por mero prazer e deleite pessoal, enquanto a práxis envolve a aplicação dos conhecimentos teóricos em consonância com uma conduta moral e ética. A teoria estaria restrita ao domínio da forma; e a práxis, ao domínio da vida material. Originalmente, contudo, o termo grego "theoria" já denotava ​a ​contemplação ​amorosa ​e desapaixonada, acessível, unicamente, àqueles capazes de subjugar as suas emoções e desejos, de modo que o intelecto pudesse funcionar, na práxis, sob a luz do Espírito. 

Upasthāna: a via de síntese do puro Yoga

Śraddhā e a unidade essencial das religiões
(Interpretação de maio de 2004)
Este artigo encerra e conclui a serie dedicada à meditação na práxis do cotidiano. Não há um único texto da literatura sagrada que trate, explicitamente, desta classificação quíntupla do ritual de imersão na meditação na ação. A classificação aqui adotada (Saṃkalpa, Ṛṣi-nyāsa, Viniyoga, Satya Tyāga e Upasthāna) é oriunda da tradição oral  do Śraddhā Yoga e se funda em uma síntese de diferentes elementos do Yajña, encontrados na literatura védica. Tradicionalmente, os yajñas representam distintos rituais realizados diante do fogo (por exemplo: Agnihotra, Soma Yajna e Aśvamedha), geralmente acompanhados de mantras. Aqui o yajña é entendido, unicamente, como uma preparação interior para a comunhão com o sagrado, onde o fogo é internalizado para representar o fogo do sagrado coração. 

Upasthāna, dentro do contexto dos cinco movimentos (angas) conduzentes à meditação na ação, representa o momento em que nos encontramos aptos para dar início ao nosso dia, fazendo de cada minúscula ação uma meditação. Representa a conclusão, o agradecimento final e o momento culminante do processo de conexão espiritual que nos faz instrumentos e representantes da divindade em cada minúscula ação do dia-a-dia.

2016-10-02

Itihāsa: a mentoria segundo o cânone

A práxis sintrópica da filosofia do coração, revelada  na Bhagavad Gītā1, episódio central do Mahābhārata2, é discutida ao longo deste livro-blog a partir das experiências do autor. A cultura sintrópica não é algo que se transmite de forma passiva. Pelo contrário, é algo que se aprende de forma ativa quando se está disposto a ser o protagonista, na práxis, do seu próprio aprendizado. A maestria é antes uma habilidade prática que um conhecimento teórico. E o caminho para a maestria é feito de pequenos, mas constantes, passos. É deste entendimento que se segue a licença poética para utilizar o termo "Itihāsa" com o sentido de mentoria. "Itihāsa" indica, neste caso, o processo prático que objetiva emancipar o mentorado do seu mentor por meio da cultura sintrópica do Śraddhā Yoga, que se funda na arte e na ciência da meditação, expostas por Krishna na Bhagavad Gītā. 

A marca característica fundamental e distintiva dos Itihāsas (iti-ha-āsa: literalmente, "assim, de fato, se deu") é o fato destas narrativas de caráter histórico mitológico representarem relatos testemunhados diretamente pelo autor, presente na trama como personagem. Itihāsa representa um estilo de narrativa em versos, de certa forma, semelhante ao Os Lusíadas, de Camões. Neste grande poema épico (8.816 versos simples) sobre o povo Luso, Camões narra a viagem às Índias, por "mares nunca dantes navegados", dos argonautas portugueses liderados por Vasco da Gama, mesclando elementos de história, religião e mitologia.  Para a Igreja, o poema serve-se da mitologia e do "politeísmo" dos indianos, unicamente, com o intuito de manter as verdades da santa fé. Daí ela entender Os Lusíadas como um instrumento da fé cristã e do seu ideal evangelizador. Contudo, é inegável que a narrativa poética de Camões acrescenta ao espírito católico o sentido histórico mitológico do ecletismo religioso, presente na cultura grega e também nos Itihāsas indianos – compostos, fundamentalmente, pelo Rāmāyaṇa (24.000 versos duplos) e pelo Mahābhārata (100.000 versos duplos).

2016-10-01

O que é Sākṣī?

“Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser.
Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.”
(Ṛgveda 1.164.20 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1)
Sākṣī (sa, “com”; e akṣa, “centro da roda, olho”) significa, “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (aka) permanece imóvel. O estado de Testemunha, Sākṣī (pronuncia-se "sá-kshí"), expressa a capacidade de observar e sentir, impassivelmente, os eventos que fazem o mundo girar.