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“Quando sei quem sou, eu e você somos Um." (Hanumān, no Rāmāyaṇa) |
Este artigo marca uma inflexão teórica no desenvolvimento do Śraddhā Yoga Svatantra, ao apresentar os cinco pilares da prática como uma via espiritual que transcende o paradigma psicanalítico moderno.
Em vez de tratar os conflitos interiores como pulsões que precisam ser interpretadas, o Śraddhā Yoga propõe uma práxis sintrópica que antecipa as quedas e orienta o ser à luz da verdade interior (Ṛta).
Articulando de forma original cinco fundamentos1 do Śraddhā Yoga – saṃkalpa, ṛṣinyāsa, viniyoga, satya tyāga e upasthāna – , este ensaio ilumina também o ponto de interseção e ruptura entre bhakti e śraddhā, revelando como a confiança ardente e o sentimento intuitivo de certeza testada racionalmente (cogito) não depende da devoção à forma, mas da escuta silenciosa do Ser.
Entre as Quedas e a Ascensão
Há caminhos que nascem da carência — e outros, da confiança. Enquanto o desejo projeta sombras, śraddhā acende luzes. Entre a vertigem do impulso e a serenidade da presença, surge a escolha espiritual: caminhar com firmeza antes de cair.
Na tradição da psicanálise, o inconsciente é o campo onde os impulsos reprimidos moldam a conduta. O desejo, especialmente na forma de libido, é entendido como a força propulsora da subjetividade. Já o Śraddhā Yoga revelado na Bhagavad Gītā propõe outro paradigma: em vez de responder ao desejo, governa-o. Não se trata de sublimação, mas de transfiguração. É uma disciplina que se antecipa à queda, que age preventivamente como o corpo que se exercita antes da fratura. Trata-se de uma anti-psicanálise espiritual, que busca reconduzir o fogo interior ao seu altar sagrado. E é neste contexto que o Viniyoga se destaca como chave pedagógica essencial, estruturando a relação entre śreyas (o que é elevado, verdadeiro) e preyas (o que é fácil, desejável).
Viniyoga como Prática Formativa
Viniyoga é mais do que uma adaptação técnica das práticas espirituais: é uma postura existencial. Seu sentido vai além da recuperação após as quedas. Ele representa o treinamento gradual que prepara o ser para não cair. Assim como um idoso inicia exercícios para evitar futuras fraturas, o praticante se exercita na escuta, na disciplina, no autoestudo.
A pedagogia espiritual inclina-se como um ramo ao peso do fruto interior — adaptando-se ao tempo do praticante. Cada respiração, cada gesto, cada ação é calibrada pela sintonia com o prāṇa e com o ritmo do coração. É aqui que se forma a disposição interior para śreyas. E é aqui que começa a distinção entre bhakti e śraddhā.
Bhakti e Śraddhā: "Quando não sei quem sou..."
Há uma passagem no Rāmāyaṇa, no Livro da Beleza (Sundara Kāṇḍa) que ocorre quando Hanumān aparece diante de Rāma e Lakṣmaṇa após encontrar Sītā em Laṅkā, que originou uma citação amplamente difundida em contextos devocionais e espirituais contemporâneos. Ela é frequentemente atribuída a Hanumān para ilustrar os diferentes níveis de consciência espiritual. Rāma teria perguntado a Hanumān se ele era um homem ou um macaco. E Hanumān teria respondido: "Quando não sei quem sou, sou seu devoto (bhakta). Quando sei quem sou, eu e você somos Um."
Embora essa frase não tenha uma referência textual exata nas escrituras tradicionais, ela é utilizada por diversos mestres espirituais para expressar a profundidade da devoção de Hanumān e sua realização espiritual.
A primeira frase define bhakti: devoção à forma, ao nome, à pessoa que encarna o divino. A segunda frase define śraddhā: unificação com os princípios, com o Ṛta, com o dharma. Bhakti nasce da ausência; śraddhā, da presença. Bhakti clama; śraddhā sabe. Uma se ancora na forma; a outra, na essência que transcende toda forma.
Na Bhagavad Gītā, śraddhā está no centro. Bhakti é um de seus múltiplos aspectos. A Bhagavad Gītā não exalta a dependência emocional, mas o despertar interior da inteligência espiritual. Essa distinção entre bhakti e śraddhā também pode ser compreendida à luz das metáforas centrais do Śraddhā Yoga. A fala de Hanumān evoca o símbolo védico dos dois pássaros — um que se alimenta do fruto (o ego devoto) e outro que apenas observa (a pura consciência). Quando Hanumān diz “eu e você somos Um”, ele já não é mais apenas o pássaro que busca: ele se unificou no cisne (Haṃsa), símbolo da respiração iluminada e da consciência que sabe quem é. Assim, a frase de Hanumān sintetiza o próprio caminho do Śraddhā Yoga Svatantra: da devoção à presença; da busca à realização.
Materialismo e Sintropia: da Psicanálise ao Śraddhā Yoga
A psicanálise clássica, mesmo quando simbólica ou estruturalista, parte de uma base materialista: considera o id, o ego e o superego como produtos do corpo, da memória, da pulsão. O inconsciente é um efeito de camadas fisiológicas e sociais, onde o desejo é o motor do ser e o sofrimento o resultado de sua repressão ou frustração.
Já o Śraddhā Yoga parte de outro lugar. Ele não nasce da carência, mas da plenitude do Ser. Não busca satisfazer o desejo, mas orientar a energia vital (prāṇa) à luz da verdade (Ṛta). Seu fundamento é sintrópico: considera que há uma inteligência interior à vida, um ritmo cósmico ao qual podemos nos alinhar.
Na imagem da quadriga, a psicanálise observa o embate entre os cavalos (desejo) e as rédeas (superego), enquanto o Śraddhā Yoga vê a Gītopadeśa, alegoria da revelação de Krishna sobre o restabelecimento da soberania do condutor (kṣetrajña), que conduz a quadriga com firmeza e compaixão. A entropia do corpo não é negada, mas equilibrada pela sintropia do espírito.
Assim, a disciplina (tapas) não é repressão, mas o gesto de entregar as rédeas ao coração iluminado pelo dharma. A śraddhā não é crença cega, mas confiança na ordem sutil da realidade, que se revela a quem repousa a mente no coração — e age com lucidez e ternura. Dessa forma, o Śraddhā Yoga Svatantra não apenas supera a psicanálise — ele a transcende com ternura e rigor.
Conclusão — A Flor que Ascende
O Śraddhā Yoga Svatantra revela uma nova compreensão da alma humana. Não como um feixe de impulsos contraditórios à espera de conciliação, mas como uma centelha da inteligência cósmica que deseja reencontrar seu ritmo originário. Ao contrário da psicanálise, que busca elaborar o conflito entre corpo e cultura, o Śraddhā Yoga busca harmonizar o corpo com o espírito, a quadriga com o condutor, a vontade com a verdade. Ele não se limita a tratar feridas: ele as previne, cultivando desde cedo a disposição sintropicamente orientada ao bem, ao belo e ao justo.
Essa é a força silenciosa da śraddhā: não dominar pela repressão, mas elevar pela boa vontade e ardor do coração. Não apagar o desejo, mas transmutá-lo em gesto sagrado. Esse é o florescimento espiritual que a Bhagavad Gītā aponta — não como crença, mas como caminho. Não como submissão, mas como liberdade. E assim, a flor, embalada pelo sopro da śraddhā, revela-se em sua flor-essência — pura presença que exala o perfume do Ser.
Apêndice: Os Cinco Fundamentos do Śraddhā Yoga
1. Saṃkalpa — O Grande Voto (Mahā Saṃkalpa) de escolher śreyas sobre preyas. Aqui nasce a disciplina como sacramento.
2. Ṛṣinyāsa — A alegria de ser, antes de fazer. Estado de paz onde o praticante é tomado pela luz dos ṛṣis, sem perder sua liberdade.
3. Viniyoga — A retomada consciente da sintonia com a luz do coração. É a prática que previne a queda, adapta, fortalece e reencaminha.
4. Satya Tyāga — A entrega do falso ao fogo da verdade. O abandono não das formas externas apenas, mas das ilusões internas.
5. Upasthāna — A gratidão como retorno. A postura de reverência à graça divina, que nos guia mesmo nos desvios.
Este quinteto forma um ciclo. Ele não se fecha: ele respira como o sopro do universo, em espiral ascendente. É a espiral da disciplina vivida como liberdade, Svatantra.
Próximo texto: A Psicanálise como Fruto do Ateísmo Judaico-Cristão: A Anti-Psicanálise como uma Expressão do Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā
Rio de Janeiro, 25.04.25
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