Este texto é o quarto da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020).
Há sete virtudes principais segundo os teólogos da Igreja Católica: Prudência, Justiça, Temperança, Coragem, Fé, Esperança e Compaixão. Como nos alerta o Senhor Buda[2], a fé sem prudência não conduz à realização final. Do mesmo modo, nos alerta a ciência moderna, a fé sem prudência está em contradição com a razão. A única fé digna deste nome, portanto, é aquela fé interior, fé-em-si-mesmo, que se traduz como um sentimento e que contém como subprodutos as sete virtudes principais. Este sentimento da verdade, de fé-em-si-mesmo, que está em consonância com os requisitos do Senhor Buda, corresponde ao que, na Bhagavad Gītā, se denomina śraddhā. Não é por outra razão que é incorreto traduzir śraddhā no texto da Bhagavad Gītā segundo o sentido teológico designado pelo termo “fé”, embora esta continue sendo a opção utilizada pelos tradutores desavisados. A dúvida metódica e o livre pensar, que constituem o método científico e que no ocidente somente se iniciam com Descartes, constituem marcas características do diálogo da Bhagavad Gītā. O método científico e a própria ciência moderna nascem como negação da ciência religiosa fundada na mera fé. A fé (fides) representa algo de que não se pode duvidar; representa algo em que se deve acreditar, mesmo na ausência do sentimento e dos motivos racionais para tal. Fé é sempre uma crença em algo exterior a si mesmo. Exemplo: “tenho fé (fides) nas verdades da Igreja”. Já a arte de duvidar instala-se a partir de Descartes (1596-1650), quando este se vale do direito quase herético de duvidar metodicamente para, a partir daí, alcançar a primeira certeza (cogito ergo sum – penso, logo existo), superando, consequentemente, o paradigma medieval expresso como “fides quaerens intellectum” (a fé como o pressuposto do conhecimento). Bacon (1561-1626), de outro lado, formula em seu Novum Organum (1620) as etapas envolvidas na investigação científica: observação empírica, formulação de uma hipótese, experimentação e uma conclusão sobre a validade ou não da hipótese.
Śraddhā não se dissocia da ciência, pois não se traduz em dogma de fé, nem se opõe ao pleno funcionamento da razão. Isto porque śraddhā representa o sentimento sintrópico, próprio da dimensão subjetiva da experiência humana. Não se refere a nenhuma classe de ações em particular, mas à atitude do sujeito. Śraddhā decorre de um sentimento que desabrocha no sujeito, quando este coloca o coração naquilo que acredita. Esta particularidade do conceito expresso pelo termo śraddhā permite argumentar, por exemplo, que as críticas avassaladoras que Wittgenstein faz em relação aos discursos de fé[3], em nada ameaçam os discursos fundados em śraddhā – pelo contrário, funcionam até como contraprovas, que os validam. Śraddhā representa os Princípios da Confiança e da Prudência, unificados no cogito cartesiano. Constituindo-se como o elemento característico, a um só tempo, tanto da ciência, como das distintas expressões de fé religiosa, śraddhā representa a principal categoria para se compreender a unificação da ciência e da espiritualidade. Eventualmente, por intermédio de śraddhā, aprendemos a identificar o que constitui a ciência – e isto representa uma forma contemporânea de expressar o que pretendia Santo Anselmo quando cunhou a expressão “fides quaerens intellectum” para definir o paradigma da “ciência” de sua época. Ao se substituir na expressão de Santo Anselmo o termo bíblico fides (fé), refutado pela ciência moderna, pelo termo śraddhā, o resultado é a expressão categórica “śraddhā quaerens intellectum”, que não está em contradição com a razão, nem com o que entendemos como “espiritual”. Em consequência, a expressão “śraddhā quaerens intellectum”, além de corrigir e, em certa medida, salvar o edifício aristotélico-tomista, corroído com a derrocada do paradigma medieval – “fides quaerens intellectum” –, ainda confirma o “cogito ergo sum”, sobre o qual se construiu a modernidade e se reinaugurou – ao menos no ocidente – aquele império da consciência, sugerido na inscrição das paredes do templo de Apolo, em Delfos: “gnothi seauton” – conhece-te a ti mesmo.
Para ilustrar como o conceito śraddhā está na base do edifício da nova ciência, basta considerar, brevemente, as ideias do filósofo Arne Naess, criador da ecologia profunda. Naess argumenta que o modelo de ciência vigente seria responsável, em grande parte, pela crise socioambiental. Em seu Ecology, Community and Lifestyle (1989), Naess admite ter se valido do sentido de verdade presente na Bhagavad Gītā para construir a filosofia monista que fundamenta a sua ciência ecológica. Naess vale-se de alguns dos versos da Bhagavad Gītā[4] para dar suporte ao conceito de Ātman, que elegera como a pedra fundamental do seu edifício, conforme definido em BhG 6.29: “Quem se harmoniza por meio do yoga percebe a presença de Ātman em todos os seres e de todos os seres em Ātman”.
Espiritualidade, sob quaisquer circunstâncias, pressupõe śraddhā. Além do mais, o entendimento de śraddhā como um sentimento sintrópico sugere a reconciliação da razão e do sentimento – este serviria de luz, guia e inspiração para que a razão pudesse manter a sua boa direção. Daí o dizer de Blaise Pascal, “O coração tem razões que a própria razão desconhece... Nós compreendemos a verdade, não simplesmente pela razão, mas pelo coração”.
[2] O Senhor Buda discute no Kālāma
Sutta as limitações da razão que não se deixa iluminar pelo coração.
O termo pali śaddhā
é o equivalente do budismo para śraddhā conforme entendida na Bhagavad Gītā. Não é incomum os
budistas argumentarem que enquanto as demais religiões se fundam na fé, no
budismo a ênfase está em examinar as evidências disponíveis antes de se colocar
o coração no caminho.
[3] Ver o
artigo de Kai Nielsen, “Wittgensteinian Fideism”. Philosophy
v. 42 1967, 191-209 [reprinted in The Philosophy of Wittgenstein v. 14.
Aesthetics, Ethics, and Religion), edited by J. Canfield].
[4] BhG 2.48, 2.71, 3.19, 3.27, 3.30, 4.17-23.
5.7, 5.18, 5.24-25 e 6.29-.32.
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