2018-06-10

O Diário dos Sonhos e a Presença dos Ancestrais

Todas as verdades passam por três estágios.
Primeiro,elas são ridicularizadas. Segundo, recebem violenta oposição.
Terceiro, elas são aceitas como auto-evidentes.
Pseudo-Schopenhauer
Faz parte de todas as tradições sagradas guardar a memória e prestar homenagens aos ancestrais. O vídeo abaixo, da série “Diário dos Sonhos”, exemplifica como as forças do passado, simbolizada pelos nossos ancestrais, materializam e moldam o presente. É no mundo dos sonhos onde a memória dos ancestrais se apresenta com mais realidade. Nos sonhos, tudo se dá como se todos fôssemos uns partes dos outros, formando grandes famílias, tal como se formam as galáxias e os seus percursos. Como se o trabalho do agora não fosse mais que uma antiga obra sendo resgatada por meio de linguagens ancestrais, codificadas pelo amor. Talvez por isto mesmo, deixara registradas no diário algumas reflexões sobre a presença dos ancestrais em nossas vidas, conforme descrevo a seguir.


Corria o ano de 2003 quando fui convidado por um amigo Espírita a refletir sobre a estranha e pouco conhecida relação da intuição, ou inspiração, na elaboração de obras associadas ao sagrado. Àquela época, não tinha condições de dar início ao desafio de redigir uma dissertação, que contemplasse o tópico de minha tese acadêmica e, ao mesmo tempo, respeitasse e valorizasse aquela expressão do sagrado que tanto me fascinava. Tinha consciência dos riscos da empreitada e das críticas que sofreria. Era comum entre acadêmicos, e figuras das principais religiões ocidentais, a crença de que estudos elogiosos aos textos religiosos orientais apenas expressavam uma forma de fé ingênua, ou orientalismo, caracterizada pela falta de racionalidade e representando, portanto, apenas os frutos de um romantismo compreendido como “intelectualmente inferior”. Ainda que relutante, aceitei o convite deste amigo para tomar o livro com o qual havia há pouco me presenteado como uma oportunidade para relaxar e refletir sobre o método mais adequado à redação daquela tese. 

Não sendo eu mesmo um praticante da doutrina Espírita, custou-me um pouco a ir me familiarizando com aquela linguagem e a tomar gosto pelo texto de Nos Domínios da Mediunidade (Francisco C. Xavier, pelo Espírito André Luiz, 29 ed., Rio de Janeiro: FEB, 2002, 285p.). Segundo o autor, a mente funcionaria como um aparelho radiofônico, podendo coletar todas as espécies de ondas (p. 108), de modo que a própria mediunidade nada mais representaria que uma interpretação da “sintonia” estabelecida com certas forças e campos pelos quais cada um se afina em maior ou menor proporção (p. 109).  Por questão de costume e hábito, tal “sintonia” expressaria principalmente o que percebemos através dos órgãos de audição e visão. O médium, entretanto, ouviria e veria por meio da mente.  Os sonhos representariam a maior prova de que podemos ver e ouvir, sem que estejamos nos utilizando dos olhos e ouvidos (cabe ressaltar que, segundo a ciência, a visão deve-se ao órgão da visão, e não à mente).  A mente selecionaria “o que é visto’ e “o que é ouvido” de acordo com o grau de sintonia de cada médium, ou seja, de acordo com a sua capacidade de concentrar a atenção. Aquilo que o médium perceberia como constituindo o campo do real dependeria, portanto, desta capacidade mental de ver e ouvir, que lhe possibilitaria ter os limites de sua experiência alargada. Foi tão somente quando cheguei ao vigésimo terceiro capítulo que me senti capturado pelo texto. Experimentei uma estranha sensação de bem estar. Minhas mãos estavam um pouco frias e senti vontade de escrever nas bordas das páginas do texto as seguintes palavras: “este foi o tópico do seu primeiro exercício literário [sobre a arte de amar], transformado no livro Síndrome do Pânico – Aprendendo com a Pedagogia da Dor (Rio de Janeiro: Litteris Editora, 1998, 117p.) – não há dor sem razão”. Destaquei no texto a frase “as vantagens do perdão e a conveniência da humildade e da prece” (p.219), e ouvi dentro de mim: “aqui se encontra o modo como você os desenvolve”. Enquanto seguia com a leitura, algumas palavras iam se destacando do texto, convocando aquela voz silenciosa a prosseguir: “esta é a confissão que você fez ante você mesmo”. As palavras do personagem Aulus pareciam dar vida a outro personagem, que me dirigia diretamente a palavra:
Analisando este pretérito, ao qual estamos todos ligados por meio da memória, reconhecemo-nos enfermos em assistência recíproca. Estão simbolizadas aí todas as suas catarses! Foi assim que você acordou o passado de tantas vidas. Veja como as entrelinhas desta página ocultam o seu próprio aprendizado de refletir sobre as experiências da consciência, quando você sequer reconhecia aquele desespero que o atormentava. Acreditava que ele fosse apenas reflexo do desespero daqueles a quem buscava amparar e ajudar. Registre aqui a data de hoje, dia em que guiei a sua mão, introduzindo-o nos mistérios da técnica que o levará a oferecer uma sólida interpretação da Bhagavad Gītā a partir da tese da centralidade de śraddhā no texto.
As Noúres
Embora relutante, assim o fiz e escrevi naquele exemplar de Nos Domínios da Mediunidade, “23.06.03”. Recebera uma chave, mas ainda não sabia que se tratava da técnica das Noúres, (neologismo formado a partir de duas palavras gregas: "nous", pensamento; e "rhéo", fluir), de que fala Pietro Ubaldi, ou seja, a ancestral técnica védica utilizada pelos Rishis (videntes) na elaboração de textos sagrados, conhecida como Ṛṣi-nyāsa1 (a invocação e internalização arquetípica de uma divindade). 

Era plena madrugada e eu sabia que não podia parar a leitura daquele capitulo do texto de Chico Xavier, que começara a ler sem muita vontade, apenas por obrigação, para depois poder me justificar com o amigo que o havia me dado como presente, com muitos elogios e recomendações.  Ante o desânimo e as dificuldades enfrentadas para dar inicio à redação da tese, aquela voz dentro de mim, mas surgida da narrativa de Chico Xavier, pelo Espírito André Luiz, me alertava agora sobre o fenômeno da xenogossia, que já havia possibilitado inclusive a um monoglota tratar de termos em sânscrito. Era possível que mesmo “um médium analfabeto” se pusesse “a escrever”, pois, segundo a Doutrina Espírita2, “o psicógrafo traz consigo, de outras encarnações, a arte da escrita” que fica “retida no arquivo da memória, cujos centros o companheiro desencarnado consegue manobrar.”

Segui assim com a leitura do texto até que certa irritação tomou conta de mim. Não sei ao certo por quanto tempo me deixei ficar naquele estado. Estava com sono e pensava em ir me deitar, quando aquela voz em mim misturou-se com a narrativa do texto, me aconselhando: 
Não se perturbe... Continue! Não desanime. Todos viemos aqui para expiar – uns em realidades mais densas; outros noutras mais sutis. Confie... Não se esqueça das presenças-ausentes. São as mais verdadeiras. Atuam à distância. Ausentes, mas presentes... Ao ler este texto com o coração aberto, você me reencontrou. Surjo da sua pena. Sou a sua consciência que se desperta. Sou abrangente, ilimitada no tempo e no espaço. Aqui onde Eu Sou tudo é luz. E ainda assim, de tudo, somos meros aprendizes. Aprende, amigo, o serviço nobre. Não se creia em desamparo. Não se deixe trair pela sua inteligência e erudição. Lembre-se do seu avô Edison Barretto, que tanto lhe admirava, e agora, ainda mais lhe admira. Era Espírita e deixou como herança essa cultura familiar, que lhe facilita a abertura e a sintonia com os canais de acesso aos seres divinos que nos deram origem, simbolizados em nossos ancestrais, e descritos como Pitṛs (Pais) na seção do Mahābhārata conhecida como Hari-vaṃśa (a descendência divina). É por meio da reverência e respeito aos nossos ancestrais, de fato, que acessamos as nossas raízes divinas e a nossa origem sagrada. É por meio dos ancestrais que compreendemos não haver desamparo na criação.  É do seu avô que você emprestará os conceitos da filosofia Espírita que desconhece, mas que correm, consciente ou inconscientemente, nas veias de todos os descendentes desta sua linhagem. Que o seu texto, do mesmo modo e acima de tudo, não trate senão daquilo que você já vive.
Segui com a leitura e ia já avançando pela página 232, quando, outra vez, ouvi de mim mesmo:
O enfrentamento e a superação do medo, como aqui descritos, já foram, parcialmente, alcançados por você com o exercício da redação e a publicação do seu primeiro livro. Sobre as páginas associadas ao medo, agora, nada a temer. Sim, seu primeiro texto tangenciou as noúres e as suas páginas futuras registrarão experiências importantíssimas, riquíssimas, onde o sentimento de solidão e medo já não terá lugar. Conforme registrou em seu diário da consciência, “seu destino é falar cada vez menos e escrever cada vez com maior rigor e precisão”. Mesmo que você já não considere isto importante, você verá que tudo tem uma razão de ser. Atenda a este chamado. Cumpra o desafio como preparação para a redação da tese, pois, como sabemos, a natureza não dá saltos. Na paz e na guerra, sigamos firmes e com o devido cuidado para não apressar a natureza das coisas. Todos os objetos acham-se fortemente magnetizados por aqueles que os possuíram e a intuição, aqui entendida como psicometria, nos possibilita acessar e ler o registro destas impressões. Do mesmo modo, tudo o que faz vibrar o nosso coração tem o poder de nos colocar em sintonia com as noúres dos grandes Rishis.
Assim como o personagem Aulus de Chico Xavier auscultava a voz silenciosa da mente dos enfermos que visitava, eu deveria auscultar esta voz enquanto me debruçava nos textos sagrados. Como exercício para me familiarizar com a técnica, a ideia era produzir um texto “não acadêmico”, guiado pela intuição, procurando simplesmente entrar em “sintonia” com a esfera dos Rishis que utilizaram a figura arquetípica da deusa Śraddhā para tratar de śraddhā nos Vedas. Neste exercício de aprendizagem da técnica, que antecedeu o período de redação da tese, dei ouvido àquela voz que me orientava a produzir uma apostila, um livrinho simples, introduzindo a leitura que eu fazia da Bhagavad Gītā aos leitores de Chico Xavier, Pietro Ubaldi e Ramatis, que, juntos, representavam a ponte tropicalista que ligava o Brasil à Índia. Pouco tempo depois de terminar a leitura do livro, iniciei a redação de uma série de pequenos ensaios para entrar em sintonia com as noúres de onde emana a sabedoria da Bhagavad Gītā. Durante este período era comum aflorarem as imagens de meus ancestrais. E elas vinham carregadas de mais realidade e carga emotiva que as simples lembranças. Em especial, sentia muito forte a presença do meu avô materno, Edison Barretto, espiritualista dos pioneiros. Poeta, cronista, ensaísta, escrevia com pseudônimos para vários jornais e jamais quis ser publicado. Sabia argumentar como jamais pude. Quando eu era ainda adolescente, introduziu-me a Eça de Queiroz, explicando-me as sutilezas de O Crime do Padre Amaro. De moral kardecista, levava-me a compreender que formamos grandes famílias, como se todos fôssemos uns partes dos outros, pois vínhamos a este mundo uns pelos outros. Era como se este meu exercício com as noúres fosse apenas o seu próprio exercício que continuava por nosso intermédio – já havia sido retomado pelos filhos (dentre eles, Sérgio Barretto, com quem muito aprendi) e, agora, o estava sendo também pelos netos. Como se ele estivesse a me propor o trabalho de agora como uma antiga obra de muitos outros autores, inclusive ele e os seus filhos, e que estava sendo retomada por meio desta rede neuronal da qual eu representava outro elo. 

No dia 10.12.2003, no frio inverno de Hamilton, ON, Canadá, concluí aquela série de ensaios preliminares e percebi que havia encontrado também o método para a redação acadêmica e rigorosa de uma tese de doutorado assumidamente romântica. Naquela mesma data redigi a seguinte dedicatória àquela série, objeto de reflexão deste e dos próximos textos do presente capítulo:

Em memória de todos os ancestrais da família.
Em memória de meu avô materno, Edison Barretto.
Em memória de minha avó paterna, Angelina Medicci.
Ele ensina aos filhos o amor às coisas do espírito.
Ela, a coragem para recomeçar no novo mundo.

Aos filhos que refletem sobre a obra dos pais.
Aos que não julgam, mas apenas mudam.
Aos que não mudam, mas apenas são.

E aos que sabem deixar de ser.
Enfim, a todos deste jardim,
Embaixo e acima dos
Edens da ilusão.

N O T A S

(1) Ṛṣi-nyāsa também expressa a capacidade de fazer de toda atividade uma Invocação de unificação, no coração, com a energia cósmica do Ser Supremo (brahma-śakti), que se manifesta nos seres humanos como śraddhā. Esta energia aparece personificada no Ṛgveda como a deidade Śraddhā, que, no  épico Mahābhārata, é invocada em seu aspecto de Durgā (Invencível) por Arjuna, em conformidade com a orientação de Krishna. Como consequência e expressão de Ṛṣi-nyāsa nasce, então, o próprio diálogo da Bhagavad Gītā.
(2) Ver LM, 2a. Parte, Cap. XIX, Q. 18-19. Submeti este série para leitura e apreciação do amigo que me presenteara com o texto de Chico Xavier e ele não apenas leu, como comentou meu texto, conforme veremos, sempre que possível fazendo referência às obras da Codificação Espírita, segundo a convenção que se segue:
1. De Allan Kardec:
LE: O Livro dos Espíritos, 70 ed., RJ, FEB, 1999, 494p.;
LM: O Livro dos Médiuns, 71 ed., RJ, FEB, 2003, 488 p.;
CI: O Céu e o Inferno, 41 ed., RJ, FEB, 1997, 425 p.;
ESE: O Evangelho Segundo o Espiritismo, 119 ed., RJ, FEB, 2002, 435 p.;
A Gênese: A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo, 39ed., RJ, FEB, 2000, 423p.; e
O que é o Espiritismo?, 38 ed., RJ, FEB, 1997, 217p.
2. De Francisco Cândido Xavier:
A Caminho da Luz, pelo Espírito Emmanuel, 25 ed. RJ, FEB, 2000, 218p.;
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, pelo Espírito Humberto de Campos, 23 ed., RJ, FEB, 1998, 238 p.; e
O Consolador, pelo Espírito Emmanuel, 25 ed., RJ, FEB, 1997, 233p.
3. Fez referência ainda aos seguintes textos:
As Vidas de Chico Xavier, M. Souto Maior, 2 ed., SP, Ed. Planeta do Brasil, 2003, 271p.;
Joana D’Arc: Médium, Léon Denis, 18 ed., trad. Guillon Ribeiro, RJ, FEB, 314p.; e
Ressurreição e Vida, Y. A. Pereira, pelo Espírito León Tolstoi, 10 ed., RJ, FEB, 1996, 314p.



Rio de Janeiro, 10 de junho de 2018.
(Atualizado em 17.05.21)

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