2019-01-08

Movimentos de Convergência: (5) Norman O. Brown e a abertura para o mistério

Movimentos de Convergência: (5) Norman O. Brown e a Abertura para o MistérioLuiz Carlos Maciel foi introduzido ao pensamento de Norman O. Brown, (veja aqui) por meio de seu colega, o jornalista Sérgio Augusto, que lhe indicou o livro Life against Death. Maciel, entusiasmado com o texto, convenceu a Rose Marie Muraro a propor a tradução do texto para a Ed. Vozes, de Petrópolis, que o editou com o título Vida contra Morte: uma interpretação psicoanalítica da história. Trata-se do único livro de Norman O. Brown traduzido para o Português. O subtítulo traz os dois elementos constitutivos da síntese pretendida no texto: a história, o elemento marxista, de esquerda; e o elemento de direita, a interpretação psicoanalítica, freudiana, do inconsciente.

Brown desenvolve, com o apoio de Marcuse, com quem, de início, se dava muito bem, a  teoria que identifica o centro genital como o núcleo de poder equivalente ao exercido pela classe dominante em uma sociedade. Segundo esta teoria, a solução para os problemas sociais começa com a dissolução desse centro e a erotização do corpo todo, de tal forma que o indivíduo humano possa sentir prazer em tudo o que realiza. Surge daí o uso da expressão perversão polimórfica, não para estigmatizar o indivíduo, mas, pelo contrário, para sinalizar a libertação individual do jugo do centro genital e, portanto, também da autoridade social. Ele compara dois instintos definidos por Freud: os princípios do prazer (que designamos como Preyas) e o da morte (simbolizada por Śraddhā [acento oxítono) – o princípio da confiança e da prudência –, o tema central  deste estudo1 e que representa a marca característica de Śrāddha [acento paroxítono], o último rito de passagem da vida material). 
O princípio do prazer é controlado pela realidade: o objetivo do ser humano é ter prazer sempre, mas a realidade o impede. Marcuse já havia feito uma crítica a este princípio da realidade afirmando que, na verdade, Freud estava tratando de um princípio de desempenho. Em nossa sociedade o indivíduo, para não ser excluído, tem a obrigação de desempenhar bem o papel que lhe é atribuído. Brown e Marcuse concordavam que a alienação era a causa da infelicidade, insatisfação e opressão humana. Marcuse e Brown divergiram quanto à origem desta alienação e sobre as formas de sua superação. Marcuse, partindo de Marx, conclui que a origem da alienação do homem vem da repressão dos instintos e da negação do prazer. Para ele, que participara da Escola de Frankfurt, a repressão teria bases históricas, sendo, inclusive, um mal necessário, para se coibir os excessos que levariam o homem a se destruir. Brown, que se interessava por teatro e pelas filosofias orientais, seguindo Freud, considera que a causa da repressão não é tanto histórica e sim psíquica, tendo como base a consciência e o medo da morte. A história do homem seria, portanto, a luta entre a vida e a morte. O temor à morte originaria o estado de repressão. Para superá-lo, haveria que se aceitar a morte como algo natural. A vida deveria ser vivida sem o desejo de sublimá-la, conforme defendia Marcuse, e sim como uma etapa de um processo de natureza mais biológica que histórica. Para Brown, a verdade, o Ser, estava no mistério, na magia das culturas primitivas. Brown e Marcuse romperam após esta polêmica que surgiu em 1966 quando Brown lançou Love's Body (O Corpo do Amor), que pretendia dar resposta ao problema da alienação.  O livro trata do corpo ressurreto, um corpo de perversão polimórfica e, ao mesmo tempo, místico, pois unifica o imanente e o transcendente. Brown aprofunda esta discussão em Apocalypse and/or Metamorphosis (Apocalipse e/ou Metamorfose). Nesta coletânea de ensaios ele discute as concepções monoteístas das tradições islâmicas e judaico-cristãs e o pensamento dionisíaco, considerado a partir da economia do desperdício de Georges Bataille. Argumenta que as massas só se unificarão quando forem recompensadas com um nível de consumo semelhante ao das classes dominantes.

O último capítulo de Vida contra a Morte, A Ressurreição do Corpo, já aponta para o seu afastamento de Marcuse. Para Brown, imanência e transcendência são uma coisa só, do mesmo modo que Nirvana e Samsara também o são para o movimento budista. Ele se vale de um exemplo muito interessante para esclarecer esta ideia de que tudo, afinal, é Um. Discute a passagem bíblica em que os apóstolos tentam afastar um grupo de crianças que queria se aproximar de Jesus, que lhes diz: “deixai vir a mim os pequeninos porque deles é o Reino dos Céus” (Mateus 19:14). Para Brown, esta passagem não diz respeito, unicamente, à inocência da infância, mas, principalmente, ao estado de consciência da unidade: o reino dos céus é experimentado pelas crianças porque elas ainda não se habituaram ao dualismo, ou seja, a cisão entre sujeito e objeto. Elas vivem uma realidade lúdica, plenamente dionisíaca. Esta realidade é tanto imanente (captada pelos sentidos) como transcendente (puramente espiritual e abstrata), constituindo uma coisa só. Daí ele aderir, neste primeiro livro, a Dioniso, a figura arquetípica do transe, da embriaguês dos sentidos e da loucura.

 A mensagem libertária que há em Norman O. Brown impactou os jovens, constituindo o que a mídia chamou de contracultura: a valorização do pensamento mágico e a visão poética das coisas. Para ele as pessoas desejariam, simplesmente, ter acesso aos bens, não desejavam uma ditadura do proletariado ou uma sociedade de uma única classe. Heidegger, de modo semelhante, em sua critica da filosofia ocidental, já assinalara este advento deste novo pensar poetante, marca característica do movimento hippie.

N O T A S

(1) De acordo com a Bhagavad Gītā a sabedoria ióguica (prajñā; oriunda de buddhi-yoga) manifesta-se de forma objetiva como a capacidade de agir no mundo com maestria (yoga), ou seja, em conformidade com a precedência dos anseios superiores (Śreyas) sobre aqueles de origem emocional (Preyas) (BhG 2.49 e 2.50 e BhG 2.58 a 2.67). Daí a importância de se reconhecer e avaliar corretamente, em cada minúsculo movimento da consciência, a fonte dos estímulos e dos motivos que orientam a nossa conduta. Cada trabalho que realizamos, cada pensamento que estimulamos, produz uma impressão mental chamada saṃskāra e é a soma total de tais impressões que chamamos de caráter. Logo, o caráter é obra de cada um. No dizer de Aristóteles, para o bem ou para o mal, o homem se torna aquilo que ele repete repetidas vezes repetidamente.

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