2022-12-17

Sobre a natureza da meditação

É possível introduzir a discussão sobre as origens e o desenvolvimento da arte e da ciência da meditação tomando como base de referência a reflexão feita por Krishna no texto da Bhagavad Gītā sobre o significado do praṇava1 AUṂ. Foi este pressuposto que nos permitiu formatar a nova disciplina sobre meditação e o próprio livro-blog a partir de três metáforas e três mantras principais: (1) a metáfora dos dois pássaros; (2) a metáfora do cisne; (3) a metáfora da quadriga; (4) o mantra AUṂ (OṂ); (5) o mantra Haṃsa; e (6) o mantra OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA

O praṇava AUṂ simboliza o modo conforme o universo (saṃsāra) se origina e permanece em Brahman. Ele expressa o conteúdo dos principais aforismos (mahāvākyas) da literatura védica, em especial, aqueles que constam da Chāndogya Upaniṣad: “sarvaṃ khalv-idaṃ brahma” – "Tudo isto é o Ser" (ChU 3.14.1) e “Tat tvam asi ” – “Tu próprio és o Ser" (ChU 6.8.7), que fundamentam a estrutura epistemológica dos argumentos de Krishna no texto.

Bhagavad Gītā afirma que o Ser e o não-Ser estão em estado latente em Brahman (BhG 15.16-7). Por isto se diz que ela lida com a ciência do devir. Ela explica o Ser (sat), o não-Ser (asat) e o vir-a-Ser (sva-bhāva) por meio da análise e da síntese dos constituintes de AUṂ (geralmente escrito OṂ), a sílaba sagrada e o mantra de Brahman. De acordo com o Atharva Veda, o “A” denota o Espírito; o “U”, a matéria; e o M, a relação de afirmação e negação simultânea que existe entre esses dois termos. Está implícito no AUṂ a ideia de que śraddhā é o terceiro constituinte (Ṃ), que compõe toda pessoa (Jīva), a partir da relação do Espírito (A) com a matéria (U). A trindade (AUṂ) é realizada como o Um (OṂ). O símbolo AUṂ conota os estados de multiplicidade e de unidade de Brahman. Meditar significa desenvolver o sentimento sintrópico (śraddhā) de identidade com o triúno praṇava OṂ (AUṂ), que se deixa representar por distintos ternos, como: (1) Ser, (2) não-Ser e (3) relação de vir-a-Ser; (1) Espírito, (2) Matéria e (3) Vida; (1) Tese, (2) Antítese, e (3) Síntese; (1) Nascimento, (2) Morte e (3) Vida; (1) Positivo, (2) Negativo e (3) Neutro; (1) Presente, (2) Passado e (3) Futuro; (1) Rajas (natureza explosiva), (2) Tamas (natureza inerte) e (3) Sattva (natureza harmoniosa); (1) Kriya (atividade), (2) Icchā  (vontade), e (3) Jñāna (conhecimento) e assim por diante. O Praṇava AUṂ, símbolo por excelência do sagrado, representa a negação da diferença entre o múltiplo, percebido em Saṁsāra (universo fenomenológico) e o absoluto experimentado em Nirvāṇa. AUṂ indica esta verdade sagrada, tendo cada uma de suas letras um significado oriundo do método conhecido como akṣaramudrā, ou diagrama de selo de letras. A palavra "praṇava" é um nome para o som AUṂ. Significa, etimologicamente, “aquilo que renova, faz novo”. O som onomatopeico OṂ é cheio de significado. Representa o ruído de fundo do universo em expansão, o som primordial da natureza e o seu próprio alento vital. 

O iogue, de mente disciplinada, age no mundo harmonizando as posições contrárias (tese ou saṃkalpa e antítese ou vikalpa) e estabelecendo novas sínteses (anukalpa). Ele compreende o simbolismo dialético do praṇava, onde se oculta a ciência do mundo e do Ser. Em sua busca da verdade ele se aproxima da resposta de três questões fundamentais da teoria do conhecimento: (1) o que é o Ser?; (2) como se pode alcançar o conhecimento verdadeiro sobre o Ser?; e (3) como ter certeza sobre a verdade de qualquer afirmação relativa ao Ser? Na Bhagavad Gītā, esse processo está associado à meditação. Meditar, nesse contexto, significa contemplar como o mundo se origina do Ser, como o contém e como está contido nele. Significa trazer à nossa mente o amoroso sentimento sintrópico (Bhāvana) que nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica. Este é o simbolismo associado ao praṇava AUṂ. Não é necessário pertencer a nenhuma instituição religiosa, nem saber sânscrito e conhecer a literatura sagrada, para compreender e praticar meditação. Não há consenso, nem é simples definir de forma abrangente o que é a meditação. Meditar é como dormir acordado, mas fazendo emergir o observador, a amorosa testemunha. Significa recolher-se para o interior de si mesmo em estado de vigília, até que, cessando os movimentos da consciência, a batida do coração vibre naquela frequência amorosa do OṂ (AUṂ). Meditação é um estado de amoroso silêncio interior, que revela a natureza relativa de todas as formas de oposições.

A marca característica (lakṣaṇa) dos praticantes das formas superiores de meditação é a capacidade de agir de forma amorosa e altruísta, em conformidade com a consciência dialética da verdade e da justiça, capaz de perceber a unidade na multiplicidade e harmonizar todos os contrários. A Terra pode ser considerada grande, se comparada à Lua, e pequena, se comparada ao sol. Do mesmo modo, a meditação tem relação com o processo do autoconhecimento, autocontrole, autonomia e individuação do Ser, que nos revela a relatividade das experiências do mundo fenomenológico e nos permite interagir com a sociedade e com o meio ambiente, segundo as leis universais do amor. Quando nos identificamos com o fogo ardente do coração, experimentamos a unidade da vida e a nossa vida toda se torna uma forma de meditação.

Meditar, em essência, significa aquietar o pensamento, testemunhar o ritmo da respiração e fazer o coração vibrar (śraddhā) na frequência de amor puro da energia sintrópica de onde surgiu o universo (Brahma-śākti) e que nos unifica à nossa transcendente origem, possibilitando-nos afirmar, com convicção: "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação". Nesse sentido, não é algo totalmente estranho à cultura ocidental. Pelo contrário, representa o ensinamento simbolizado no primeiro dos Dez Mandamentos da tradição judaico-cristã. Representa o ideal de sintonia com o Sopro Universal, a fonte de onipotente poder de onde procedem todas as formas de Vida, e que levou Jesus a dizer, "eu e o Pai somos Um". Esta verdade intuitiva (pratyakṣa) surge na mente (citta) quando controlamos e harmonizamos (nirodha) a sua atividade (vṛtti) por meio da prática de meditação. 

Meditação é algo que se desenvolve e se aprimora, não apenas com a prática desta ou daquela técnica, mas, principalmente, a partir de nossa própria reforma interior. No ser humano, emoções primitivas, como o medo e a raiva, competem com os sentimentos mais nobres e altruístas. Nós renunciamos aos prazeres imediatos e nos esforçamos, por anos, para alcançar um objetivo maior, como a maestria em alguma arte ou área de conhecimento. Os nossos mecanismos de recompensa são mais elaborados que dos demais mamíferos. Não são tão imediatos, nem estão associados, unicamente, à gratificação dos sentidos. É esta jornada consciente, em busca de autoconhecimento, que nos coloca em contato com o nosso altruísmo inato, promovendo o seu desenvolvimento e possibilitando o gradual afastamento dos comportamentos mais instintivos, característicos do reino animal. Este é o sentido do diálogo entre Krishna e Arjuna na Bhagavad Gītā. 

Um fundamento comum das distintas modalidades de meditação do yoga e do budismo é a ênfase na escuta interior. Outro fundamento é a ênfase em se dar precedência a śreyas (o mais correto) sobre preyas (o mais prazeroso). Destes dois fundamentos deriva-se o sentido profundo da meditação como uma prática contínua, que deve se estender pelo dia todo, sem que jamais nos esqueçamos que meditar envolve, principalmente, meditar na nossa práxis, durante todas as nossas atividades cotidianas. Daí a importância do entendimento de se perceber, em nosso próprio processo de respiração, a raiz de todas as formas de meditação. É ela que nos permite tomar consciência de que somos a testemunha, o observador imparcial, que não se afeta pela realidade externa da vida, “Haṃ-sa, Haṃ-sa”...

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(1) “Praṇava” é um termo sânscrito que significa “controlador e dispensador do alento vital (prāṇa)”. Segundo outra etimologia (Yoga Sūtra I.29), o termo “praṇava” deriva de “pra” (antes, adiante) e “nava” (som, grito primal de exaltação) e designa o som primordial que reverbera dentro do sagrado recôndito do nosso coração e dos canais nervosos do nosso corpo. O Praṇava corresponde à respiração da criação cósmica e representa a voz (va) do prāṇa.

Rio de Janeiro, 17.12.2022.
(Atualizado em 28.04.23)

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