I. O destino e o coração
Há um ponto de convergência entre o Ocidente e o Oriente que permanece velado ao olhar superficial: o cruzamento entre a tragédia grega e o épico indiano. De um lado, Édipo Rei, de Sófocles; de outro, o Mahābhārata, com seu núcleo luminoso, a Bhagavad Gītā. Ambas as obras abordam o enigma do destino humano, ambas colocam o ser humano diante da dor, da revelação e do autoconhecimento. Mas o caminho que cada uma propõe é radicalmente distinto.
A tragédia busca a purgação (katharsis); o épico, a iluminação (prajñā). A primeira revela a impotência diante do fado; o segundo revela a liberdade possível a partir da confiança no coração (śraddhā).
II. Édipo e a psicanálise: o mito como diagnóstico
O Édipo de Sófocles é a encarnação do drama do saber. Tentando fugir de uma profecia, ele a realiza. Ao buscar a verdade, ele a encontra — mas, ao encontrá-la, se cega. Édipo vê, mas não suporta o que vê. A revelação de sua identidade não o liberta: o condena.
Freud transformará esse enredo em matriz de toda uma teoria do desejo. O complexo de Édipo torna-se paradigma clínico. A catarse da tragédia migra para a terapia psicanalítica. O inconsciente, como Édipo, é uma instância trágica: repete o passado, resiste à lucidez, sabota a liberdade.
III. Arjuna e o Śraddhā Yoga: a dor piedosa como momento e oportunidade para a revelação
Arjuna, como Édipo, está paralisado diante de uma revelação insuportável: terá de combater seus próprios parentes. Mas sua crise não o leva ao colapso, e sim ao despertar. Ao invés de se cegar, ele aprende a ver. A dor que o atravessa não o consome; revela-lhe a manifestação cósmica sob a regência da grande lei do equilíbrio sintrópico, Ṛta, que se cumpre no ser humano como dharma.
A Bhagavad Gītā não propõe a negação da ação, mas sua transfiguração. Não é um tratado de evasão, mas de coragem espiritual. O destino não é uma sentença, mas uma possibilidade a ser realizada com lucidez. A dor não é um fim em si, mas um portal para a inteireza do coração.
IV. A anti-psicanálise do Śraddhā Yoga
A psicanálise procura tratar o sofrimento para reinserir o sujeito na cultura. O Śraddhā Yoga não trata: transfigura. Ele não adapta o sujeito à norma — convida-o a ultrapassá-la. É um caminho de amor radical e impessoal; revolucionário, sem ser destrutivo. A psicanálise interroga o passado; o Śraddhā Yoga evoca o eterno. Uma se ancora no trauma; o outro, no poder do amor em ação. Quem experimenta śraddhā em sua pureza, enquanto a própria lei do universo em ação (Ṛta), jamais se perde — pois está, literalmente, respirando Brahman.
Enquanto Freud explica o mito complexo, a Bhagavad Gītā encarna o arquétipo. O primeiro escava o inconsciente; o segundo revela o Ātman, o Ser. Entre o analista e o sábio (Ṛṣi) há um abismo: o primeiro interpreta; o segundo silencia, até que a verdade se revele como experiência.
V. Do vinho à visão: Dioniso e Krishna
Há ainda uma chave simbólica essencial: o papel das substâncias e rituais de embriaguez. Na tragédia grega, o vinho de Dioniso é mediador entre o mundo e o êxtase, entre o real e o delírio. Nas festas e rituais das elites políticas e econômicas — como discuti em Sorriso Interior: o início da jornada de volta — o vinho consagra o pacto de submissão. Embriagar-se é tornar-se cúmplice da tradição engessada.
Nos anos 60, a contracultura buscou outra via de ruptura: as drogas psicodélicas. O estado alterado de consciência foi utilizado como antídoto à embriaguez social. As drogas tornaram-se novos ritos dionisíacos, agora com o poder de quebrar os condicionamentos da moral tradicional. O Śraddhā Yoga alcança esse objetivo de forma plena, não como uma nova droga, mas como um despertar. Sua "embriaguez" singular não anestesia; pelo contrário, provoca a epifania, fazendo ferver o coração ao nos conectar com a nossa própria essência em sua relação com a essência do real.
Sua embriaguez é lúcida, sintrópica, centrada na respiração e na atenção. Em lugar do vinho, o dhyāna mantra Haṃsa; em lugar da catarse, a contemplação; em lugar do delírio, o fogo do sagrado coração. Krishna, ao contrário de Dioniso, não convida à possessão, mas à maestria.
VI. Uma pedagogia da presença
A tragédia precisa ser encenada com parcimônia. Seu efeito depende do impacto. A repetição da encenação catártica é anestésica — banaliza o sofrimento e esvazia sua força transformadora. O Mahābhārata, ao contrário, se adensa a cada leitura. É como um espelho: quanto mais o contemplamos, mais vemos — e mais nos vemos.
É por isso que, na cultura ocidental, o teatro é anual; já na tradição védica, a Bhagavad Gītā é diária. Não há excesso em sua leitura, pois ela não visa o espanto com a irracionalidade do mundo, mas a integração com o sagrado coração — o qual nos revela, silenciosamente, a verdade daquele dito popular: “é preciso ser muito profundo para compreender que não há nada de errado com o mundo”.
O mundo nos aparece como saṃsāra porque somos cegos e duros de coração como o rei Dhṛtarāṣṭra, incapaz de perceber sua dimensão real enquanto expressão de nirvāṇa. O Śraddhā Yoga é essa pedagogia do cotidiano, uma dramaturgia do instante, onde a luta interior e exterior do herói épico se harmonizam.
VII. Epílogo: do herói ao caminho
Édipo é um herói trágico. Arjuna é um herói epifânico, épico. O primeiro sucumbe ao seu destino; o segundo o consagra como oferenda. Ambos sofrem, ambos hesitam, ambos buscam o saber. Mas apenas um deles encontra a liberdade.
Talvez seja esta a ponte que procuramos: não a impossível conciliação entre mito e razão, mas a reconciliação entre mente e coração — espaço onde o mito nos revela a sua verdade. A superação do modelo trágico aponta para esse lugar onde a revelação deixa de cegar. Ela ilumina. Não anestesia nem embriaga, como o vinho sagrado da tragédia: desperta, como o silêncio de um mantra.
Entre Dioniso e Krishna, entre Freud e Vyāsa, entre o inconsciente e o Ātman, se desenha uma escolha: permanecer na embriaguez do saṃsāra e da culpa, ou seguir o fio dourado que nos conduz ao nirvāṇa — o encontro com nós mesmos no interior do coração.
Próximo texto: O Zen da Psicanálise e o Śraddhā Yoga: Entre a Sombra e a Transfiguração
Rio de Janeiro, 09.05.25
(Atualizado em 10.05.25)
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