2023-10-16

Uma Reflexão sobre o “Manifesto Śuddha” de Bhagavān Nārada (B)


A Bhagavad Gītā como uma Crítica às Estruturas Tradicionais

Bhagavad Gītā contempla o diálogo entre Krishna e Arjuna, que ocorre no campo de batalha, instantes antes do início do confronto. Arjuna incorpora os valores morais da época e está em crise de consciência. Krishna representa a instância renovadora e/ou transgressora destes mesmos valores.  O texto foge ao padrão convencional da época, em que os sacerdotes eram os porta-vozes e intérpretes do sagrado. Em vez disso, um guerreiro e seu “cocheiro” estão no centro deste diálogo, rompendo com o entendimento sobre como a hierarquia de castas deveria organizar a sociedade. Além do mais, a instrução espiritual de Krishna a Arjuna não se dá no interior de qualquer recinto sagrado, āśrama (ashram, ou espécie de monastério) ou mandir (templo), mas no campo de batalha, poucos minutos antes do início do mais terrível combate já ocorrido no subcontinente indiano.

2023-10-15

Uma Reflexão sobre o “Manifesto Śuddha” de Bhagavān Nārada (A)

Ācārya-paramparā-vandanam:
Saudação (vandanam) aos mestres (Ācāryas) das distintas tradições culturais (paramparā)

अस्मत् गुरुभ्यो नमः।
Asmat gurubhyo namaḥ.
अस्मत् परमगुरुभ्यो नमः।
Asmat parama-gurubhyo namaḥ.
अस्मत् सर्वगुरुभ्यो नमः॥
Asmat sarva-gurubhyo namaḥ.

Saudações aos mestres,
Saudações aos mestres dos mestres,
Saudações a todos os mestres.

2023-10-07

O Sentimento Sintrópico e os desafios para a sua plena compreensão

Imagem que me levou a intuir em um único flash toda a essência da tese
Imagem que me levou a intuir, em um único flash,
a centralidade de śraddhā  na Bhagavad Gītā.
Este texto explora o sentimento sintrópico, chamado de "śraddhā" em sânscrito, e seu papel crucial na cultura sintrópica do novo milênio, promovendo o desenvolvimento sustentável global.

Baseado na Ṛta, uma lei cósmica do Ṛgveda, o sentimento sintrópico é desenvolvido no Mahābhārata, ilustrando processos entrópicos e sintrópicos que nos levam do caos (saṃsāra) ao sagrado (nirvāṇa). Este sentimento espiritual guia para uma cultura universalista e laica, fundada nas práticas de meditação, na compaixão, na ciência do yoga e na conexão com o sagrado, caracterizando aqueles sábios que confiam na validação intuitiva, não em meros sistemas de crenças.

2023-07-01

Sintese da Práxis e da Meditação Sintrópicas em Dezoito Passos

​1. Tudo no universo é constituído por duas forças, dois princípios, ou leis, que se manifestam como energia: a entropia e a sintropia. O Oriente expressa o equilíbrio destas duas potências por meio de dois símbolos: um chinês, o Yin/Yang ([);  e o outro indiano, AUṂ (\).

​2. Há autores que aproximam estas duas representações. Um exemplo notável é encontrado no livro The Gospel of Sri Ramakrishna. O texto é uma compilação das conversas e ensinamentos do santo indiano Sri Ramakrishna, registrado por seu discípulo Mahendranath Gupta.

3. Ele utiliza o símbolo indiano pouco conhecido de dois peixes invertidos, similar ao símbolo chinês, para representar a dualidade entre o aspecto manifestado (aparente) e o aspecto não manifestado (essencial) do universo – um peixe branco, com olhos pretos; e outro preto, com olhos brancos:

"Aquele é o ser supremo,
E esta alma individual é o mesmo ser supremo.
Este ser supremo é quatro-quartos,
E esta alma individual também é quatro-quartos.
Estes dois peixes separam-se de onde a linha se encontra com a água
Da mesma forma, estas duas porções
Deste ser supremo separam-se quando este mundo se manifesta."

2023-06-08

A nascente cultura sintrópica: um movimento de síntese entre a práxis monoteísta da cultura judaico-cristã e a práxis monista da contracultura hippie do “flower power”

A cultura judaico-cristã e a contracultura hippie contemplam duas visões de mundo opostas sobre a existência. Enquanto a primeira é enraizada em uma crença racional monoteísta, com ênfase na relação com um Deus transcendente, a segunda adota uma abordagem monista, fundada no sentimento de amor, que dá unidade a todas as coisas. Neste ensaio, resumimos os argumentos explorados ao longo deste livro blog para mostrar que a emergente cultura sintrópica se apresenta como uma síntese dessas duas perspectivas aparentemente divergentes, destacando a importância desta nova abordagem holística, sistêmica e harmoniosa para enfrentar os desafios contemporâneos.

2023-06-06

O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (III)


III. Entropia, Sintropia e os Novos Paradigmas da Ciência

O sentimento intuitivo tem uma dimensão que ultrapassa os limites estabelecidos pelas nossas vestimentas culturais. Ele se estabelece a partir de um núcleo invariante do espírito que nos anima e define a nossa natureza. Manifesta-se mediado e filtrado pela nossa herança psíquica e instintiva, transmitida geneticamente de geração em geração e armazenada no inconsciente de cada ser humano. Jung refere-se a este espaço psíquico de onde surge o sentimento intuitivo de certeza como inconsciente coletivo, diferenciando-o do inconsciente freudiano, o repositório das experiências particulares de cada indivíduo. O sentimento intuitivo captura em uma imagem, que pode ser descrita como sagrada, aquilo que, num segundo momento, irá receber da razão uma formulação discursiva laica e lógica.

O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (II)



II. A Ciência Termodinâmica e a Origem da Vida

A Ciência Termodinâmica, que se ocupa do rumo que as coisas tomam na natureza, nasce no século XIX em função da necessidade de se explicar o funcionamento das máquinas a vapor. Em 1824, o engenheiro francês Sadi Carnot (1796-1832) estabeleceu, matematicamente, como se daria a conversão de calor em outras formas de energia. Em seu trabalho intitulado “Reflexões sobre a Potência Motriz do Fogo” ("Réflexions sur la puissance motrice du feu") ele introduz o conceito do ciclo de Carnot - um modelo teórico idealizado de um motor de calor que opera entre duas fontes de temperatura, uma quente e outra fria. O ciclo de Carnot, contudo, só explica o balanço energético das máquinas em circunstâncias idealizadas (envolve quatro fases: expansão isotérmica, expansão adiabática, compressão isotérmica e compressão adiabática), descoladas da realidade. Diferentemente do previsto no ciclo de Carnot, os ciclos reais não apresentam a propriedade de serem termodinamicamente reversíveis.

O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (I)

I. Mapeando o surgimento da Cultura Sintrópica no Brasil

Gostaria que este ensaio fosse lido apenas como um capítulo de um diário antropológico, ou seja, como um registro pessoal de observações, reflexões e análises oriundas do convívio de mais de quarenta anos com Francisco Barreto, o fundador e Instrutor do antigo Ashram Ātma. Ele se destina, tão somente, a oferecer o contexto e os processos culturais envolvidos no desenvolvimento da práxis sintrópica, definida anteriormente, que nos animava. A sua relevância está, precisamente, no fato dele mapear o nascimento e o desenvolvimento de alguns elementos da cultura sintrópica no interior de uma pequena comunidade, localizada em Aracaju – SE e dedicada à prática do Śuddha Yoga. Este ensaio reflete, basicamente, sobre as discussões que tínhamos no Ashram, no final dos anos setenta e início dos oitenta, e que fizeram despertar o interesse do grupo sobre o papel do conhecimento da realidade material para o progresso espiritual do indivíduo e da sociedade. Ele dá sequência ao texto anterior do presente capítulo e discorre sobre o contexto em que a práxis sintrópica do Śuddha Yoga fora ali vivenciada. Ilustra também como o Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) se relaciona com a Razão (Buddhi e Manas) na produção da boa ciência.

2023-05-22

A Cultura Sintrópica e o Espírito, este desconhecido

O mundo é tal como nos parece,
feito de coisas que não aparecem.
Santo Agostinho

Conforme explico mais detalhadamente ao longo dos capítulos seguintes, logo que conheci Francisco Barreto, em 1979 fui convidado a experimentar mais profundamente a forma de viver proposta no Śuddha Yoga, muitas vezes chamada de “espiritualista”, por falta de um melhor nome, mas que, na verdade, integra e unifica as experiências do universo fenomenológico, dando igual peso à matéria e ao espírito. O Śuddha Yoga, em seu nível mais profundo, não nos convida a assumir, nem uma postura teísta, nem ateísta, mas aquela oriunda de se compreender o equilíbrio sintrópico destes dois níveis de percepção de uma mesma realidade: o nível entrópico (rajásico e tamásico) do mundo, experimentado como saṃsāra; e o nível sintrópico (sáttvico) desta mesma realidade “material”, experimentado de forma espiritual e laica como nirvāṇa.

2023-05-14

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (III)


O que vem primeiro?

O que vem primeiro, o sentimento (bhāva; bhāvanā; anubhūti) ou o pensamento (cintā; cittavṛtti)? Segundo a Bhagavad Gītā, o sentimento tem precedência sobre o pensamento. Nós não somos movidos pelas ideias, mas sim pelos sentimentos. A vida é uma sucessão de sentimentos. Os conceitos podem ser apreendidos pelas máquinas. As pessoas pensam porque sentem, e não o contrário. São os sentimentos que acionam os pensamentos e as ações. Simbolizado na famosa expressão sânscrita OṂ (AUṂ), o sentimento de amor representa, segundo a epistemologia da Bhagavad Gītā, a semente original de todas as existências e a causa do próprio surgimento do universo, que teria se dado segundo a fórmula “Ekoham, bahusyam prajayeyeti” (Eu sou Um, tornar-me-ei também múltiplos seres), discutida na Chāndogya Upaniṣad. Assim, o universo teria surgido do sentimento amoroso, expressão da vontade criadora no ser humano, manifestada como consciência sintrópica (espírito), mente (matéria) e alento vital (energia).

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (II)


Vida contra a Morte:
a questão central do Mahābhārata 

Há algo em comum no modo conforme os grandes seres enfrentam certas questões cruciais, face à própria morte. Sócrates, condenado à morte por envenenamento, vê na cicuta (veneno) o medicamento que lhe traria a libertação final de sua alma. Toma a cicuta em paz porque tem certeza de que vivera de forma coerente. Em comparação com a sua determinação de avançar em direção à verdade, a sua própria necessidade de se autodefender desaparece. De igual modo, Jesus, no tribunal romano, cala-se ao ser perguntado se era o rei dos judeus. Bastaria que negasse a acusação e estaria livre, conforme as regras jurídicas vigentes na época. Entretanto, prefere a morte, que fica como testemunha das verdades que professou. Ambos parecem entender a morte apenas como morte do ego, o princípio material de organização do indivíduo. 

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (I)

O que é a vida?
Não são as ondas, mas o mar...
Nascemos e morremos no oceano da vida.

INTRODUÇÃO:
O estabelecimento dos fundamentos da filosofia sintrópica e da sua práxis

Este artigo trata da epistemologia e teoria da verdade da Bhagavad Gītā e das suas consequências para o mundo moderno. Toma como ponto de partida algumas ponderações feitas na tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), desenvolvida no Instituto de Ciências Sociais da McMaster University e reconhecida (2009) como uma tese de doutorado em filosofia (ver parecer) pela Comissão Especial de Revalidação de Certificados e Diplomas de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), constituída pelos professores Dr. Fernando José de Santoro Moreira, Dr. Franklin Trein e Dr. Gilvan Luiz Fogel.

2023-04-03

AS BASES DA ARTE E DA CIÊNCIA DA MEDITAÇÃO: do conceito védico de Ṛta ao contemporâneo conceito de Sintropia

A arte e a ciência da meditação desenvolvem-se em torno da compreensão da relação entre o observador e a coisa observada. No pequeno texto medieval Dṛg-Dṛśya-Viveka, atribuído por alguns a Adi Śaṅkarācārya, temos a seguinte descrição do observador e da coisa observada:

Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então o Espírito, a Testemunha (Sākṣī), se revela o verdadeiro observador.

2023-01-29

A Origem das Práticas de Meditação na América Latina

Ana Huguet
Convite (1917)
 O Início de Tudo

Poucos sabem que a história da arte e da ciência da meditação na América Latina começou no Chile, quando, em 1917, a senhorita Ana Huguet, Presidente do ramo Arundhati da Sociedade Teosófica no Chile, convida alguns colegas para iniciarem um estudo da coletânea de artigos publicados por S. Subramania Iyer na revista The Theosophist (serie editada em espanhol com o título de Una Organización Esotérica en la India, por Swami Subrahmanyananda - Dr. Sir S. Subramanier (K. C. L. E.) LL. D.).