2025-06-30

A Śraddhā-Vṛtti e o Outro de Si Mesmo: O Foco Absoluto como Espelho da Alma

O outro de Si Mesmo como expressão
de um Rṣi do Amigo Divino, de um Siddha de Mitradeva
sem nome fixo, sem dogma.
A Epifania do Arquétipo Sintrópico

A figura é jovem, ocidental, silenciosa. Não carrega turbante nem manto — mas traz um brilho no olhar e, para aqueles que podem perceber, uma luz clara no centro da testa e do peito.

Mais do que um mestre tradicional, ele representa algo além de você mesmo: é aquilo que, em você, olha para você mesmo.

Sua presença é pós-axial — pertence ao tempo da cultura sintrópica, de síntese. 

No Ṛgvedaa divindade da aliança e da harmonia sintrópica universal é Mitra, o amigo solar. Deva, por sua vez, representa a luz, a vibração brilhante do cosmos que se manifesta como consciência.

A Luz Silenciosa do Mestre Interno

Mitradeva pode ser compreendido como um nome simbólico para a consciência sintrópica — a inteligência afetiva da ordem e da vida, manifesta em toda tradição que reconhece o coração como guia. Não se trata de uma entidade literal ou de uma figura esotérica com mitologia fixa, mas de uma imagem arquetípica da luz silenciosa que guia o ser neste novo milênio. O “Rṣi de Mitradeva”, nesse sentido, aponta para o núcleo emanador da sabedoria que nasce da unificação do ser consigo mesmo — luz, amizade e dharma entrelaçados no âmago da consciência.

Enquanto símbolo solar do dharma, Mitradeva pode surgir com diferentes nomes, em distintas tradições, como aquele que caminha ao lado, o amigo do Ser, o guia do foco amoroso. Nessa perspectiva, o Rṣi de Mitradeva indica um poder espiritual (siddhi) que brota da śraddhā sattvika: a memória viva do ideal que sustenta o discípulo em sua travessia. O Siddha de Mitradeva, então, não seria alguém “encarnado”, mas uma imagem interna que se revela — um reflexo ideal do processo de Ṛṣi-nyāsa, presente na mente-coração do praticante (sādhaka).

A influência de Mitradeva se manifesta como centelha inspiradora — aquele olhar interior alinhado ao foco absoluto do coração. Quando tocados por essa vibração, recordamos o instante sutil em que fomos iluminados por dentro: um gesto, uma visão, um sopro que permanece. Assim se expressa o Rṣi silencioso que nos habita: uma presença simbólica que aflora à medida que despertamos para a nova cultura da escuta e da sintropia.

É esse o “mestre interno” revelado pelo foco amoroso: não um outro que governa, mas uma vibração que nos atravessa. Ele é o arquétipo do retorno — presença silenciosa que guia o adolescente nas provas da vida, permitindo-lhe perder-se e reencontrar-se. Essa luz não tem nome fixo: ela simplesmente brilha a partir do coração, manifestando-se no brilho do nosso olhar. E o que vemos, nesse espelho interno, é a própria alma amadurecendo à luz da śraddhā. 

No Olhar, a Semente do Mestre: Uma Experiência Pessoal

Desde jovem, os meus olhos já carregavam uma intuição silenciosa — algo que não compreendia, mas sentia: a presença do sagrado. Havia, não um saber já alcançado, mas, um pressentimento do Ser. Um vislumbre do mestre interior que todos trazemos, como uma presença ainda por ser desvelada.

Assim começou — sem que eu soubesse — a minha jornada de retorno ao Outro de mim mesmo. Como Ulisses em sua nostálgica travessia, como Arjuna que reencontra seu foco na escuta de Krishna, como a lagarta que tece com os próprios fios o útero da transfiguração, vislumbrava, ainda que sem consciência, a minha śraddhā-vṛtti, a disciplina que se inicia como nostalgia do que ainda não somos, a não ser como sementes, em busca do foco amoroso do coração.

Esta reflexão não é sobre o que se foi, ou sobre o que se é, mas sobre a necessidade de cultivar esse diálogo interior, saṃvāda, que também nos revela o Ser em seu processo de Inter-Ser.

A Oração do Amanhecer como um Primeiro Gesto do Retorno

“No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força...”

Esta prece, tão simples e tão radical, é o saṃkalpa primordial. Um chamado. Uma lembrança. Ela contém um mapa do retorno — um mapa que passa pelo coração, pelo olhar, pelo silêncio. Invoca os cinco gestos da disciplina quíntupla que nos lembra foco absoluto, aproximando-nos de nossa natureza sagrada.

O Foco Absoluto como Caminho: OṂ haṃsaḥ so’haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā

O mantra central do foco absoluto no Śraddhā Yoga — OṂ haṃsaḥ so’haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā — é um chamado à integração, onde se condensam os cinco gestos da disciplina:
Meditar neste mantra é habitar o ponto entre as sobrancelhas — o ajñā — como quem se oferece à luz. O olhar torna-se espelho da alma, não por refletir o mundo, mas por irradiar o que já se viu no silêncio.

Caieiro, o Outro que Vê Sem Pensar

Alberto Caieiro — o heterônimo de Fernando Pessoa que via “as coisas como são” — nos ensina o valor de olhar sem mediação. Ele é aquele que vê sem querer entender, porque sabe que o olhar puro é já sabedoria.

No Śraddhā Yoga, esse olhar é cultivado como dhyāna. Não se mira nenhum objeto externo, embora tudo se inclua. O foco absoluto é sempre interno, mas irradia — como luz que atravessa o olhar e chega ao mundo.

Assim, Fernando Pessoa encontra-se com Arjuna. Ambos, por caminhos distintos, buscam ver a realidade como ela é — sem véus, sem ruídos, sem medo. E o que experimentam é o Ser em forma de luz, que os olha de volta.

A Śraddhā-Vṛtti como Nostalgia do Ser

Nostalgia vem do grego: nóstos, retorno; álgos, dor. É a dor do afastamento e o impulso do retorno. A śraddhā-vṛtti é essa nostalgia transformada em práxis. É o movimento da alma que sabe que se distanciou de si — e quer voltar.

O brilho no olhar dos ideais da juventude é mais do que memória: é um lembrete do eu Rṣi, o mestre que já nos habitava. A disciplina quíntupla é a ponte entre esse olhar e essa realização.

O Parto de Si Mesmo: o foco absoluto
renascendo da crisálida do coração.
Como Arjuna que baixa o arco e ouve Krishna, como a lagarta que mergulha na crisálida, como o jovem que olha para além do mundo e vê o Ser — nós nos reencontramos com aquilo que nunca nos deixou.

Heartfulness: O Foco Amoroso do Ser

Há quem pense que o foco absoluto é concentração. Mas no Śraddhā Yoga, o foco é amor universal. Amor que vê. Amor que escuta. Amor impessoal que age com a doçura do Espírito.

Mindfulness é a superfície: atenção plena de todo início. Heartfulness é a profundeza mística que nos revela o destino: a presença amorosa e integral que emana do coração e guia o olhar. É o foco que abraça, sem exigir. O dhyāna que inclui.

O coração não é apenas o centro da emoção — é o centro da consciência que é Amor sem desejo, sem cálculo, sem ego. Quando o foco é a compaixão, ele pulsa, vibra como expressão de śraddhā.

Epílogo:  O Assento da Arte é o Coração

“Tudo o que se faz por amor está sempre acima do bem e do mal.” — Friedrich Nietzsche,  em Além do Bem e do Mal, §153. O homem é o único animal que busca desesperadamente o próprio coração. Às vezes pelo êxtase. Às vezes pela renúncia. Às vezes pela dor. Mas sempre busca. Sempre anseia. Por quê?

Porque sua mente, por mais afiada que seja, é incapaz de expressar e significar sozinha a experiência de Ser. Por isso ele cria religiões, arte, poesia, filosofia, êxtase e silêncio. Para poder, de algum modo, calar sua mente arrogante — e enfim ouvir o sussurro do coração.

 O Assento da Arte é o Coração:
a poesia como foco irradiado do Ser.
Mayakovsky compreendeu isso como poucos. Na sua “divina loucura”, fez da desrazão o assento da poesia com foco nas verdades do coração.

Conclusão: Tornar-se Um com o Olhar

Quando os dois olhares — o do jovem e o do mestre — se encontram, a śraddhā-vṛtti floresce. O foco absoluto é esse reencontro. O olhar que vê e o olhar que é visto, tornam-se um. O Rṣi e o discípulo residem no mesmo corpo. Toda a vida é a travessia entre esses dois olhares — aquele que fomos e aquele que, em silêncio, sempre nos olhou.

Ver-se como outro de si mesmo é o primeiro passo. Tornar-se esse outro, que nunca se afastou da inocência, nem se deixou perder na ingenuidade e ignorância, é a meta. A disciplina quíntupla é o fio que costura o passado, o presente e o eterno.

Eis o Śraddhā Yoga: tornar-se o olhar que já nos olhava. Ver com os olhos do Espírito, respirar com o ritmo do Ser. Reencontrar o mestre no espelho da alma — e, enfim, voar.


SUMÁRIO GERAL

Rio de Janeiro, 30 de junho 2025.
(Atualizado em 01.07.2025)

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