2. Prāṇa, Yajña e Ṛta: A Brahma Śakti do Veda ao Tantra
Embora o Ṛg Veda fundamente a relação entre Prāṇa (sopro de vida) e Ṛta, são as tradições tântricas que mapeiam seu fluxo concreto no corpo sutil, através de Iḍā-Piṅgala e do Ājñā Chakra. Essa sinergia é essencial: se o Veda oferece a base cosmológica — com o yajña como ritual cósmico e Ṛta como ordem universal —, o Tantra fornece a anatomia prática que transforma teoria em experiência. O Haṃsa, em sua dupla natureza (mantra védico e pulsação tântrica no Ājñā Chakra), sintetiza essa unidade: ao harmonizar Prāṇa (micro) e Brahma Śakti (macro), ele converte a respiração em Śraddhā — não como devoção abstrata, mas como reconhecimento corporal do sagrado. O Tantra, assim, não contradiz o Veda, mas o encarna: ao trazer Prāṇa e Ṛta para a linguagem dos chakras e nāḍīs, ele nos permite tocar o cósmico no próprio corpo.
O Ṛg Veda revela a meditação como ato cósmico, onde os prāṇāyāmas que a precedem transcendem exercícios respiratórios para se tornarem yajñas em miniatura. Neles, o Prāṇa — "o elo entre o imanifesto e o manifesto" (Kaṭha Upaniṣad II.3.2) — desvela o sagrado em todas as coisas. Quando a respiração consciente (śuddha prāṇāyāma) se revela como Haṃsa, surge śraddhā em sua pureza integral: não mais como crença, mas como experiência direta de que o Prāṇa é a própria Brahma Śakti disponibilizada ao humano. Por meio do Haṃsa, o ritmo respiratório sintoniza o coração com Ṛta (Ṛg Veda 10.85.1), expressando-se como śraddhā — a devoção que é simultaneamente entrega e percepção da unidade.
Segundo as Upaniṣades, o Prāna é a energia vital universal que permeia o cosmo. O Prāna é o portal através do qual a Brahma Śakti, — em sua totalidade cósmica — se particulariza como śraddhā no ser humano, tal qual a luz do sol se refracta numa gota de orvalho." Ele transforma o simples respirar em meditação ativa (BhG 2.50: "Aquele que está unificado na práxis do yoga compreende que o yoga se manifesta como meditação e maestria sobre todas as ações " ) e em sacrifício de si mesmo (BhG 4.24: "Brahman é o ato de oferenda, Brahman é a oblação... tudo é Brahman"). É desse cultivo contínuo que emerge a śraddhā. Assim, o prāṇāyāma revela-se não como técnica, mas como ritual cósmico em miniatura — cada inspiração, uma recepção de paz e amor da graça divina; cada expiração, um ato amoroso de devolução ao Todo. Ele deixa de ser mero exercício respiratório para tornar-se a raiz do Śraddhā Yoga — onde cada ato respiratório é um convite à comunhão com o sagrado.
A Brahma Śakti não se limita ao Prāṇa individual. Em sua totalidade, ela é a própria tessitura do universo, regida por Ṛta — a ordem cósmica imutável que harmoniza todas as existências (Ṛg Veda 10.85.1: "Ṛta é a lei que tece o visível e o invisível"). Essa mesma lei, no plano humano, manifesta-se como dharma, criando uma ponte entre a disciplina espiritual (sādhana) e a harmonia universal. Assim, o Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā revela-se não apenas como cultivo interno, mas como participação ativa na Brahma Śakti através do Dhyāna Mantra Haṃsa — onde o microcosmo e o macrocosmo se unificam.
O Dhyāna Mantra Haṃsa é silencioso e se esconde no ponto de encontro de
Iḍā e Piṅgala no Ājñā Chakra, o assento da energia sintrópica (Brahma Śakti) onde ressoa a nossa própria respiração, Haṃ-sa; inspiro a Brahma Śakti e a devolvo ao mundo como Śraddhā. Enquanto dirigimos a nossa atenção ao assento do Espírito (Ātman) no coração, devemos focar a nossa visão nesse ponto, entre as sobrancelhas, celebrado no Hino a Durgā. O que se procura com este mantra do amor universal é alcançar o samādhi, que representa o estado de unificação desses canais de Iḍā e Piṅgala.
Assim, o Śraddhā Yoga ensinado por Krishna na Bhagavad Gītā revela-se como a síntese perfeita. No indivíduo, através do Dhyāna Mantra Haṃsa, o praticante harmoniza-se com o fluxo da Brahma Śakti em seu aspecto acessível. Viver em acordo com o dharma nos leva a participar, conscientemente, da mesma lei que governa o cosmos, Ṛta (BhG 7.6: "Todas as criaturas repousam em Mim..."). Nesse sentido, a meditação ininterrupta, expressa no Dhyāna Mantra Haṃsa — longe de ser uma fuga do mundo — é um ato de alinhamento com o infinito (Brahma Śakti), onde o śraddhā é tanto o meio quanto a expressão dessa união.
3. O Svatantra Mantra e a exaltação à genuína liberdade do Dhyāna Mantra Haṃsa
O Dhyāna Mantra "Haṃsa" está contido no Svatantra Mantra ("OM haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā"), usado no Yoga Sāndhya (Yoga do Amanhecer) do Śuddha Dharma Mandalam (Sanātana Dharma Deepika, Volume I (Madras, 1917; pp. 107 - 113): "OM haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā" — "OM, eu sou o Eu Sou, saudações a Yogeśvarī, à Nossa Senhora do Yoga" (Śrī Yoga Devī). Em essência, ele exalta o sentido liberdade (svatantra) como a capacidade de agir segundo o sentimento de puro amor altruísta (Parabhāva-siddhi), com a compreensão profunda de que tudo — respiração, mantra, disciplina — está contido no Ātman, como a chama na luz. Ele rende graças (svāhā) à Nossa Senhora do Yoga (Yogeśvarī), conhecida como Śrī Yoga Devī, com um ardente viva (hrīm), como forma de reconhecimento e agradecimento pela revelação, em nossa própria respiração, sobre como alcançarmos a consciência sintrópica: fazendo de cada respiração um suave, sutil e pleno gesto de comunhão, paz e amor, conforme ensina o Dhyāna Mantra, que simboliza o contato com o Ātman, o Espírito Supremo, presente em nossos corações.
4. A Essência da Meditação e do Śraddhā Yoga
O objetivo principal das práticas de meditação é nos nutrir da amorosa percepção sintrópica da realidade (Bhāvana). Ela nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica. Deste modo, quando o aspirante realiza o Svatantra Mantra e alcança a plena compreensão do significado profundo do Dhyāna Mantra nele contido (“Haṃ-sa”), é natural que atualize a sua disciplina diária e passe a se questionar: para que a prescrição rígida de qualquer disciplina espiritual? Para que, se tudo isto já está no imo do meu coração, onde habita a Consciência Universal, que dita o ritmo próprio e sagrado da minha respiração? Para que disciplina externa, quando se compreende que tudo já está dado neste mantra do amor universal que representa, a um só tempo, a essência da ciência do alento vital (śuddha prāṇāyāma) e da arte da meditação (dhyāna)? Haṃ-sa, haṃ-sa – está tudo aí, nesse sagrado mantra da meditação, que se revela em nossa respiração quando voltamos a nossa atenção para agir no mundo com perfeição e equilíbrio, de forma justa, caridosa e sábia. Estão aí nesta forma de meditação na ação, praticada o dia todo, as três modalidades de meditação discutidas na Bhagavad Gītā, conforme o "Eu sou" (Haṃ) se identifica, durante as suas atividades cotidianas, com a divindade (sa) externa (saguṇa), interna (nirguṇa), ou transcendente (śuddha),
O Dhyāna Mantra Haṃsa guarda o segredo da Brahma Śakti, que se manifesta no alento vital, sob a forma de paz e amor. Dizer que a nossa respiração tornou-se uma meditação significa dizer que o ato de respirar tornou-se um japa3 (entoação de mantras) e também um śuddha prāṇāyāma. Conforme ensinam os textos sagrados do Śuddha Dharma, a finalidade da prática do śuddha prāṇāyāma é alcançar o que se denomina como parabhāva-siddhi, a perfeição (siddhi) na arte de amar (parabhāva), ou a concepção e o sentimento da presença da Suprema Consciência em todas as coisas, de forma imanente e transcendente. E o japa, a repetição dos mantras, representa a contrapartida material, a frequência sonora, que compenetra os cinco elementos materiais e faz vibrar todo o universo. Os śuddha iogues afirmam que fazer da respiração natural um japa e um śuddha prāṇāyāma significa fazer dela a meditação, por excelência, que substitui a necessidade de qualquer outra disciplina espiritual.

Haṃ-sa, haṃ-sa; deixar de ser para vir a ser; nascer e morrer; nascer em Deus e morrer em Deus; inspiro paz, expiro amor. Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração; quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. O Dhyāna Mantra nos possibilita alcançar regiões profundas do nosso ser, aproximando-nos da verdade bíblica de que no princípio era o Verbo, o som de Deus. Ele representa a essência de saṁnyāsa e tyāga: nascer em Deus e morrer em Deus. Representa o ritmo do Yoga, que simplesmente significa viver em Deus. Não é necessário reter o ar, como nos prāṇāyāmas convencionais. O tempo de retenção (kumbhaka) é nulo (tempo:1-0-1). Nascer em Deus, morrer em Deus... a todo instante o tempo todo... Treinar, treinar e treinar. Ritmo, ritmo e ritmo. Assim se resgata a memória, a história, o passado e assim se escreve uma nova história, o futuro. Continuamente nascendo e morrendo na luz de cada instante, para convergimos, infinitamente, para o seio da chama eterna. A disciplina é rítmica e coincide com a própria respiração. O tempo todo, o dia todo, respirar e viver o sagrado de cada instante fugaz e eterno que prova o adágio do mestre, do seu mestre e do mestre do seu mestre: entrarás no seio da luz, mas jamais alcançarás a chama. O seio da luz está no instante presente, e a chama, no eterno.
Em suma, toda a disciplina espiritual está contida no ritmo espontâneo da respiração consciente: inspiro Brahma Śakti e expiro Śraddhā. O Dhyāna Mantra Haṃsa não é uma técnica, mas a assinatura do despertar da consciência sintrópica. Se o Haṃsa é o ritmo, Bhāvana Namaḥ é a melodia que o orienta — vejamos como.
5. A Arte de Amar: Bhāvana Namaḥ e os Cinco Estágios de Brahma-sāmīpya
A consagração à Brahma Śakti (Bhāvana Namaḥ) manifesta-se como śraddhā — o néctar que flui do coração e sintoniza o ser com as noúres (ondas de amor universal). Esse processo se dá em cinco estágios:
Conforme vimos ao longo das seções anteriores, a consagração à fonte da perfeição na arte de amar (parabhāva-siddhi) denomina-se, tecnicamente, Bhāvana Namaḥ. O esforço diário e continuado de Bhāvana (a experiência sentida da unidade do mundo) Namaḥ (rendição) manifesta-se como śraddhā, o néctar (śakti) que jorra do coração puro, sob a forma do sentimento alturísta, natural e biológico, e que orienta, como uma bússola, o nosso movimento em direção à verdade. Estabelece-se, deste modo, a sintonia fina de todo o nosso ser com as frequências (noúres) de amor universal de onde emanam as intuições superiores. Śraddhā, em suma, contempla e torna fecundo cada um dos cinco estágios de Brahma-sāmīpya, o quíntuplo poder de convergência sintrópica, descritos nos capítulos anteriores: (1) Saṃkalpa, a firme resolução; (2) Ṛṣi-nyāsa, a internalização da divindade; (3) Viniyoga, a lembrança constante de Bhāvana Namaḥ; (4) Satya Tyāga, a consagração à Vontade Cósmica; e (5) Upasthāna, o agradecimento pela obtenção do estado de sintonia (dhyāna) e unidade (bhāvana) com o sagrado em nosso coração. Śraddhā expressa tanto a consagração (tyāga) de si mesmo à contemplação, bem como a escuta atenta desta rádio interior que nos orienta quanto à nossa conduta (karma), em conformidade com os nossos sentimentos superiores (Śreyas) e nos afastando do atendimento aos anseios inferiores, de origem passional e emocional (Preyas). Quando agimos com śraddhā, estabelecemos a sintonia com a energia (Brahma Śakti) da divina presença em nós (Sākṣī) e, consequentemente, com as ondas de rádio (noúres) emanadas dos mundos superiores.
NOTAS
(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do
Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas, apresentado no final do Prefácio.
(2) “Mantra” deriva da raiz verbal “man” - "pensar". Man-tra, indica um instrumento do reto pensar. Sugere um pensamento estruturado em conformidade com a realidade, segundo fórmulas associadas à realização espiritual. Mantra pode ser definido como uma palavra, ou grupo de palavras, que auxilia na concentração e na meditação. Originalmente, os mantras correspondiam aos hinos sagrados dos Vedas e envolviam quatro aspectos: (1) o Rishi, ou vidente que primeiro viu o mantra, (2) a sua métrica, (3) a deidade que corresponde ao mantra e (4) a iniciação, ou resultado que a entoação do mantra oferece.
(3) É comum a utilização de um japa-mala, ou colar (mala) para entoar (japa) os mantras. Originalmente, o japa-mala era conhecido como Rudrākṣa, porque as contas do colar eram feitas de sementes conhecidas como os olhos (akṣa) de Rudra. O Rudrākṣa deu origem ao rosário cristão.
Por que eles têm 108 contas? Porque as contas representam uma forma simbólica de conexão com os ciclos cósmicos que, segundo os iogues, governam o universo. O japa-mala expressa a trajetória eclíptica do sol e da lua no céu, que os iogues dividem em 27 meses siderais, ou nākṣatras, conforme as 27 constelações que representam as 27 filhas de Dakṣa, a esposa da divindade Soma, a lua: Aśvinī; Bharaṇī; Kārttikā; Rohiṇī ou Brāhmī; Mṛgaśiras; Ārdrā; Punarvāsū ou Yāmakau; Puṣya ou Siddhya; Āśleṣā; Māghā; Pūrva-phālguṇī; Uttara-phālguṇī; Hasta; Citrā; Svāti; Viśākhā; Anurādhā; Jyeṣṭha; Mūla; Pūrvāṣāḍhā; Uttarāṣāḍhā; Abhijit; Śravaṇa; Śraviṣṭā; Śatabhiṣaj; Bhādrapāda; e Revati ([Harivaṃśa, (ed. Calc.)] 104; Mahābhārata 13, 3256). “Nākṣatra” pode ser traduzido como “aquilo que revela as leis à noite”, ou seja, as estrelas. Daí a sua associação com os ciclos lunares. Cada nākṣatra tem 108 graus, e está cada um associado a um tipo de energia. Além disso, acreditava-se que a distância entre a Terra e o Sol era de aproximadamente 108 vezes o diâmetro do sol. O Sol teria aproximadamente 108 vezes o diâmetro da Terra. E a distância entre a Terra e a Lua seria 108 vezes o diâmetro da lua. Acreditava-se também que o microcosmo (nós mesmos) refletiria o macrocosmo (o sistema solar). Estas são as razões pelas quais os antigos sábios consideravam o número108 como sagrado. Podemos dizer que existem 108 passos entre a consciência humana comum e a luz divina no centro de nosso ser.
Conforme se acredita, cada vez que recitamos um mantra utilizando as contas do japa-mala, estamos dando mais um passo em direção ao nosso sol interior. Um total de 108 linhas de campos de energia convergiriam para formar o chacra cardíaco. Os chakras seriam as interseções destas linhas de energia. A linha central de energia é conhecida na literatura do yoga como suṣumṇā. Por fim, o número 1 costuma representar Deus, a unidade, o não dualismo, a verdade mais elevada; o número 0 indica o vazio, o silêncio e a perfeição na prática espiritual; e o número 8 representa o infinito e a eternidade.
Rio de Janeiro, 06.06.20.
(Atualizado em 06.04.25)
Belo texto !
ResponderExcluirGostoso demais de ler....
Essa tal conquista da liberdade, além do Ashram, que vc descreve tão bem, no meu ponto de vista é fundamental pra se assimilar Suddha Yoga.....Jaya !
Grato, Margareth! Sempre bom ter a sua análise. Hoje eu dividi o texto em dois artigos, pois ele estava um pouco longo. A discussão sobre o Ashram, que estava na parte inicial deste artigo, agora constitui um artigo independente e aparece na abertura da conclusão do livro-blog.
ExcluirQue maravilhoso, irmão. Para nós que estamos começando, e na ausência momentânea do nosso querido instrutor, é fundamental esse blog e o compartilhamento dos seus conhecimentos. Namastê! Gratidão! Abraços de Maceió.
ResponderExcluirGrato pelas palavras de estímulo, Wanderson. Fico feliz de saber que o livro-blog está sendo útil. Namastê!
ExcluirRubens, tenho que te agredecer por tão sublime ensinamento da tradição védica.
ResponderExcluirO texto veio num momento apropriado pra mim.
Namaskar!
Fico agradecido também, Simone, pela sua delicadeza em me deixar saber que o texto está sendo útil para o entendimento de algumas das sutilezas que caracterizam as Escrituras Sagradas.
ExcluirGratidão estimado irmão! Esteja certo da importância de suas publicações no meu processo evolutivo! Namasté! Forte abraço!
ResponderExcluirGrato pelo retorno, Gustavo. Abraços, Namastê!
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