2020-06-06

A Meditação Sintrópica e o seu Mantra

O Dhyāna Mantra

Durgā, expressão da energia divina, a Śakti.
Durgā, expressão da Śakti.
No Mahābhārata1, no momento em que antecede o episódio da Bhagavad Gītā, Arjuna faz a invocação à Yogeśvarī em seu aspecto de Durgā, que simboliza a energia divina e sintrópica, a Brahma Śakti, cuja correspondente, no ser humano, é śraddhā. Após a invocação, a Bhagavad Gītā tem início e Krishna revela a Arjuna o ancestral Śuddha Yoga, superior a todos os demais, chamados de yoga-garbhatva, ou seja, yogas preliminares, em fase de gestação. O yoga da Bhagavad Gītā é para aqueles capazes de apreciar e usufruir da genuína liberdade (svatantra), em função de já terem se emancipado das paixões inferiores e do egoísmo. Contudo, a maioria dos estudiosos ainda prefere ignorar esse sentido do Śuddha Yoga e do svatantra que o caracteriza. Os aspirantes das classes embrionárias de yoga somente se sentem seguros sob a orientação rígida (paratantra) e condução de um instrutor, que lhes indica um código de etiqueta com orientações rigorosas sobre como se conduzir em todas as circunstâncias da vida cotidiana. Deste modo, eles não se dão conta de que a meditação, sintetizada no Dhyāna Mantra2 "Haṃsa", expressa a essência do Śuddha Yoga, descrito na Bhagavad Gītā, e que engloba (1) o Mātṛkā Yoga, ou a arte de estabelecer correspondências entre os sons e o corpo cósmico, (2) o Kuṇḍalinī Yoga, sintetizado no śuddha prāṇāyāma, e (3) o Ātman Yoga, que nos revela como a Consciência Universal se faz presente no coração de todos os seres.

As práticas de meditação nasceram com a Escritura Sagrada mais antiga do mundo, o Ṛg Veda.  As meditações costumam ser precedidas de prāṇāyāmas e/ou mantras. Os prāṇāyāmas não são simplesmente exercícios respiratórios, envolvem um ato de consciência. Do mesmo modo, os mantras. O Dhyāna Mantra Haṃsa é silencioso e se esconde no ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala no Ājñā Chakra, o assento da energia sintrópica (Brahma Śakti) onde ressoa a nossa própria respiração (Haṃ-sa; inspiro paz e harmonia [Brahma Śakti], expiro amor [Śraddhā]).  Enquanto dirigimos a nossa atenção ao assento do Espírito (Ātman) no coração, devemos focar a nossa visão nesse ponto, entre as sobrancelhas, celebrado no Hino a Durgā. O que se procura com este mantra do amor universal é alcançar o samādhi, que representa o estado de unificação desses dois centros.

O Svatantra Mantra

O Dhyāna Mantra “Haṃsa” é enaltecido no interior de outro mantra, o Svatantra Mantra, que diz assim: OM haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā. Ele pode ser traduzido da seguinte forma: OM, eu sou o Eu Sou, saudações a Yogeśvarī, a rainha do Yoga – ou seja, Śrī Yoga Devī. Este Mantra é parte da disciplina diária de Yoga Sāndhya (Yoga do Amanhecer) dos membros do Śuddha Dharma Mandalam e  consta do Sanātana Dharma Deepika, Volume I (Madras, 1917; pp. 107 - 113), seção Ātma Snāna (Purificação pela Água para a realização do Espírito), parágrafos 169 a 195. Ele rende graças (svāhā) à Nossa Senhora do Yoga (Yogeśvarī), conhecida como Śrī Yoga Devī, de forma exclamativa, com um ardente viva (hrīm), como forma de reconhecimento e agradecimento pela revelação, em nossa própria respiração, sobre como alcançarmos a consciência sintrópica: fazendo de cada respiração um suave, sutil e pleno gesto de comunhão, paz e amor, conforme ensina o Dhyāna Mantra, que simboliza o contato com o Ātman, o Espírito Supremo, presente em nossos corações.

A Essência da Meditação e do Śuddha Yoga

O objetivo principal das práticas de meditação é nos nutrir do amoroso sentimento sintrópico (Bhāvana) que nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica. Deste modo, quando o aspirante realiza o Svatantra Mantra e alcança a plena compreensão do significado profundo do Dhyāna Mantra nele contido (“Haṃ-sa”), é natural que atualize a sua disciplina diária e passe a se questionar: para que a prescrição rígida de qualquer disciplina espiritual? Para que, se tudo isto já está no imo do meu coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que dita o ritmo próprio e sagrado da minha respiração? Para que disciplina externa, quando se compreende que tudo já está dado neste mantra do amor universal que representa, a um só tempo, a essência da ciência do alento vital (śuddha prāṇāyāma) e da arte da meditação (śuddha dhyāna)? Haṃ-sa, haṃ-sa – está tudo aí, nesse sagrado mantra da meditação, que se revela em nossa respiração quando voltamos a nossa atenção para agir no mundo com perfeição e equilíbrio, de forma justa, caridosa e sábia. Estão aí nesta forma de meditação na ação, praticada o dia todo, as três modalidades de meditação discutidas na Bhagavad Gītā, conforme o "Eu sou" (Haṃ) se identifica, durante as suas atividades cotidianas, com a divindade (sa) externa (saguṇa), interna (nirguṇa), ou transcendente (śuddha),

O Dhyāna Mantra Haṃsa guarda o segredo da Brahma Śakti, que se manifesta no alento vital, sob a forma de paz e amor. Dizer que a nossa respiração tornou-se uma meditação significa dizer que o ato de respirar tornou-se um japa3 (entoação de mantras) e também um śuddha prāṇāyāma. Conforme ensinam os textos sagrados do Śuddha Dharma, a finalidade da prática do śuddha prāṇāyāma é alcançar o que se denomina como parabhāva-siddhi, a perfeição (siddhi) na arte de amar (parabhāva), ou a concepção e o sentimento da presença da Suprema Consciência em todas as coisas, de forma imanente e transcendente. E o japa, a repetição dos mantras, representa a contrapartida material, a frequência sonora, que compenetra os cinco elementos materiais e faz vibrar todo o universo. Os śuddha iogues afirmam que fazer da respiração natural um japa e um śuddha prāṇāyāma significa fazer dela a meditação, por excelência, que substitui a necessidade de qualquer outra disciplina espiritual.

Haṃ-sa, haṃ-sa; deixar de ser para vir a ser; nascer e morrer; nascer em Deus e morrer em Deus; inspiro paz, expiro amor. Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração; quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. O Dhyāna Mantra nos possibilita alcançar regiões profundas do nosso ser, aproximando-nos da verdade bíblica de que no princípio era o Verbo, o som de Deus. Ele representa a essência de saṁnyāsa e tyāga: nascer em Deus e morrer em Deus. Representa o ritmo do Yoga, que simplesmente significa viver em Deus. Não é necessário reter o ar, como nos prāṇāyāmas convencionais. O tempo de retenção (kumbhaka) é nulo (tempo:1-0-1). Nascer em Deus, morrer em Deus... a todo instante o tempo todo... Treinar, treinar e treinar. Ritmo, ritmo e ritmo. Assim se resgata a memória, a história, o passado e assim se escreve uma nova história, o futuro. Continuamente nascendo e morrendo na luz de cada instante, para convergimos, infinitamente, para o seio da chama eterna. A disciplina é rítmica e coincide com a própria respiração. O tempo todo, o dia todo, respirar e viver o sagrado de cada instante fugaz e eterno que prova o adágio do mestre, do seu mestre e do mestre do seu mestre: entrarás no seio da luz, mas jamais alcançarás a chama. O seio da luz está no instante presente, e a chama, no eterno.

A Arte de Amar

Conforme vimos ao longo das seções anteriores, a consagração à fonte da perfeição na arte de amar (parabhāva-siddhi) denomina-se, tecnicamente, Bhāvana  Namaḥ. O esforço diário e continuado de Bhāvana (sentimento de amor e compaixão decorrente da percepção da unidade do mundo) Namaḥ (rendição) manifesta-se como śraddhā, o néctar (śakti) que jorra do coração puro, sob a forma do sentimento alturísta, natural e biológico, e que orienta, como uma bússola, o nosso movimento em direção à verdade. Estabelece-se, deste modo, a sintonia fina de todo o nosso ser com as frequências (noúres) de amor universal de onde emanam as intuições superiores. Śraddhā, em suma, contempla e torna fecundo cada um dos cinco estágios de Brahma-sāmīpya, o quíntuplo poder de convergência sintrópica, descritos nos capítulos anteriores: (1) Saṃkalpa, a firme resolução; (2) Ṛṣi-nyāsa, a internalização da divindade; (3) Viniyoga, a lembrança constante de Bhāvana Namaḥ; (4) Satya Tyāga, a consagração à Vontade Cósmica; e (5) Upasthāna, o agradecimento pela obtenção do estado de sintonia (dhyāna) e unidade (bhāvana) com o sagrado em nosso coração. Śraddhā expressa tanto a consagração (tyāga) de si mesmo à contemplação, bem como a escuta atenta desta rádio interior que nos orienta quanto à nossa conduta (karma), em conformidade com os nossos sentimentos superiores (Śreyas) e nos afastando do atendimento aos anseios inferiores, de origem passional e emocional (Preyas). Quando agimos com śraddhā, estabelecemos a sintonia com a energia (Brahma Śakti) da divina presença em nós (Sākṣī) e, consequentemente, com as ondas de rádio (noúres) emanadas dos mundos superiores.

NOTAS

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas, apresentado no final do Prefácio.

(2) “Mantra” deriva da raiz verbal “man” - "pensar". Man-tra, indica um instrumento do reto pensar. Sugere um pensamento estruturado em conformidade com a realidade, segundo fórmulas associadas à realização espiritual. Mantra pode ser definido como uma palavra, ou grupo de palavras, que auxilia na concentração e na meditação. Originalmente, os mantras correspondiam aos hinos sagrados dos Vedas e envolviam quatro aspectos: (1) o Rishi, ou vidente que primeiro viu o mantra, (2) a sua métrica, (3) a deidade que corresponde ao mantra e (4) a iniciação, ou resultado que a entoação do mantra oferece.

(3) É comum a utilização de um japa-mala, ou colar (mala) para entoar (japa) os mantras. Originalmente, o japa-mala era conhecido como Rudrākṣa, porque as contas do colar eram feitas de sementes conhecidas como os olhos (akṣa) de Rudra. O Rudrākṣa deu origem ao rosário cristão.

Por que eles têm 108 contas? Porque as contas representam uma forma simbólica de conexão com os ciclos cósmicos que, segundo os iogues, governam o universo. O japa-mala expressa a trajetória eclíptica do sol e da lua no céu, que os iogues dividem em 27 meses siderais, ou nākṣatras, conforme as 27 constelações que representam as 27 filhas de Dakṣa, a esposa da divindade Soma, a lua: Aśvinī; Bharaṇī; Kārttikā; Rohiṇī ou Brāhmī; Mṛgaśiras; Ārdrā; Punarvāsū ou Yāmakau; Puṣya ou Siddhya; Āśleṣā; Māghā; Pūrva-phālguṇī; Uttara-phālguṇī; Hasta; Citrā; Svāti; Viśākhā; Anurādhā; Jyeṣṭha; Mūla; Pūrvāṣāḍhā; Uttarāṣāḍhā; Abhijit; Śravaṇa; Śraviṣṭā; Śatabhiṣaj; Bhādrapāda; e Revati ([Harivaṃśa, (ed. Calc.)] 104; Mahābhārata 13, 3256). “Nākṣatra” pode ser traduzido como “aquilo que revela as leis à noite”, ou seja, as estrelas. Daí a sua associação com os ciclos lunares. Cada nākṣatra tem 108 graus, e está cada um associado a um tipo de energia. Além disso, acreditava-se que a distância entre a Terra e o Sol era de aproximadamente 108 vezes o diâmetro do sol. O Sol teria aproximadamente 108 vezes o diâmetro da Terra. E a distância entre a Terra e a Lua seria 108 vezes o diâmetro da lua. Acreditava-se também que o microcosmo (nós mesmos) refletiria o macrocosmo (o sistema solar). Estas são as razões pelas quais os antigos sábios consideravam o número108 como sagrado. Podemos dizer que existem 108 passos entre a consciência humana comum e a luz divina no centro de nosso ser.

Conforme se acredita, cada vez que recitamos um mantra utilizando as contas do japa-mala, estamos dando mais um passo em direção ao nosso sol interior. Um total de 108 linhas de campos de energia convergiriam para formar o chacra cardíaco. Os chakras seriam as interseções destas linhas de energia. A linha central de energia é conhecida na literatura do yoga como suṣumṇā. Por fim, o número 1 costuma representar Deus, a unidade, o não dualismo, a verdade mais elevada; o número 0 indica o vazio, o silêncio e a perfeição na prática espiritual; e o número 8 representa o infinito e a eternidade.


8 comentários:

  1. Belo texto !
    Gostoso demais de ler....
    Essa tal conquista da liberdade, além do Ashram, que vc descreve tão bem, no meu ponto de vista é fundamental pra se assimilar Suddha Yoga.....Jaya !

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    1. Grato, Margareth! Sempre bom ter a sua análise. Hoje eu dividi o texto em dois artigos, pois ele estava um pouco longo. A discussão sobre o Ashram, que estava na parte inicial deste artigo, agora constitui um artigo independente e aparece na abertura da conclusão do livro-blog.

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  2. Que maravilhoso, irmão. Para nós que estamos começando, e na ausência momentânea do nosso querido instrutor, é fundamental esse blog e o compartilhamento dos seus conhecimentos. Namastê! Gratidão! Abraços de Maceió.

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    1. Grato pelas palavras de estímulo, Wanderson. Fico feliz de saber que o livro-blog está sendo útil. Namastê!

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  3. Rubens, tenho que te agredecer por tão sublime ensinamento da tradição védica.
    O texto veio num momento apropriado pra mim.
    Namaskar!

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    1. Fico agradecido também, Simone, pela sua delicadeza em me deixar saber que o texto está sendo útil para o entendimento de algumas das sutilezas que caracterizam as Escrituras Sagradas.

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  4. Gratidão estimado irmão! Esteja certo da importância de suas publicações no meu processo evolutivo! Namasté! Forte abraço!

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