A ideia desta escuta sintrópica do sagrado coração, que dá a primazia àquilo que a consciência percebe como constituindo o melhor e mais justo (śreyas) sobre aquilo que o corpo experimenta como o mais prazeroso (preyas), está presente também na maioria das Upaniṣades, uma vez que elas tratam da mente e da relação do homem com o sagrado que reside no coração sob a forma de amor (Ātman).
Krishna desenvolve ao longo do Mahābhārata e equaciona no capítulo da Bhagavad Gītā a fenomenologia da consciência sintrópica. Vários episódios do Mahābhārata mostram como é difícil desenvolver a escuta do sagrado (ṛta, dharma) em sua pureza (śuddha). Krishna rompe com o que era geralmente aceito, promovendo o deslocamento do entendimento habitual do sagrado e das leis que regulavam as relações humanas. Não sem razão, a Bhagavad Gītā é reconhecida como uma alegoria poética desse deslocamento, que oferece um novo sentido para a luta interior do ser humano.
A Escritura Sagrada, por excelência, que trata da filosofia sintrópica e as suas leis, é a Bhagavad Gītā. O texto trata, não de uma religião em particular, mas do sagrado e da espiritualidade em geral. Trata dos princípios do altruísmo biológico, expresso sob a forma do sentimento sintrópico de “sagrado” presente nas diferentes tradições religiosas e do “humanismo” cultivado no seio das distintas culturas. Nesse sentido, pode-se compreender a Bhagavad Gītā, não como uma Escritura Sagrada com uma mensagem destinada, exclusivamente, a um povo, numa determinada época, mas, pelo contrário, como uma reflexão, que revela ao mundo a práxis da filosofia sintrópica. A Bhagavad Gītā nos possibilita sintetizar a essência da metafísica, presente nas várias mensagens religiosas, destinadas a distintos povos. No dizer de Mahatma Gandhi, o texto nos possibilita compreender as distintas religiões "como os galhos no tronco de uma mesma árvore".
Se a Bhagavad Gītā ainda não é assim reconhecida, isto se deve ao fato de existirem diferentes níveis de acesso e compreensão da filosofia sintrópica revelada no texto. De um lado, se consideramos que a Bhagavad Gītā nos apresenta Krishna como o Deus Absoluto, então nos relacionamos com o texto como se ele fosse uma espécie de Evangelho e a sua mensagem poderia ser resumida em algo como: “Só Krishna salva; Krishna é o caminho a verdade e a vida”. Nesse caso, a Bhagavad Gītā poderia ser entendida como uma Escritura Sagrada exclusiva que competiria, por exemplo, com a Bíblia, tentando impor-se como a palavra do Supremo Deus, único e verdadeiro, no caso, o Senhor Krishna. Por outro lado, quando considerarmos que a Bhagavad Gītā retrata Krishna transmitindo a Arjuna a filosofia sintrópica que nasce da experiência com o sagrado coração, na práxis, então esse coração metafórico, que representa a presença do sagrado no ser humano (Ātman), torna-se o caminho a verdade e a vida. Nesse caso, não é Krishna quem salva. Ele apenas aponta para as leis da sintropia, cuja base é o que chamamos, modernamente, de altruísmo biológico. É este altruísmo a marca essencial de toda e qualquer experiência verdadeiramente espiritualista, que independe da cultura, do tipo de fé religiosa, de qualquer divindade ou princípio metafísico.
O altruísmo biológico mostra o modo natural de nos relacionarmos com o nosso sagrado coração – que é o assento do Ser e, para muitos, a sede do Espírito Santo (Ātman). Krishna pede a Arjuna na Bhagavad Gītā para que cultive e desenvolva esta escuta sintrópica do coração que lhe permite colocar o altruísmo biológico em pleno funcionamento, expressando-se como o poder do amor em ação. Krishna trata dos critérios que devemos adotar na execução de toda e qualquer ação e define o puro yoga como expressão desse altruísmo biológico que nos leva a dar primazia àquilo que se acredita ser o melhor e mais justo (śreyas) em vez daquilo que nos aparece como o mais prazeroso (preyas). Ele identifica a sabedoria e a maestria na ação com a práxis sintrópica fundada nesta forma altruísta de renúncia e desapego. A renúncia de que trata Krishna é a renúncia ao interesse pessoal e jamais à ação necessária, justa e legítima, realizada pelo bem do outro.
O conceito de renúncia introduzido no texto da Bhagavad Gītā é a renúncia à ação egoísta, manchada pelo interesse próprio e que não leva em conta as leis da sintropia do universo. Quando se renuncia à ação egoísta, permite-se que o altruísmo biológico se torne o ator em nossas vidas. Esse é o tema do capítulo final da Bhagavad Gītā. Descreve um modo altruísta de operarmos no mundo a partir dos valores do sagrado coração. Obviamente, nem sempre é simples identificar o que isto significa. Se Gandhi, por exemplo, afirma ter realizado tudo o que realizou inspirado neste ensinamento da Bhagavad Gītā, conta a história que o assassino de Gandhi, também dizia estar “seguindo o seu coração”. Daí a importância do texto para nos auxiliar a despertar esta escuta do sagrado que se manifesta em nosso coração. Conforme ensina a Bhagavad Gītā, o desenvolvimento desta escuta sintrópica da essência vida em nosso interior não se dá, necessariamente, em associação com qualquer religião em particular. Daí se poder dizer que a Bhagavad Gītā é uma Escritura sobre as Escrituras, pois revela a ciência, a filosofia e a cultura sintrópicas, capazes de harmonizar as distintas culturas e tradições religiosas.
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(1) Playlist com a serie completa do Mahābhārata (B. R. Chopra) que passou como novela na Índia, nos anos noventa e foi lançada no ocidente em 2002: https://www.youtube.com/playlist?list=PLa6CHPhFNfadNcnVZRXa6csHL5sFdkwmV
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