2019-07-30

As Práticas de Meditação e a Cultura Sintrópica

Quadro simbólico do desenvolvimento da
tese Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007)
.
O objetivo principal das práticas de meditação é nos nutrir de śraddhā, o amoroso sentimento sintrópico que, como uma bússola interior, ilumina a razão em direção à Verdade e ao Absoluto (Brahma-sāmīpya). É esse sentimento que nos conduz do saṁsāra (realidade aparente) ao nirvāṇa (realidade sagrada), na medida em que aprofundamos a compreensão de Ṛta – a lei universal que rege os processos entrópicos da matéria inorgânica e os processos sintrópicos do mundo espiritual e orgânico.

As práticas de meditação se intensificaram no Ocidente a partir dos anos sessenta, impulsionadas pela contracultura –  movimento que questionava a cultura dominante em seus diversos aspectos, da política à religião.  Buscando a harmonia com a natureza e suas leis sagradas, os jovens da época buscaram na meditação um caminho de conexão com o fluxo sintrópico da vida, em contraste com as ideologias vigentes,  oriundas de filósofos e valores superados do século XIX. Inspirados pelo lema revolucionário de "Paz e Amor", deram origem a diversas comunidades hippies, adeptas das práticas de meditação. Era o Poder da Flor contra o poder das armas. Apesar de a utopia hippie não ter se concretizado, seus valores, como a busca pela paz interior e a harmonia com a natureza, gradualmente influenciaram a cultura ocidental, incluindo o Brasil1.  Assim, as práticas de meditação conquistaram espaço em universidades e sistemas de saúde, reconhecidas por seu potencial de harmonização individual e social."

Há um verso na Bhagavad Gītā que traduz perfeitamente o estado sintrópico de perfeita alegria (ānanda) que caracteriza os praticantes de meditação. Ele afirma2, literalmente:
Aquele que tem a mente disciplinada (saṁyamī3) está desperto (jāgarti) para o (tasyām) que (yā) é noite (niśā) para a maioria das pessoas (sarva-bhūtānāṃ). E tudo aquilo (sā) para o que (yasyām) a maioria (bhūtāni) está desperta (jāgrati) é noite (niśā) para o sábio (muneḥ) vidente (paśyataḥ). (BhG 2.69)
Em outras palavras, o homem santo (śuddha yogi), alheio aos atrativos da existência material e ilusória (saṁsāra) está desperto, unicamente, para o aspecto sintrópico, de sagrado de todas as coisas e experiências, que dilui as fronteiras entre as realidades objetiva e subjetiva (nirvāṇa).

O livro-blog reflete sobre o significado profundo do verso acima, partindo de dois resultados da tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007):
  1. o entendimento de que a ancestral e pura ciência da meditação e da comunhão com o sagrado nasce de śraddhā que, em linhas gerais, pode ser definida como: o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya); e
  2. o entendimento de que sob o prisma de śraddhā, a ciência ióguica, presente na Bhagavad Gītā, revela-se o tronco principal da árvore cujos galhos são, tanto o yoga, compilado nos Yoga Sūtra de Patanjali, como o yoga praticado por Siddhārtha Gautama sob a árvore Bodhi (ficus religiosa) em Bodh Gaya, quando este alcançou a iluminação, tornando-se o Senhor Buda (Iluminado).
Cabe destacar o sentido de "cultura" presente na definição de meditação oferecida pelo Senhor Buda. Ele fez uso dos conceitos de "bhāvana" (adjetivo) e "bhāvanā" (substantivo feminino) para explicar como "cultivar" a meditação. Empregados originalmente no campo da agricultura, ambos os termos passaram a indicar a ideia de desenvolvimento mental e contemplação. A meditação deveria, portanto, ser cultivada por todos, não importando o estágio em que cada um se encontrasse de início. Gradualmente, ela leva ao reconhecimento da presença do sagrado em todas as coisas e experiências da vida. É disto que tratam os capítulos que se seguem, onde procuramos externar o sentimento de unidade que decorre da meditação e se aperfeiçoa com ela, conforme veremos.

Os capítulos do livro-blog versam sobre o sagrado (nirvāṇa) oculto no mundo (saṁsāra):

I. INTRODUÇÃO
II. A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
III. O Śraddhā Yoga revelado na Bhagavad Gītā
IV. A Cultura e a Práxis Sintrópica (Bhāvana Namaḥ) 
V. A Ciência do Ser e a Epistemologia da Bhagavad Gītā
VI. A Contracultura como um Primeiro Movimento da Esfera da Práxis Sintrópica
VII. A Filosofia Sintrópica, o Ser, o Estado e a Civilização da Síntese
VIII. O Início da Jornada Interior
IX. O Caminho do Coração e o Encontro com os Mestres
X. A ciência Onírica e as Noúres
XI. A Disciplina Sintrópica no Núcleo Familiar (Guru-kula)
XII. CONCLUSÃO
ANEXO: Programa de Gestão Sintrópica (Opúsculo)
TESTEMUNHO: Mrityunjayanand Jee

O capítulo introdutório resume como as práticas de meditação estão contribuindo para o florescimento de uma cultura universal de paz e amor que se adéqua, perfeitamente, ao pensamento de vanguarda brasileiro. O segundo capítulo discute a origem e o desenvolvimento da arte e da ciência da meditação a partir das metáforas presentes na Bhagavad Gītā. O terceiro trata da essência do Yoga e como ele nos harmoniza com o sagrado (dharma). Descreve a arte reparativa que nos revela a essência (śuddha) do sagrado (dharma). O quarto trata da imanência e da transcendência do amor universal, esse sentimento poderoso que nos revela o aspecto de sagrado de todas as coisas. O quinto discute a ciência do Ser descrita na Bhagavad Gītā e a teoria epistemológica que lhe dá sustentação. O sexto faz um inventário das contribuições que estão dando forma à nossa cultura de vanguarda. O sétimo trata do sentimento sintrópico que promove a sinfonia da alma e a percepção do sagrado no mundo, encaminhando-nos em direção à civilização da síntese. O oitavo representa um testemunho sobre o poder de confiar a nossa vontade à arte de descobrir a presença do sagrado em si mesmo. O nono faz um inventário da jornada do herói até o encontro com os mestres.  O décimo considera o sujeito em sua relação com as experiências determinantes do processo de transfiguração interior. O décimo primeiro trata da disciplina sintrópica e ilustra como a família pode funcionar como uma egrégora de acolhimento, promovendo o processo regenerativo, não apenas dos seus membros, mas de todo o nicho ecológico onde ela se insere. E a Conclusão mostra, em suma, como a arte e a ciência da meditação descritas na Bhagavad Gītā definem a cultura de vanguarda deste novo milênio. O anexo apresenta um pequeno opúsculos sobre a gestão sintrópica, ilustrando como agir no mundo em sintonia com a compreensão de que, assim como o planeta Terra, as instituições humanas também constituem corpos vivos, que, em harmonia com o seu ambiente, crescem e se aprimoram. Por fim, o testemunho de Mrityunjayanand Jee revela o reconhecimento deste trabalho em torno de śraddhā.

Conforme mostramos ao longo dos capítulos, o coração de toda a cultura védica e upaniṣádica está representado na ancestral arte e ciência da meditação de que trata a Bhagavad Gītā. Os versos 23 a 28 do capítulo 17 da Bhagavad Gītā exprimem bem esta síntese de todo o conhecimento védico, realizada por Krishna. No verso 23, por exemplo, a expressão triádica "OM TAT SAT", tanto significa "OM, isto é a verdade!", como também representa os três níveis da prática de meditação discutida por Krishna ao longo da Bhagavad Gītā: Meditação Transcendental, ou Śuddha Dhyāna (OM), Meditação Objetiva, ou Saguṇa Dhyāna (TAT); e Meditação Subjetiva, ou Nirguṇa Dhyāna (SAT). Os versos 27 e 28 definem as condições necessárias para a prática de meditação (firmeza na internalização dos rituais, na postura austera e no cultivo da compaixão, bem como no desempenho de todas as atividades relacionadas com a meta suprema) e também apresentam como condição sine qua non o desenvolvimento de śraddhā. Sem śraddhā, ou seja, sem a presença deste sentimento amoroso fundamental, que dá unidade essencial (śuddha) a todo o fenômeno ético e religioso (dharma), nenhuma prática de meditação é digna deste nome. 

N O T A S

(1) A Tropicália é parte desse movimento, conforme ilustra a canção de Gilberto Gil "Aqui e Agora" (1977). "Esse lugar ao qual me refiro não é necessariamente geográfico ou topográfico. É um lugar especial, um lugar interior. Onde quer que a gente esteja, o melhor lugar do mundo é onde você está. E é agora, o tempo de hoje. Na verdade, isso é sobre a meditação. Essa meditação necessária que todos os seres, todos os humanos precisam fazer exatamente pra aguentar o tranco da dificuldade do mundo, que é muito grande. Gerir a existência nesse mundo é uma coisa complicada. O aqui e agora é um pouco isso. É a meditação sobre essa necessidade de estarmos íntegros, completos a qualquer momento e em qualquer lugar." (Gilberto Gil)
Aqui e Agora (Gilberto Gil)

Aqui e Agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui onde indefinido
Agora que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui de onde o olho mira
Agora que o ouvido escuta
O tempo que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui onde a cor é clara
Agora que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui longe em Nova Deli
Agora, sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui fora de perigo
Agora dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora

(2) या निशा सर्वभूतानां तस्यां जागर्ति संयमी।
yā niśā sarva-bhūtānāṃ tasyāṃ jāgarti saṃyamī
यस्यां जाग्रति भूतानि सा निशा पश्यतो मुनेः।।
yasyāṃ jāgrati bhūtāni sā niśā paśyato muneḥ (BhG 2.69)

(3) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.



Rio de Janeiro, 30 de julho de 2019.
(Atualizado em 05.01.25).

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