O que é o amor de que falam as religiões? Como definir, como buscar e experimentar aquilo que não se sabe, ao certo, o que é? Esta é a questão central da filosofia sintrópica, inaugurada no Oriente com o discurso de Krishna na Bhagavad Gītā, e que viria a ser praticada, séculos mais tarde, por Jesus de Nazaré — cujo exemplo logo atravessaria o mundo ocidental.
Dito de modo simples, o amor é o sentimento transcendente, universal e subjetivo da realidade absoluta, experimentado de forma imanente, parcial e objetiva por meio da faculdade da vontade — sede das emoções — e jamais pela razão lógica, que não o alcança nem o compreende. O amor não se expressa como um pensamento, mas como aquilo que o antecede e o inspira. Simbolizado na expressão sânscrita OM (AUM), esse sentimento representa, segundo a epistemologia da Bhagavad Gītā, a semente original de todas as existências e a causa do próprio surgimento do universo.
Do Espírito Absoluto (Ātman, ou Paramātman) emana a energia de amor puro (Śakti) que, ao se condensar, dá origem à matéria (Prakṛti). A gramática e a sintaxe do sânscrito nos lembram que tudo se origina do Transcendente Logos (OM) — o Verbo Divino, a expressão do Amor Transcendental que dá forma ao universo por meio de seus três aspectos: A-U-M, espírito, matéria e energia. O universo, assim, teria nascido da amorosa vontade criadora, que, no ser humano, forma a consciência, a mente e a energia vital, expressando-se como śraddhā: “Ekoham, bahusyam prajayeyeti” – Eu sou Um, tornar-me-ei também múltiplos seres.
Não foram poucos os pensadores ocidentais que reconheceram a dificuldade de abordar racionalmente a arte de amar. Blaise Pascal, por exemplo, afirmou que “o coração tem razões que a própria razão desconhece” e que “conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas pelo coração”. Séculos mais tarde, Erich Fromm afirmou em A Arte de Amar (1956) que o amor deve ser compreendido como uma arte, que, como todas as outras — da música à engenharia —, exige aprendizado, disciplina e prática. Quais, então, seriam os fundamentos da teoria e da práxis dessa ciência do coração, objeto de espanto e admiração de tantos religiosos, místicos, pensadores e filósofos?
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Pitágoras (c. 570 – c. 495 A.C.) |
Iniciei, em 1990, a primeira versão de Síndrome do Pânico: Aprendendo com a pedagogia da dor (Ed. Litteris: 1998). O título original, mais fiel ao espírito da obra, era Sorriso Interior: uma viagem ao passado em busca da disciplina do amor. Ele já identificava meu intento de compreender a arte de amar como uma disciplina iniciática. O nome “Sorriso Interior” homenageava o poema de mesmo nome do simbolista Cruz e Souza. O subtítulo se devia a um sonho vívido, no qual percebi como o medo e o pânico dominavam as pessoas fragilizadas pela ausência de amor — o que não ocorria com os verdadeiros sábios, os filósofos do coração, envoltos numa aura protetora de justiça, compaixão e luz.
Não foi acometido por esse medo Sócrates, mesmo diante da sentença de morte. Tampouco Pitágoras, que me apareceu no sonho como aquele que introduzira a teoria da reminiscência entre os gregos. Ele me explicava por que nenhum mal da mente atinge os que cultivam a proteção arquetípica dos deuses — arquétipos que os homens vão progressivamente incorporando à medida que se tornam verdadeiramente filósofos: sábios e amantes da sabedoria divina. No início, o homem aprende com os próprios erros; depois, com os exemplos alheios; e finalmente, pela luz do amor que ilumina a consciência e permite prever, por si mesmo, o melhor caminho a seguir.
Em um outro sonho, relatado também no livro, uma deusa me revelava o lado obscuro do meu passado — sombras de outras vidas ainda atuantes nesta. Ela fazia aflorar fraquezas que eu sequer reconhecia. Bastava-lhe uma pergunta para que todo um processo catártico se iniciasse. Disse-me que fora ela quem provocara, na cena anterior, meu reencontro onírico com um velho colega de escola, no qual tínhamos o poder de reviver qualquer memória com intensidade emocional total. Isso nos permitia reavaliar amizades e perceber como, com o tempo, todas as desavenças se tornavam pequenas e sem importância.
Ela mostrou-me, em imagens, cenas do passado e aspectos ocultos do meu caráter. Quando lhe mostrei as palmas das mãos, em sinal de franqueza, ela respondeu que ainda havia muitas máculas. Deveria me dedicar mais intensamente à minha disciplina, se quisesse cruzar o portal iniciático guardado por ela. Revelou-me as misérias ainda escondidas nas antecâmaras do meu coração. Acordei assustado com quem eu era — e não sabia.
No livro, busquei refletir dramaticamente sobre esses obstáculos ao caminho da arte de amar, como Pitágoras a concebia. Era preciso compreender e arrancar as raízes do egoísmo e do mal. Mas que ciência seria essa que eu não dominava? Por que gravamos facilmente as ofensas, mas temos dificuldade em reter o bem? Por que a memória fixa o mal que nos fizeram com mais força que as bênçãos recebidas?
Essa força que às vezes nos leva a dizer: “Aquele não era eu” — mas era. Um eu dividido, que ainda não sabe julgar seus próprios desejos. Um eu esquecido de que somos parte de um só corpo ecossocial. A mente, como uma caixa preta, só pode ser compreendida com a ajuda das musas, filhas de Zeus com a Memória. São elas que validam as verdades dos processos catárticos e nos despertam para a arte de amar.
A filosofia convencional afirma que o homem, dotado de razão, tem consciência de si como entidade separada do todo. Mas a filosofia do coração, presente em todas as literaturas sagradas, entende o sentimento de amor como bússola da consciência. Essa consciência é a imagem luminosa do Espírito Universal, refletida no corpo — e que irmana todos no processo de autodescoberta.
Se a luz do amor ainda não brilha em nós, é porque estamos dominados por desejos egoístas e paixões inferiores que impedem sua manifestação. Por isso as tradições religiosas propõem a purificação dos desejos, para que essa luz possa emergir. A questão, então, é: como superar o aparente estado de separação da consciência de si e reconhecer a imanência e transcendência do amor que nos anima?
Essa questão me guiou ao longo dos registros do diário que mantenho desde a juventude — e que tentei, sem sucesso, transpor em uma obra ficcional. Mas encontrei uma outra resposta. Compreendi, enfim, que os sonhos são o modo pelo qual aprendemos a aprender com os deuses. Eles revelam, como ensinaram Pitágoras, D. Bosco, Bhagavan Das e tantos outros, os segredos ocultos da arte de amar. Cada sonho é uma obra de arte — e deve ser contemplado como se contempla um quadro num museu de revelações.
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SUMÁRIO GERAL
Rio de Janeiro, 18 de abril de 2017.
(Atualizado em 11.05.25)
(Atualizado em 11.05.25)
"Diferente é a atitude perante a vida quando a revelação interior fere como um raio"....
ResponderExcluirA beleza da experiência interna profunda quando é possível expressa-la e se faz visível ao olho de quem reconhece tais experiências....
Consegui identificar... Silo! Em A Cura do Sofrimento e o Olhar Interior. Grato pelo paralelo.
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