2025-07-20

Śraddhā Quaerens Intellectum: O Dilema Moderno da Criatividade e o Nascimento de um Novo Paradigma (IV)

(Parte I: veja aqui)

IV. Estilo e a Expressão da Essência

IV.1. Estilo: a assinatura da svabhāva purificada

Na estética moderna, “estilo” é a identidade visível de um artista ou escola. No entanto, essa identidade é frequentemente compreendida como um produto cultural — um acordo, uma tendência, uma marca registrada. A Bhagavad Gītā, ao contrário, propõe uma ontologia do estilo: estilo é a forma sensível manifesta sob o selo de qualidade de nossa própria śraddhā. Sua essência não é o ego; é a svabhāva purificada, isto é, a natureza do ser libertada das flutuações dos atributos da natureza material, guṇas, e reorientada pelo dharma. O estilo autêntico, portanto, não é escolha estética nem modismo — é a "expressão inevitável do alinhamento entre o criador e o real".

“Melhor cumprir o svadharma, mesmo imperfeitamente, do que o dharma de outro com perfeição.” (BhG 3.35)

Este verso afirma que a autenticidade — e, por extensão, o estilo — não está na perfeição formal, mas na fidelidade à própria natureza. Um estilo verdadeiro não é fabricado; ele emerge. É uma “assinatura ontológica”. É o modo como o Ser escreve através de um corpo e uma alma específicos. Deste modo, o estilo é a cristalização sensível da qualidade, guṇa (tamásica, rajásica ou sáttvica), da nossa śraddhā. Ele não é um ornamento; é o perfume inevitável da jornada do coração egóico ao coração enquanto repositório do Ātman.

IV.2. Mārga e sampradāya: tradição como veículo da originalidade

Para a tradição indiana, a originalidade não se opõe à linhagem. Ao contrário, ela se revela a partir de um profundo enraizamento nela. Termos como mārga (caminho) e sampradāya (linhagem tradicional) indicam que toda expressão legítima e original nasce de uma base sólida, não do vazio ou de uma ruptura cega. A própria Bhagavad Gītā se apresenta como o texto paradigmático onde esse nascimento enraizado é explicitado por Krishna, quando ele afirma estar resgatando o puro e ancestral yoga que havia se perdido. No entanto, este enraizamento não é o ponto final. A verdadeira jornada, em conformidade com svādhyāya, reside em uma imersão tão profunda que nos permite transcender o formalismo do caminho (mārga) e a simples herança da linhagem (sampradāya), levando à realização de uma verdade pessoal e direta.

A Bhagavad Gītā demonstra que a liberdade real só surge quando buddhi se ilumina pela luz do Ātman e, consequentemente, pode reconhecer e expressar Ṛta. O artista livre não é o que rompe com tudo, mas o que se apresenta segundo essa luz. Ele dança com a tradição, mas com novos passos. Krishna, ao proclamar sua natureza como “preservador da ordem” e “renovador do dharma” (BhG 4.7–8), exemplifica esse princípio: manter e inovar não são opostos, mas aspectos do mesmo gesto divino. A tradição viva é aquela que acolhe o novo sem perder o eixo. E o novo legítimo é aquele que respeita o processo sintrópico onde se insere, fazendo-o avançar.

O śraddhā yogin reconhece, gradualmente, o ordenamento sintrópico do universo, garantido pela lei universal, Ṛta. Ele avança e transcende o conhecimento passado quando a sua śraddhā assim lhe permite, tal qual se deu com Arjuna na Bhagavad Gītā. Ele não se escraviza ao estilo de uma época, mas tampouco o despreza. Sua originalidade é litúrgica: é oferenda ao Ser, não exibição do ego.

IV.3. Samatvam e kauśalam: o ápice do estilo é a maestria desapegada

A Bhagavad Gītā nos oferece dois termos que revelam o clímax da expressão estilística sintrópica:

  • Samatvam — equanimidade, equilíbrio perfeito entre polos.
  • Kauśalam — maestria, habilidade refinada, precisão da ação.

Ambos estão no centro do śraddhā yoga, e juntos revelam o que poderíamos chamar de estilo sintrópico. A equanimidade impede que o estilo se torne vaidade. A maestria impede que ele se torne amadorismo espiritual. A união dos dois revela o artista como místico da práxis sintrópica. O verdadeiro estilo não está na excentricidade, mas na coerência e consistência. Não está na ruptura radical, mas na harmonia do desabrochar de uma nova semente. O śraddhā yogin age com tal precisão, clareza e desapego que sua ação — seja artística, científica, filosófica ou cotidiana — torna-se uma extensão de Ṛta no mundo visível.

Este é o estilo que revela o Ser sem o mascarar. É gesto puro, sem ruído. É expressão da Svarūpa por meio da svabhāva rendida. É presença viva da ordem sintrópica através da singularidade humana.

IV.4. Śraddhā Quaerens Intellectum: A Criação como Revelação Sintrópica

A jornada que percorremos, da crítica à modernidade até a reintegração da razão com o coração, nos permite afirmar com clareza: o processo de criação humana não é invenção do ego, mas revelação do Ser.

A Bhagavad Gītā, em sua sabedoria milenar, nos oferece uma teoria completa do processo criativo, onde:

  • A essência (svarūpa) é a verdade do Ser;
  • O talento (svabhāva) é sua modulação manifesta;
  • A inspiração (prajñā) é o influxo de Ṛta;
  • A intuição (buddhi purificada) é a visão interior;
  • O gênio é o sujeito que se unificou com o consigo próprio, enquanto expressão do Ser;
  • O estilo é a forma que irradia a consciência;
  • E śraddhā é o fio de ouro que costura todos esses níveis em um ato sagrado e sintrópico de criação.

Segue-se daí o nosso entendimento de que a fórmula Śraddhā quaerens intellectum expressa o paradigma sintrópico que está orientando o surgimento de uma nova epistemologia espiritual e científica. Uma epistemologia onde o conhecimento não é fragmentação, mas conexão; onde a razão deixa de ser, simplesmente, lógica e ignorância, mas o centro irradiador da certeza interior que surge da luz do coração, onde reside o Ser, a única fonte absoluta de certeza e verdade.

Criar, deste modo, não é apenas produzir obras, mas manifestar a verdade do Ser através da consciência alinhada, com foco absoluto no coração. A verdadeira arte, a verdadeira ciência, a verdadeira ação — todas nascem do foco absoluto do coração, fonte de śraddhā, a energia que nos alinha com o prāṇa, com a śakti cósmica e, consequentemente, com a sua lei, Ṛta, origem de tudo e do próprio universo. Inspirado por śraddhā, não mais se busca ser original, mas ser verdadeiro; não mais se busca brilhar, mas se tornar luminoso para poder iluminar aquela verdade que já intuímos, mesmo que ainda sem compreender perfeitamente: o Ser sempre esteve aqui, no agora, esperando para ser manifestado através de nós.

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