2018-12-18

As Correntes Noúricas de Pensamento: dos Vedas até o Manuscrito do Purgatório e a ciência moderna

Quando se olha para o céu, tem-se um sentimento de unidade
que encanta e dá vertigem. (Ferdinand Hodler)
Na serie de artigos que compõem este capítulo introduzo a discussão sobre o estado de sonho e a sua relação com as correntes superiores de pensamento, implícitas, tanto no conceito védico de “Ṛṣi-nyāsa”, como no conceito das “noúres”. Este termo foi cunhado por Pietro Ubaldi a partir de duas palavras gregas, "nous" (pensamento) e "rhéo" (fluir), para expressar aquilo que os filósofos chamam sentimento intuitivo; os artistas, de inspiração; os religiosos de revelação e mediunidade; os xamãs, de estados alterados de consciência e percepção; e outros ainda, de innernet1

Segundo a lei universal da ressonância e da afinidade espiritual (Ātma-śakti dharma, fundada no funcionamento de tejas e śraddhā), que se encontra na base da ciência do espírito, podemos, tanto contagiar aos demais, como nos deixar contagiar pelos seus diferentes estados de ânimo. A mente humana é capaz de vibrar e de entrar em sintonia e ressonância com diversas correntes psíquicas, as quais dão origem a uma enorme gama de emoções, sentimentos e pensamentos. Daí a importância dos mantras, das orações e das disciplinas espirituais que nos convidam a elevar o nosso estado da alma, para que ela possa se nutrir dos nobres ideais e valores vividos por aqueles que alcançaram os planos superiores da consciência. Ṛṣi-nyāsa2 representa, basicamente, a disciplina de internalização e incorporação (nyāsa) do ideal de unificação com a esfera dos seres divinos e santos (Ṛṣi), tornando-nos aprendizes das hostes celestiais e instrumentos, portanto, da vontade cósmica. De acordo com a literatura sagrada da Índia, Ṛṣi-nyāsa representa a ancestral técnica védica utilizada pelos Rishis (videntes) na elaboração de textos sagrados, manifestando-se, em suma, como a capacidade de fazer de toda atividade humana um meio de acesso à energia sintrópica (brahma-śakti). No Ṛgveda esta energia aparece personificada como a deidade Śraddhā; no Mahābhārata, como Durgā, a encarnação do aspecto de invencibilidade da divindade. Tanto o Ṛgveda como o Mahābhārata nascem como expressão e consequência de Ṛṣi-nyāsa, que encontram, então, no diálogo entre Krishna e Arjuna na Bhagavad Gītā a sua representação paradigmática.

I. O Paradoxo do Sonho e as Noúres

O tema da inspiração espiritual, ou das Noúres (Ṛṣi-nyāsa), está magistralmente retratado no misterioso e pouco conhecido manuscrito de Dr. R. V. Khedkar, The Dream Problem (Delhi: Practical Medicine, 1922), discutido por nós (veja aqui). O texto descreve as experiências de uma pessoa que entra, conscientemente, no estado de sonho e lá encontra vários sábios com quem discute os conceitos de realidade, estado de vigília, de sonho, sono profundo e transcendência.  A primeira referência à teoria destes "quatro estados de consciência", discutidos no manuscrito The Dream Problem, muito provavelmente, seja a contida na Chāndogyopaniṣad nas seções 8.7-12, que abordam: (1) o estado de vigília (jagrat), (2)  o sonho (svapna), (3) o sono profundo (suṣupti) e (4) o estado transcendente (turiya). Estes quatro estados de consciência são também objeto da sucinta Māṇḍūkyopaniṣad, que os associa com a sílaba OM. Os três primeiros estados corresponderiam, respectivamente, às três letras A-U-M, que compõem o OM, o quarto estado. Desse modo, o estado de vigília corresponderia à consciência atuando no corpo físico; o estado de sonho, à atuação da consciência no corpo sutil; o estado de sono profundo, à nossa condição no corpo causal; e o estado transcendente, à nossa condição de consciência pura, para além do corpo.

A questão fundamental que o manuscrito The Dream Problem introduz com base nesses quatro estados pode ser colocada nos seguintes termos: quem nos garante que este mundo não faz parte apenas de outro tipo de sonho, do qual despertamos com a morte? O que se pode inferir, portanto, sobre a verdade e cientificidade da inter-relação das correntes de pensamento originárias desses quatro “mundos” que se desdobram do Absoluto, simbolizados, respectivamente, pelos estados de vigília, sonho, sono profundo e transcendente, tal como definido em Ṛṣi-nyāsa, ou pelas noúres? Uma resposta mais próxima de nossa própria tradição pode ser encontrada em Fernando Pessoa, que se dizia o psicógrafo de si mesmo, e afirmava escrever a partir da “sintonia” com os seus heterônimos. É a sintonia com certas correntes superiores de pensamentos (noúres) que a filosofia do coração, a espiritualidade, as artes e as ciências contemporâneas procuram, de algum modo, estimular e desenvolver. Esta sintonia conduz ao desenvolvimento do entendimento de que há uma Lei (dharma) Eterna (sanātana) que nos é parcialmente acessível e nos possibilita o progressivo contato com as verdades eternas, desde as origens do universo, quando os planos material e espiritual encontravam-se em harmonia e unidade. É esta matéria que pretendemos tratar um pouco mais detalhadamente a seguir.

II. A Inspiração e o Sentimento Sintrópico

Para compreender a relação do sentimento sintrópico com a ciência, a arte e a religião temos que romper com a ideia dicotômica de que os cientistas lidam, exclusivamente, com fatos, enquanto os artistas e os espiritualistas lidam com valores. Esse rompimento, presente no pensamento de destacados filósofos, leva ao reconhecimento do caráter fenomenológico da consciência e, consequentemente, de que os valores são objetos de uma intuição que capta os fatos antes de toda fixação lógica (clique aqui para acessar um pequeno vídeo  do Prof. Edgard Leite ilustrando este ponto). Para Max Scheler (1874-1928), por exemplo, as decisões acertadas que tomamos não possuem, necessariamente, uma base estritamente objetiva, ou racional. A subjetividade contribui neste processo exigindo, vez por outra, o rompimento com um dado tipo de racionalidade e a instauração até mesmo de um novo paradigma. O sentimento de Einstein, por exemplo, o fez apostar na teoria da relatividade, já o de Max e Planck, na teoria quântica. Embora ambas as teorias sejam científicas, estão ancoradas em sentimentos distintos. Esta tendência em reconciliar a razão com a esfera dos sentimentos intuitivos, que nos servem de bússola, mostra que a ciência está cada vez mais consciente de sua função de guardiã do templo da sabedoria, onde os antigos mistérios são reinterpretados sem perder o seu caráter de sagrado.

Blaise Pascal (1623-1662), um ardoroso defensor do método científico, já destacava o papel do sentimento, como se vê em Pensamentos (Martins Fontes, 2005):
Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração.  É desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisso, tenta combatê-los. [...] Os princípios se sentem, as proposições se concluem, [...] e é tão inútil e ridículo a razão pedir ao coração provas dos seus primeiros princípios por querer consentir neles, quanto seria ridículo o coração pedir à razão um sentimento em todas as proposições que ela demonstra por querer recebê-las.” (Pascal, 2005, pp. 38-39.)
O coração tem razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas. Digo que o coração ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme ao que se dedica. (Pascal, 2005, p. 164.)
É o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé. Deus é sensível ao coração, não à razão. (Pascal, 2005p. 164)
A fé é um dom de Deus. Não creia que é um dom de raciocínio. (Pascal, 2005, p. 257.)

Estas mesmas verdades, expressas a partir de um ponto de vista menos místico e mais poético, estão destacadas no conselho de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus, em uma carta de julho de 1903, onde Rilke sugere um primeiro passo para se aprender a lidar com os segredos do coração.  Ele diz:
Tenha paciência com todas as coisas insolúveis em seu coração e tente se afeiçoar às próprias questões como se fossem de um quarto trancado, ou como livros escritos em uma língua desconhecida. Não busque agora as respostas; elas não podem ser dadas a quem não está pronto para vivê-las. E se trata de viver tudo. Viva agora as questões. Viva-as talvez aos poucos, sem notar, até chegar à resposta um dia distante.
Visão de Mundo
O sentimento está na origem do processo de formação de uma ideia. Representa a habilidade para equacionar demonstrações matemáticas e também a coragem para enfrentar novos desafios. Auxilia tanto na compreensão preliminar de problemas, como no desenvolvimento de soluções sofisticadas, que fazem avançar o conhecimento provisório que temos dos nossos objetos de estudo. O sentimento é parte essencial da heurística que utilizamos para construir a nossa visão de mundo. Será tão mais confiável quanto mais solidamente estiver em sintonia com a bússola do coração. Quando alinhamos a razão com o coração, nasce o sentimento intuitivo sintrópico, que se apresenta como certeza interior e, logo, como a certeza científica. 

Tanto na ciência como nas artes de um modo geral, a intuição não é uma coisa que surge do nada, sem esforço, estudo e dedicação. Pelo contrário, ela está diretamente relacionada com uma mente alinhada e iluminada pela luz natural do coração. Quando a mente silencia, tudo se ilumina, conforme sugere a célebre frase de Einstein "penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho no silêncio e eis que a verdade me aparece". O sentimento aponta para a direção correta do mesmo modo que uma bússola, mas sem explicar o porquê. Quem já procurou ajudar com os deveres de matemática dos filhos, por exemplo, experimentou este sentimento que já atendeu, previamente, a todos os pré-requisitos da razão. Sabe resolver o exercício, sabe que a sua solução está correta, mas as regras racionais para chegar àquela solução ficaram perdidas em algum lugar.

III. As noúres e o Manuscrito do Purgatório

O antigo programa "Pinga Fogo" da TV Tupi de São Paulo recebeu como entrevistado na noite de 28 de julho de 1971 o médium Chico Xavier (veja aqui). Na ocasião, Herculano Pires, um dos entrevistadores, fez uma observação, lembrando a existência de um livro católico, publicado pelas Edições Paulinas, que atestava o fenômeno psicográfico. Referia-se ao texto O Manuscrito do Purgatório (1968), psicografado por uma freira, a Irmã Maria da Cruz, do convento de Valognes, Espanha e traduzido ao português pelo padre Júlio Maria, conhecido por sua atuação na revista "Ave Maria". Após esta observação de Herculano Pires, Chico Xavier toma a palavra lembrando que o livro de pedra “Os Dez Mandamentos”, de Moisés podia ser considerado o primeiro desta categoria no ocidente, ou seja, “ditado” do mundo espiritual.

O ponto relevante para o argumento que queremos desenvolver aqui é que o livro Le Manuscrit de Purgatoire, traduzido para o português, pela primeira vez, em 1953 por Mons. Ascânio Brandão com o título O Manuscrito do Purgatório e o Imprimatur de Dom Paulo, Bispo Auxiliar de S. Paulo, é suficiente para provar a existência de uma psicografia católica, publicada com todas as autorizações eclesiásticas, conforme se comprova pelas suas páginas de abertura, de autoria dos teólogos Revmo. Con. Paul Contier e o Revmo. Con. Dubosq, que examinaram, cuidadosamente, o texto e o julgaram isento de qualquer erro – uma obra digna de ser lida e meditada por todos. A autenticidade do Manuscrito do Purgatório não pode ser posta em dúvida. O texto é propriedade da Direction de L’ Associaction de Notre-Dame de La Bonne-mort, Sainte Marie Tinchebray (Orne) – France, com o Imprimátur do Vigário-Geral de Roma, Monsenhor Joseph Palica – Arcebispo Philipens.

A Irmã Maria da Cruz passou a ouvir vozes oriundas do mundo dos mortos a partir de novembro de 1873 e registrou, entre fevereiro de 1874 e 1890, o que seriam as correntes de pensamento (noúres) da Irmã Maria Gabriela, jovem religiosa, sua ex-colega, falecida em Valognes em fevereiro de 1871, com 36 anos de idade e presa no lugar que identificara como sendo o "Purgatório". Ela recebera permissão para pedir a ajuda da sua antiga companheira para se libertar e seguir para o céu.

O fato curioso, como é bem sabido, é que a Igreja Católica condenou o kardecismo e as obras que o fundam, publicadas entre 1857 e 1868, por professarem a doutrina da psicografia e a teoria da reencarnação de Hippolyte Léon Denizard Rivail, que mudou o seu nome para Allan Kardec. O argumento dos teólogos da Igreja não é sobre a impossibilidade de se acessarem as noúres, mas sobre o altíssimo risco das pessoas serem enganadas por “demônios” que se fazem passar pelos mortos com os quais acreditam estar em contato. Daí decorre a proibição desta prática pela Igreja, uma vez que os “demônios” se valeriam dos chamados médiuns para acessar as correntes de pensamento dos mundos inferiores, oriundos de espíritos imundos, que saem do inferno e que invadem a Terra para a perdição das almas. No dizer da Bíblia, assim são os falsos profetas e os falsos doutores que confiam na própria inspiração e, fazendo-se de apóstolos de Cristo, introduzem, disfarçadamente, seitas perniciosas. Para a Igreja Católica, Hippolyte Léon Denizard Rivail teria sido um destes médiuns: homem culto, mas com uma alma perdida.

IV. O Dogma da Santíssima Trindade

A mais antiga representação da Santíssima Trindade (350 d.C),
produzida pouco após o Concílio de Niceia (325 d.C.).
(Museus do Vaticano)
Antes de concluir gostaria de dizer algumas palavras de esclarecimento, com respeito ao opúsculo De Trinitate do educador romano Boécio (c. 480-525). Inaugura-se com ele o período que ficou conhecido como a Escolástica, cujo método formal molda o pensamento ocidental e dá origem às primeiras universidades. Ao valer-se do instrumental aristotélico para a análise do conteúdo da fé na Trindade postulada pela Igreja, Boécio cria as bases para o pensamento teológico descrito na Suma Teológica de Tomás de Aquino (1225-1274). Não por acaso, o termo escolástica relaciona-se com escola. As primeiras escolas originaram-se a partir do método e estilo de pensamento teológico boeciano, já presente no pensamento de Agostinho (354–430), que relaciona a fé e a razão no Sermão 43, quando afirma: crede ut intelligas, "crê a fim de que entendas".

Apesar de ser um tratado teológico, De Trinitate não faz sequer uma única citação ou referência à Bíblia, uma vez que ali o conceito de Trindade inexiste. Para Boécio, enquanto a ciência opera racionalmente com imagens, a teologia opera com a intuição intelectiva (intellectualiter), que vê não a imagem (objetos do mundo), mas a forma verdadeira (que se oculta nos objetos).

No cap. II, Boécio destaca: “Uma estátua constitui-se como tal e se diz efígie de ser vivo, não pelo bronze, que é matéria, mas pela forma nela esculpida.” Mais adiante, no cap. III, afirma: “Assim, pois, se predica do Pai, Filho e Espírito Santo, três vezes Deus. A predicação tríplice não constitui número plural.” O texto de Boécio deixa claro que Pai, Filho e Espírito Santo, são iguais, mas não são o mesmo.

Esta tentativa de Boécio conjugar razão e fé não passa despercebida a Tomás de Aquino, que procura adequar os dois modos distintos de procedimento teológico: aquele derivado do argumento de autoridade dos líderes religiosos e o outro derivado do uso da própria razão. Em Tomás de Aquino tal adequação procura esclarecer o mistério da Trindade através da distinção relativa das três Pessoas que formam uma única unidade. A questão 28 da prima da Summa, no artigo 3, expressa uma idéia que bem poderia constar da mística oriental: "A substância contém a unidade; a relação multiplica a Trindade". O entendimento de tal expressão fica claro quando se conhece a formulação da filosofia advaita (não-dual) de que TODOS SOMOS UM, o que torna o significado de “pessoa” (eu, tu, ele/ela) o de “relação”. A alteridade, portanto, em concordância com o que conclui o próprio Tomás de Aquino, não pode ocorrer na Substância divina.

Tanto em Boécio como em Tomás de Aquino, a Substância divina é forma. A substância seria responsável pela unidade; e a relação o seria pela Trindade. E a razão da unidade seria a ausência de diferença, pois o princípio da pluralidade é a alteridade. Seria de se esperar, portanto, a inferência de que se Deus, sendo forma sem matéria é Um; nós, filhos, seríamos Um com Ele. Contudo, tanto em Boécio como em Tomás de Aquino a segunda pessoa da Trindade corresponde, não ao Cristo que reside em todos nós, mas à figura exclusiva de Jesus de Nazaré. Este entendimento torna, conforme veremos a seguir, o Dogma da Santíssima Trindade incompatível com a Teoria da Reencarnação. Daí a condenação pela Igreja desta última.

V. A Incompatibilidade entre o Dogma da Santíssima Trindade e a Teoria da Reencarnação

A doutrina da reencarnação sempre foi vista como uma ameaça aos dogmas da Igreja, embora estivesse presente entre os cristãos dos primeiros séculos. E ainda hoje o próprio conceito de “espiritualidade” costuma ser entendido como sinônimo de heresia. Eram considerados hereges todos aqueles que liam livros não autorizados pela Igreja e seguiam o cristianismo segundo as suas consciências. Quem divulgasse a doutrina da reencarnação, por exemplo, cometeria heresia e seria considerado “cismático” por não se submeter à Autoridade da Igreja por intenção e vontade própria (característicos do cisma). O ponto crucial para se reprimir a doutrina da reencarnação é a sua incompatibilidade, do ponto de vista teológico-filosófico, com o dogma da Santíssima Trindade, concebido para resolver as disputas entre as distintas correntes do cristianismo. 

O Dogma da Santíssima Trindade não aparece em nenhuma passagem bíblica. Foi estabelecido pela Igreja quando os bispos se reuniram no Concílio de Niceia em 20 de maio de 325 d.C. para resolver a crise gerada por certas correntes do cristianismo que discutiam se não teria havido um tempo em que o Cristo ainda não existia. Se o Pai tivesse gerado o Filho, este, por ter sido gerado, teria tido um início de existência. Para estabelecer o novo dogma, a Igreja teve que abolir a teoria da reencarnação, então em voga, pois estava implícito no novo dogma que o espírito do Cristo teria sido o único a ter pré-existência em relação ao nascimento. Só o Cristo é Deus, é unigênito - "o Filho unigênito". Os demais "espíritos" seriam frutos da "matéria" - filhos de pais e mães de carne-e-osso, ou seja, concebidos através das conjunções "carnais". Estes novos espíritos não seriam filhos legítimos de Deus, mas poderiam, pelo batismo, tornarem-se "filhos adotivos" de Deus. Deixando de lado o argumento da Igreja de que a teoria da reencarnação nos colocava perigosa e vaidosamente próximos, em imagem e semelhança, ao próprio Cristo, cabe observar a contradição lógica presente nesta explicação alternativa, que nega a teoria da reencarnação: acreditar que o espírito (imperecível por natureza), possa nascer da carne (perecível), não é diferente de acreditar que de uma goiabeira possam surgir abacaxis.

A Doutrina da Reencarnação era comumente aceita como prova da amorosa e imparcial Justiça Divina. Embora a maioria das evidências sobre esta teoria tivessem sido cirurgicamente removidas da Bíblia, juntamente com vários textos considerados apócrifos, restaram aqui e ali alguns resquícios. Por exemplo, quando perguntado sobre a volta de Elias, Jesus responde que Elias já voltara – era João Batista (Mateus 17:12 e 13). Elias fora um juiz severo que havia mandado decapitar várias pessoas (I Reis 18:40). Curiosamente, João Batista também é decapitado. 

VI. A Forma Triangular e a Grande Invocação

A forma triangular guarda a multiplicidade que esconde a unidade. As representações do triângulo estão presentes na tradição ocidental pelo menos desde o Timeu de Platão (428/427 - 347 a.C.), que descreve os sólidos geométricos e os associa ao entendimento dos fundamentos da natureza. No oriente tais representações aparecem nas mais antigas mandalas. Modernamente, uma idéia similar foi utilizada para dar forma à Grande Invocação dos Triângulos (veja aqui). Não pretendo discutir a história de como Alice A. Bailey a teria recebido do mestre tibetano Djwhal Khul e sim ater-me à utilização da forma do triângulo na Grande Invocação.

Por meio da técnica dos triângulos, as pessoas familiarizam com  a ideia de unidade subjacente à trindade e isto atualiza, naturalmente, o entendimento que elas têm da sagrada identidade entre a Trindade e a Unidade. Quando três pessoas unem-se mentalmente a fim de meditar, um triângulo é formado. Os triângulos formam redes de luz e de boa vontade que, como ondas de rádio, reverberam no espaço para muito além do alcance da nossa voz, promovendo a aproximação das diversas crenças e dos seus praticantes. Nada se pede na Grande Invocação. Ela é desinteressada, impessoal e universal, e, por isto mesmo, tem o poder de atualizar o nosso entendimento, aproximando-nos uns dos outros e, consequentemente, da fonte universal de amor e luz espiritual. Ei-la, por fim:

A GRANDE INVOCAÇÃO

Do ponto de Luz na Mente de Deus
Flua luz às mentes dos homens.
Que a Luz desça à Terra.

Do ponto de Amor no Coração de Deus
Flua amor aos corações dos homens.
Que o Cristo volte à Terra.

Do centro onde a vontade de Deus é conhecida
Guie o propósito as pequenas vontades dos homens –
O propósito que os Mestres conhecem e a que servem.

Do centro a que chamamos raça dos homens
Cumpra-se o Plano de Amor e Luz.
E que ses cerre a porta onde mora o mal.

Que a Luz o Amor e o Poder restabeleçam o Plano na Terra.

VII. Conclusão

Somos os responsáveis, através do padrão de nossos pensamentos, pela realidade do mundo em que vivemos. Qualquer comunidade nada mais é que a soma desse padrão de pensamento de todos os seus membros. É o modo distinto segundo o qual cada um age e interage que dá forma ao tecido social e às suas instituições. Dentre elas, umas das principais é a Igreja Católica, que, conforme vimos, já atesta e aprova o Manuscrito do Purgatório, pois confia na autenticidade do texto. Reconhece, portanto, como legítima e verdadeira a possibilidade de psicografia oriunda de almas do Purgatório. E ao fazê-lo mostra aos católicos como o entendimento dos seus dogmas e crenças é dinâmico, devendo, portanto, ser atualizado no tempo, em função de nossas próprias experiências místicas. Esta mudança sutil no posicionamento da Igreja nos leva a acreditar, em suma, que não está distante o dia em que os cristãos, em geral, retirarão a sua censura ao kardecismo e àqueles que creem e confiam, tanto na existência de registros psicográficos, como na teoria da reencarnação.

N O T A S

(1) "Innernet" é um termo frequentemente utilizado, por exemplo, pelo instrutor espiritual do Śuddha Sabhā Ātma, Francisco Barreto, em contraposição à ideia da rede física, "internet". O termo "innernet" sugere a existência de uma espécie de internet, que pode ser cultivada  a partir da  compreensão (bhāvana) de que somos seres interdependentes, cuja existência se dá, unicamente, em rede. O sentimento de pertencimento cósmico (ou de que a nossa existência decorre da conexão com o espírito de vida no sagrado coração) ativa esta rede invisível que une os corações, a innernet, possibilitando as intuições sutis e a comunicação não verbal, telepática.

(2) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

Rio de Janeiro, 18.12.18
(Atualizado em 26.04.23).

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