2016-10-01

O que é Sākṣī?

“Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser.
Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.”
(Ṛigveda 1.164.20 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1)
Sākī (sa, “com”; e aka, “centro da roda, olho”) significa, “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (aka) permanece imóvel. O estado de Testemunha, Sākī, expressa a capacidade de observar e sentir, impassivelmente, os eventos que fazem o mundo girar.

1. A Metáfora da Pessoa Humana e do Espírito Universal que a Anima

A primeira referência de que se tem registro na história às práticas de meditação aparece nesta metáfora dos dois pássaros (assista ou leia), introduzida no Ṛigveda e longamente discutida em diversas Upaniṣades como modelo explicativo da relação da mente humana (consciente, subconsciente e inconsciente) com o Alento Universal e Sagrado (a consciência) que a anima, sem que disto se tenha consciência:
Dois pássaros com belas asas, companheiros inseparáveis, encontraram refúgio e abrigo na mesma árvore. Um deles se alimenta dos doces frutos da figueira; o outro, sem se alimentar, apenas observa...  (Ṛigveda 1.164.20)
Os dois pássaros referem-se à nossa dupla natureza, material  e espiritual, e simbolizam o processo de meditação. De um lado, inconstante, imperfeito e finito, o ser corpóreo (representado pela mente humana) permanece em movimento, experimentando de todas as coisas. De outro lado, contudo, estático, perfeito e infinito, a Testemunha (a Consciência Universal em nós) apenas observa e aguarda pelo reencontro, expresso como o sentimento de amor pleno.  É a este processo de unificação da mente emocional, racional e lógica (Jīva, a alma, o ser)  com a Consciência Universal (Ātman, o Espírito, o Ser), presente em nosso coração espiritual, que se chama de meditação.

Desde as primeiras Upaniṣades1 a concepção de Haṃsa (cisne, símbolo do Espírito) é utilizada pelos yogis em sentido místico para designar o casamento do “eu” (haṃ) com o espírito universal “ele/ela” (saḥ). Esses dois aspectos também estão relacionados com o Prāṇāyāma, conforme os movimentos de pūraka (inspiração) e rechaka (expiração). O cisne Haṃsa simboliza o supremo som seminal (nāda), presente no coração, onde o princípio consciente de Ātman atua em estado de separação (vi-yoga), como Jīva, e união (saṃ-yoga), como Jīvātman.

Māntrika Upaniṣad (Upaniṣad do praticante de mantras) apresenta esta metáfora da passagem 1.164.20 do Ṛigveda logo em seu verso de abertura. Apresenta o cisne Haṃsa como o ser humano realizado, que alcançou o contato e a unificação com a essência do sagrado em si mesmo (Ātman). Haṃsa banha-se no lago pertencente à mente (Manas). O texto descreve os dois aspectos deste cisne de oito pés, cujas penas representam a superação e o domínio sobre as três qualidades da matéria, ou guṇas. Faz uma exposição de Brahman em seus aspectos imanente e transcendente: habitando no coração de todos os seres como o Espírito (Ātman), ao mesmo tempo que a tudo transcendendo.  O verso inicial afirma que um desses aspectos do cisne é visível; o outro, invisível. O aspecto visível representa o ser humano, que se alimenta do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O aspecto invisível representa a imagem e semelhança da Consciência Universal (Ātman), eternamente sem mácula, que reside no interior de cada um de nós.

Há um pequeno texto medieval, atribuído por muitos a Adi Sankaracarya e por outros a Bharatī Tīrtha, intitulado Dṛg-Dṛśya-Viveka, que discute esta distinção entre estes dois pássaros que habitam na mesma árvore, o “observador” (Dṛg) e a “coisa observada” (Dṛśya). Cabe aqui destacar a seguinte passagem: “Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então Sākī se revela o verdadeiro observador.” Esta sofisticada análise da alma humana esconde, de fato, uma verdade que é quase óbvia e acessível até mesmo a uma criança (ver vídeo). Sākī representa aquela instância em nós indicativa de que não somos este corpo corruptível e sujeito à morte, mas a consciência-testemunha de tudo que se passa no corpo e fora dele. Representa o Ātman, o Espírito Puro, a Consciência Superior presente em nós, conforme descreve a seguinte passagem da Śvetāśvatara Upaniṣad (6.11): “Oculto em todos os seres e representando o “Ser”, ele é a Testemunha, o dispensador de vida e inteligência...” Sākī conota o próprio Iśvara, presente como a Consciência (cetā) em todos os seres humanos.

Em suma, na exata medida em que vamos nos aproximando do eixo imutável da roda de Saṃsara, vamos nos descobrindo em nossa própria natureza espiritual e a nossa prática vai se tornando também uma expressão deste Haṃsa Prāṇāyāma da classe dos Śuddha Prāṇāyāmas.

Kabir: O que é Deus?


A metáfora dos dois pássaros na interpretação de Eckhart Tolle



(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: O que é a Meditação Sintrópica do Śuddha Yoga?

Rio de Janeiro, 01 de outubro de 2016
(Atualizado em 07.06.23)

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