2019-12-22

A Perfeita Alegria do Satsañga do Dia de Ação de Graças

Fazenda Mãe Natureza
(Povoado da Saúde, Santana de São Francisco - SE)
Conta-se que depois de ouvir o depoimento de uma moça cega, que teria dito dar tudo para enxergar uma noite de luar, Ludwig Van Beethoven teria recuperado a vontade de viver e composto “Sonata ao luar”. Beethoven encontrava-se em profunda depressão. Chegara a redigir um documento dizendo que iria se suicidar. O depoimento da jovem, contudo, o emocionara a ponto de o fazer reconhecer o quanto deveria ser grato por poder expressar em sua arte tudo o que via. Olhando para o céu prateado de luar e lembrando da morte de um ente querido que o mantinha em luto, ele se deixa mergulhar num estado de profunda meditação, que lhe desperta na alma o desejo de traduzir em notas musicais aquela impressão divina de beleza e arte de uma noite de luar. E a melodia de “Sonata ao luar” surge imitando os passos vagarosos daqueles que seguem o cortejo fúnebre que encerra o velório. A sua melodia podia retratar, para aqueles que não podem ver com os olhos físicos, a beleza de uma noite banhada pela claridade da lua. Alguns anos depois, já totalmente surdo, Beethoven comporia, como parte da Nona Sinfonia, o Hino à Alegria, onde pode expressar a sua gratidão à vida e por não ter se suicidado.

Quem nunca se sentiu, em algum momento da vida, extremamente só e com vontade de desistir? Até que alcancemos o estado de Perfeita Alegria, que nos permite compreender que nenhum filho de Deus fica esquecido e sem o auxílio espiritual para transcender o sofrimento e alcançar a participação na vida divina, ficamos todos sujeitos ao desânimo. Mas então, o que é e como se alcança a Perfeita Alegria?

Ānanda: A Perfeita Alegria Franciscana

Aconteceu certa vez entre São Francisco e Frei Leão um diálogo tão sagrado (śuddha) que a própria natureza parece ter se ocupado de preservá-lo sob a forma de uma sublime canção do Senhor, uma verdadeira "Śrīmad Bhagavad Gītā", conforme pode-se ver e ouvir mais abaixo. No século XIV, um frade franciscano de Florença, de origem incerta, traduziu do latim e adaptou um texto baseado nos escritos denominados “Actus Beati Francisci et sociorum ejus” sobre a vida de São Francisco, que passou a correr mundo com o nome de Fioretti (veja aqui uma dissertação sobre o livro). O texto contempla a uma descrição deste diálogo, transformado no hino "Perfeita Alegria" pelo Frei Luiz Carlos Susin. Agora, quando a Universidade do Coração irá realizar o seu primeiro Satsañga de Ação de Graças, nada mais propício que reproduzir este hino de louvor ao estado de Ānanda que também a inspira.


Perfeita Alegria

Cai a tarde de inverno impiedoso e Francisco e Leão sob a neve caminham.
Vão tornando à Santa Maria com fome e com frio ao final de outro dia.
Frei Leão vai na frente ligeiro,
Frei Francisco o chama e lhe diz:
Frei Leão toma nota se queres saber o que é a perfeita alegria.

Se nós tivermos a graça de Deus de pregar o Evangelho e a cruz
e por obras e exemplos pudermos levar a Jesus.
E convertermos os homens à fé, até mesmo os de mal coração,
Frei Leão isto ainda não é a perfeita alegria.

Imagine Leão que Deus nos tenha dado a graça de a todos curar
de fazer ver a cegos, a coxos andar, surdos ouvir e mudos falar.
E que até os demônios fugissem ao comando de nosso olhar,
e que os mortos nós ressuscitássemos, isto não é a perfeita alegria.

E se falássemos todas as línguas com o dom de bem comunicar,
transformando os reinos da terra em reinos de paz.
E se soubéssemos toda a ciência, e os segredos da terra e do mar.
Frei Leão isto ainda não é a perfeita alegria.

Mas então, Pai Francisco, o que é a perfeita alegria?

Se ao chegarmos ao nosso convento e batermos depressa esperando entrar,
e o porteiro do lado de dentro ao invés de abrir põe-se assim a falar:
Quem sois vós que assim importunos nesta hora nos incomodais?
Somos nós, teus irmãos, Frei Leão e Francisco que chegam e querem entrar.

E Frei Leão se o porteiro disser que é mentira e que não abrirá
que encontremos um outro lugar em um canto qualquer.
E se nós diante da porta fechada, sob a noite e a neve que cai
conservarmos a paz, isto é a perfeita alegria.

Mas se nós insistirmos em pranto que abra que tenha piedade de nós,
pois com fome e tão necessitados na noite não temos consolo e lugar.
E se então o porteiro sair, empunhando o bastão a gritar.
E bater em você e em mim muito mais nos deixando no chão a chorar.

E Frei Leão, se for Deus que tal faz, que nos deixa na noite e na cruz,
se entendermos que este abandono imita Jesus.
E se nós diante da porta fechada, sob a noite e a neve que cai,
Conservarmos a paz, isto é a perfeita alegria.

O primeiro Satsañga de Ação de Graças da Universidade do Coração

O anseio de reservar o dia vinte e cinco de cada mês para celebrar a Perfeita Alegria do Dia de Ação de Graças na Fazenda Mãe Natureza, presencialmente e online, às 20h, surgiu entre os servidores voluntários da Universidade do Coração, exatamente no dia vinte cinco do mês de novembro passado. Esta celebração mensal, para reverenciar o sagrado coração, fortalece o compromisso do grupo em trabalhar pelo despertar da consciência da presença do Espírito em nós. Com este objetivo, nós nos reuniremos, pela primeira vez, no dia vinte e cinco de dezembro de 2019. Esta celebração deveria, idealmente, acontecer todos os dias, o dia todo, mas já é significativo que o grupo tenha se comprometido com um dia, todos os meses do ano, vivido pela graça da consciência da presença do sagrado em nós. Nesta ocasião, os participantes poderão oferecer ao grupo um poema, uma música, um monólogo, uma oração, ou um solilóquio com o Espírito de Deus, que promova o estado de Ānanda, ou de perfeita alegria, que resulta da consciência de sermos agraciados pela divina presença. O dia vinte e cinco deverá entrar, deste modo, para o calendário da Universidade do Coração como o seu dia maior.

No passado, coube aos educadores salesianos a nobre missão de enfrentar as dificuldades envolvidas no processo de formação, unificação e harmonização da família brasileira, a partir da miscigenação de grupos de ameríndios, europeus e africanos. A celebração deste dia de Ação de Graças da Universidade do Coração nasce, agora, como consequência natural do anseio de superação manifestado pelos primeiros educadores salesianos, que buscavam  transformar o ato educativo em espiritualidade pura. Segundo Dom Bosco, o fundador da ordem salesiana, o Brasil irá constituir-se como uma verdadeira Universidade do Coração, destinada, desde os planos superiores, a estimular a perfeita alegria (ānanda), oriunda do desenvolvimento do sentimento amoroso, de natureza fractal, que estrutura as distintas famílias, dentro da grande família das nações humanas. Que o estabelecimento desta celebração mensal possa contribuir para o aprimoramento da nossa relação com todos os diferentes grupos sociais, até que os vejamos e os aceitemos, verdadeiramente, como expressões de  nós mesmos. 

Na literatura śuddha (sagrada) do sânscrito designa-se o sistema de educação adotado pelos salesianos como guru-kula. A expressão "guru-kula" sugere uma relação de transmissão de conhecimento, de coração a coração, a partir do exemplo e proximidade (kula: família, lar) do educador (guru) em relação aos educandos. Mestre e discípulo formam neste sistema ancestral uma família, no mesmo sentido proposto por Jesus e seus discípulos, para a materialização da egrégora a que chamamos de Universidade do Coração. Ainda conhecemos muito pouco sobre a formação de egrégoras (veja aqui) orientadas pela divina presença no coração. Esta pequena reflexão, em torno do surgimento da nossa egrégora, representa a contribuição que pretendo levar a este primeiro Satsañga, em celebração ao nosso esforço conjunto de viver um dia todo, verdadeiramente, como um dia de Ação de Graças. Ela contempla a minha forma de manifestar gratidão por ter este sentimento auspicioso, que caracteriza os servidores da Universidade do Coração, de que o sagrado reside no imo dos nossos corações. "Sat" (a verdade e o bem) e "sañga" (grupo) sugerem a celebração e o desenvolvimento deste vórtice de energia amorosa de perfeita alegria (ānanda), onde todos assistem a todos, cada um em conformidade com as suas habilidades em relação às necessidades do outro. Pertencer a um "sañga" (grupo) que se esforça para alcançar "sat" (a verdade e o bem) significa fazer parte de uma família onde vale a máxima: um por todos e todos por um. "Sat-sañga"  sugere  este envolvimento consciente com a formação de uma egrégora.  E o Natal de 2019 coincide com este primeiro Satsañga, dedicado à Perfeita Alegria do dia de Ação de Graças da Universidade do Coração. 

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Não há um caminho para a paz; a paz é o caminho

Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 2019
(Atualizado em 27.09.21)

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