2024-12-22

Além de Kant: Integrando Razão e Sentimento na Busca por uma Ética Sintrópica

 
1. Introdução: A Busca por uma Nova Fundamentação da Moralidade

O debate sobre a fundamentação da moralidade e a relação entre razão e sentimento permanece um tema central na filosofia. Immanuel Kant, com seus imperativos categórico e hipotético, ergueu um sistema ético, que buscava a universalidade e a objetividade, aspirando libertar a moralidade de dogmas religiosos e idiossincrasias individuais. A abordagem kantiana, apesar de inovadora, apresenta limitações ao desconsiderar a importância do "sentimento sintrópico", chamado de "śraddhā" em sânscrito, como fundamento da ética.

A dicotomia entre razão e sentimento, tão presente na filosofia ocidental desde Aristóteles, é perpetuada e aprofundada por Kant. Sua ênfase na razão pura, separada dos sentimentos, resulta em uma ética fria, inorgânica, incapaz de abarcar a complexidade da experiência humana. Conforme discutido neste livro-blog, é possível transcender essa dicotomia, unificando razão e sentimento em uma perspectiva inspirada na fórmula híbrida śraddhā quaerens intellectum, discutida mais abaixo, que emerge do diálogo entre a filosofia oriental e ocidental. Ela corrige e, em certa medida, salva o edifício aristotélico-tomista, corroído com a derrocada do paradigma medieval – “fides quaerens intellectum” (a fé como o pressuposto para o conhecimento da verdade). Elaborada por Santo Anselmo, e defendida por São Tomás, esta formulação medieval da fé como pressuposto para o conhecimento viria a ser refutada por Descartes, que coloca a dúvida (dubito ergo cogito ergo sum – duvido, logo penso, logo existo) como o fundamento sobre o qual se construiu a modernidade e se reinaugurou – ao menos no ocidente – o império da consciência, sugerido já na inscrição das paredes do templo de Apolo, em Delfos: “gnothi seauton” – conhece-te a ti mesmo.

Com sentido próximo ao do cogito cartesiano, a ancestral literatura sagrada da Índia tem no conceito designado pelo termo sânscrito "śraddhā" o seu representante do sentimento intuitivo de certeza e de fé em si mesmo. Na Bhagavad Gītā, śraddhā se apresenta como o sentimento sintrópico de convicção íntima, expressão do fogo e ardor do coração, capaz de colocar o amor em ação. No texto, śraddhā representa a bússola interior, orientada racional e intuitivamente pelos princípios da confiança e da prudência, que ilumina e unifica a razão em direção à Verdade e ao Absoluto. Śraddhā  representa a intersecção não vazia entre a fides e o cogito. Deste modo, a expressão śraddhā quaerens intellectum sugere a compreensão da ciência e da espiritualidade como um campo unificado.

2. A Falácia da Razão Pura: Kant e o Erro Metafísico

Kant, imbuído de espírito iluminista, buscava uma moralidade universal e objetiva, livre das influências da religião e da tradição. Para ele, a razão pura, desprovida de qualquer elemento empírico ou emocional, seria a única fonte legítima da lei moral. Essa busca por uma "moralidade pura", contudo, o conduziu a uma ênfase na razão que, embora não negue totalmente os sentimentos, subordina-os à sua primazia na constituição do ser humano. Essa visão dicotômica, que separa razão e sentimento, é herdeira de uma longa tradição filosófica, que remonta a Aristóteles e que se intensificou durante a Idade Média, marcada pelo domínio da tradição aristotélico-tomista, fundada no dogma religioso e na desconfiança em relação à subjetividade humana. A ascensão da ciência moderna, com sua ênfase na objetividade e na racionalidade, contribuiu para solidificar a separação entre razão e sentimento. A expressão do sentimento de dúvida de Descartes (dubito ergo cogito ergo sum – duvido, logo penso, logo existo) terminou por ser consagrada em sua versão reducionista (cogito ergo sum – penso, logo existo), formulação que privilegia a racionalidade e serve de fundamento para uma ciência meramente racional, que relega o sentimento intuitivo (na verdade, expressão legítima do cogito em sua formulação completa) a um plano inferior.

Kant, embora crítico do dogmatismo religioso, não se libertou completamente dessa herança. Ao rejeitar a integração entre razão e sentimento, ele se afasta da máxima tomista fides quaerens intellectum (fé em busca de entendimento), mas ao fazê-lo, se afasta igualmente do entendimento da centralidade de śraddhā, o sentimento intuitivo, como ponto de partida para a busca do conhecimento. Em sua busca por uma razão pura, Kant desconsidera a possibilidade de uma síntese sintrópica, como a que decorre da expressão śraddhā quaerens intellectum. Esta formulação híbrida, fruto das contribuições do pensamento oriental e ocidental, possibilita uma integração entre razão e intuição moral. Ela oferece uma alternativa à rigidez inorgânica da razão pura kantiana, abrindo espaço para a ética sintrópica, mais orgânica e humana.

3. O Imperativo Categórico: Uma Ética Desprovida de Alma

O imperativo categórico kantiano, "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal", representa a tentativa de formular uma lei moral universal e objetiva. Essa busca por uma universalidade abstrata resulta em uma ética fria e inorgânica, desprovida da vitalidade ardorosa do sentimento sintrópico. O imperativo categórico, com sua ênfase no dever e na universalidade da lei moral, ignora a complexidade da experiência humana, a riqueza das relações interpessoais e a importância do sentimento na vida moral. A ética kantiana torna-se, assim, uma "caricatura" da verdadeira moralidade, que deve levar em conta a singularidade de cada indivíduo, a diversidade das culturas e a profunda interconexão entre razão e sentimento.

A Sombra do Pietismo na Ética Kantiana

Embora Kant buscasse uma fundamentação racional e universal para a moralidade, livre de dogmas religiosos, sua ética não escapa à influência do cristianismo, em particular do pietismo luterano, movimento que enfatizava a piedade pessoal, a vida moral e a experiência religiosa interior. Essa influência manifesta-se na ênfase no dever, na universalidade da lei moral e na dignidade humana, conceitos que ecoam princípios cristãos como o amor ao próximo e a "regra de ouro" (o princípio de tratar os outros como queremos ser tratados).

Kant,  Hume, Rosseau, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e Sartre

A crítica ao pensamento kantiano foi levada ao seu cume, por filósofos como David Hume, Rosseau, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, além de escolas inteiras, como o romantismo alemão. Embora David Hume tenha sido uma influência importante para Kant, ele também discordava da ideia de que a razão pode ser a base da moralidade. Hume argumentava que a razão serve apenas para nos ajudar a alcançar nossos desejos e objetivos, mas não pode nos dizer o que devemos desejar ou o que é moralmente correto. No entanto, é Rosseau, com sua ênfase na bondade natural do homem e na importância dos sentimentos, que é considerado o precursor da crítica à racionalidade kantiana. Ele critica a civilização moderna por corromper a natureza humana e defende a importância da educação dos sentimentos para a formação moral. Hegel, embora influenciado por Kant, também oferece uma crítica à sua filosofia. Ele critica a dualidade kantiana entre sujeito e objeto, e propõe uma dialética que busca superar essa oposição. Na ética, Hegel critica o formalismo do imperativo categórico e defende uma ética concreta, enraizada na história e na cultura. Schopenhauer, um dos críticos mais contundentes de Kant, argumentava que a moralidade ampara-se na compaixão, um sentimento irracional que nos conecta com o sofrimento alheio. Para ele, o imperativo categórico seria frio e abstrato, ignorando a importância das emoções na vida moral. Nietzsche também critica a ética kantiana, afirmando que ela representa uma "moral de escravos", que reprime os instintos vitais, a vontade de poder e a individualidade. Para Nietzsche, a verdadeira moralidade baseia-se na afirmação da vida e na busca pela autorrealização. Contudo, é em Heidegger que a crítica à filosofia kantiana é mais aguda.

Heidegger, com sua ênfase no ser-no-mundo e na autenticidade da existência, aproxima-se da valorização da intuição e da experiência direta presente na filosofia oriental, oferecendo uma crítica profunda à centralidade da subjetividade e da razão transcendental na filosofia kantiana. Para Heidegger, Kant falha ao colocar o sujeito transcendental no centro da filosofia, o que leva a uma compreensão distorcida do ser e da moralidade. Essa centralidade do sujeito obscurece a verdadeira natureza do ser, reduzindo-o a um objeto de representação para a consciência. Heidegger critica a busca kantiana por uma lei moral universal e abstrata, argumentando que ela ignora a finitude e a historicidade do ser humano. Para ele, a moralidade reside na compreensão do ser e na autenticidade da existência individual. A ética, portanto, deve se basear na experiência concreta do ser-no-mundo, e não em princípios abstratos. Do mesmo modo que Heidegger, Sartre também critica a centralidade do sujeito na filosofia kantiana e propõe uma ontologia existencialista que enfatiza a liberdade, a responsabilidade e a angústia da existência humana. 

4. A Ética Sintrópica e a Filosofia Contemporânea

A crítica à ética kantiana não se limita aos autores clássicos. Filósofos contemporâneos como Bernard Williams e Alasdair MacIntyre também questionam a ênfase kantiana na universalidade e no dever. Williams argumenta que a moralidade está sujeita a fatores contingentes e imprevisíveis, o que problematiza a possibilidade de uma lei moral universal. MacIntyre defende que a moralidade está enraizada em tradições e práticas sociais específicas, tornando a busca por princípios universais uma ilusão.

A ética sintrópica, originada do conceito de śraddhā, conforme discutido na Bhagavad Gītā e sintetizada na expressão śraddhā quaerens intellectum, propõe uma alternativa à visão abstrata e pseudo-universalista da moralidade presente no kantianismo. Enquanto Kant buscava uma ética fundamentada na razão pura, a ética sintrópica enfatiza a integração entre razão e sentimento,  reconhecendo a importância da intuição, da experiência direta e da compaixão. Essa abordagem aproxima-se da "ética da virtude" defendida por MacIntyre, que, assim como a ética sintrópica, valoriza o desenvolvimento de qualidades morais como a honestidade, a compaixão e a justiça. No entanto, a ética sintrópica vai além, buscando integrar a sabedoria ancestral da tradição védica com os desafios contemporâneos.

A ética kantiana, com sua ênfase no dever e na universalidade da lei moral, provavelmente se oporia à eutanásia. A ética sintrópica, por outro lado, considera a situação de forma mais holística. Nessa perspectiva, o princípio intuitivo da sacralidade da vida, chamado de Ṛta no Ṛig Veda, que reconhece o valor intrínseco de cada ser vivo e transcende a finitude da existência, deve ser ponderado em conjunto com o sofrimento do paciente e seu desejo expresso. Esse princípio, que costuma aflorar no indivíduo por meio de práticas éticas, estéticas, contemplativas e de meditação, guia a intuição moral e legitima a tomada de decisão. A ética sintrópica não oferece uma resposta simples e universal para o dilema da eutanásia, mas incentiva a busca por um sentimento intuitivo legítimo, oriundo da consciência individual e amparado por śraddhā, como guia para a ação.  Essa intuição, conforme elucidada na Bhagavad Gītā e ilustrado no Mahābhārata por meio das falas e ações do personagem central, Krishna, manifesta-se como uma compreensão profunda e empática da situação, que integra razão e sentimento, ponderando todos os aspectos de cada caso. A ética sintrópica nos convida a auscultar e a respeitar a manifestação da consciência no desejo do outro, buscando uma solução que promova o bem-estar e a dignidade de todos os envolvidos

5. Sentimento Intuitivo e Razão

A crítica à filosofia kantiana, como vimos, é complexa e multifacetada.  Diversos autores, cada um à sua maneira, apontaram para as limitações da visão kantiana e abriram caminho para uma compreensão mais integral da moralidade. A partir dessa crítica, torna-se necessário construir um novo paradigma ético que transcenda a dicotomia entre razão e sentimento. A expressão paradigmática śraddhā quaerens intellectum oferece um caminho promissor para essa nova ética. Essa perspectiva reconhece a importância da experiência subjetiva e da conexão com o todo, sem negar a importância da razão.

A perspectiva sintrópica oferece um caminho novo, mais rico e completo, para a compreensão da moralidade. Ela reconhece a complexidade da experiência humana, a interdependência entre razão e sentimento e a importância da compaixão e da busca pela harmonia com o universo, possibilitando, portanto, não apenas criticar a abordagem kantiana, mas principalmente, a construção de uma nova síntese filosófica, capaz de reconhecer a interdependência entre sentimento e razão e pavimentando, desse modo, o caminho para uma compreensão mais profunda e sintrópica do ser humano.

À medida que avançamos para uma era marcada por desafios globais sem precedentes – desde crises ambientais até dilemas em biotecnologia e inteligência artificial –, torna-se imperativo repensar nossas bases éticas. A ética sintrópica, enraizada em śraddhā quaerens intellectum, não é apenas uma alternativa teórica; é uma necessidade prática para uma sociedade cada vez mais interconectada e diversificada. Esta abordagem não rejeita a razão, mas a enriquece e amplia através da integração com o sentimento, oferecendo um caminho mais holístico e compassivo para resolver dilemas éticos. Ao adotarmos essa visão, não apenas desafiamos as limitações de visões éticas anteriores, como também abrimos caminho para um futuro onde a ética transcende barreiras culturais e pessoais, promovendo uma verdadeira harmonia entre os povos e um respeito mais profundo pelo planeta. A era de uma ética sintrópica não é apenas uma possibilidade; é uma direção essencial para a sobrevivência e prosperidade da humanidade.

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